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Reportagem Cultural

- Publicada em 24 de Agosto de 2023 às 18:28

Boate Lei Seca foi fenômeno de popularidade na década de 1990

Casa noturna funcionou em Porto Alegre entre os anos de 1993 e 1997

Casa noturna funcionou em Porto Alegre entre os anos de 1993 e 1997


ACERVO PESSOAL RENE FERES/REPRODUÇÃO/JC
O relógio do Estádio Olímpico marcava quase meia-noite em 23 de agosto de 1995 quando o atacante gremista Nildo "Bigode" fazia da cerveja um estímulo à urina para o exame antidoping. Sem marcar gol, mas embalado pelos 3 a 1 sobre o Atlético Nacional da Colômbia, no primeiro duelo das finais que dariam ao clube gaúcho sua segunda Copa Libertadores da América (empate de 1 a 1 fora de casa, na semana seguinte), ele estendeu a bebida e um convite ao goleiro adversário René Higuita, também sorteado para o teste: "Vamos para uma boate? O pessoal tá todo lá!"
O relógio do Estádio Olímpico marcava quase meia-noite em 23 de agosto de 1995 quando o atacante gremista Nildo "Bigode" fazia da cerveja um estímulo à urina para o exame antidoping. Sem marcar gol, mas embalado pelos 3 a 1 sobre o Atlético Nacional da Colômbia, no primeiro duelo das finais que dariam ao clube gaúcho sua segunda Copa Libertadores da América (empate de 1 a 1 fora de casa, na semana seguinte), ele estendeu a bebida e um convite ao goleiro adversário René Higuita, também sorteado para o teste: "Vamos para uma boate? O pessoal tá todo lá!"
Conhecido por lances folclóricos (digite "defesa scorpion" no site de vídeos Youtube), o arqueiro de cabelos cacheados atendeu de imediato à convocação, demonstrando reflexos rápidos também para a boemia. Ele embarcou no Fiat Tempra do anfitrião rumo à tal danceteria, onde os tricolores Danrlei, Jardel, Paulo Nunes, Dinho e Carlos Miguel já começavam um "terceiro tempo". Tudo registrado em fotos de um encontro embalado por uísque, vinho e cerveja, ao som de muito pop-rock, dance music e o pagode que invadia as paradas desde a primeira metade da década.
"Lembro daquela madrugada como se fosse hoje", empolga-se Nildo, 58 anos, técnico do União Paraense - time da região metropolitana de sua cidade natal Belém e que disputa a Série B estadual. "Os proprietários demonstravam um carinho enorme pela gente. Tínhamos passe-livre e cuidados como a companhia de seguranças até nossos carros, assim como na Berlin e Dado Bier. Em tempos de ótima fase da equipe em campo e comprometimento total dos atletas, os dirigentes do Grêmio faziam vista grossa e os torcedores achavam graça. Ninguém nos segurava."
Essa e outras tantas histórias tiveram como cenário o Lei Seca Pub Bar (1993-1997), uma das mais populares casas noturnas já surgidas em Porto Alegre. Há também quem tenha testemunhado Higuita plantando bananeira na pista de dança do número 455 da rua Coronel Bordini, divisa do bairro Auxiliadora com Moinhos de Vento. Ou visto o volante Dinho ser chamado por soldados da Brigada Militar através do microfone interno da casa porque o manobrista espatifara o automóvel zero-quilômetro do temido camisa 5 gremista ao arriscar um test-drive na avenida Farrapos.
A trajetória do "Lei" (como o apelidaram seus frequentadores) tem como ponto de partida outro endereço, a dois quilômetros dali: o porão de um pequeno prédio em forma de castelo na avenida Plínio Brasil Milano nº 525, quase na Carlos Gomes, altos do Higienópolis. Ambos fizeram jus ao espirituoso slogan "Para quem tem sede da noite" a sublinhar a logomarca de cálice e garrafa sobrepostos por sinal de proibido, em uma brincadeira com a célebre emenda constitucional que vetara a fabricação, venda e consumo de produtos alcoólicos nos Estados Unidos de 1920 a 1933.
"O Lei Seca deu muito certo ao adotar como estratégia comercial a democratização de um espaço com perfil mais elitizado de clientela", analisa o então DJ Sandro "Maverick" Bentz, hoje um experiente advogado de 53 anos. Ele sabe muito bem do que está falando, afinal, acompanhou de perto, desde os primórdios como amigo, frequentador e eventual colaborador da casa, os bastidores de um processo evolutivo que tem na sua origem outro ícone noturno que marcou época na região, o Kilt Pub (1982-1992). "Foi uma experiência quase sociológica na região."
 

Aposta na simplicidade

Pista de dança do Lei Seca foi uma das mais bombadas da Capital nos anos 1990

Pista de dança do Lei Seca foi uma das mais bombadas da Capital nos anos 1990


ACERVO ELTON BARROS/REPRODUÇÃO/JC
As viagens frequentes de Marcus 'Peninha' Consiglio como funcionário da estatal Aços Finos Piratini não resultavam apenas em relatórios de trabalho. Também aumentavam a convicção de que a noite porto-alegrense poderia ser melhor. Consequência: a inauguração do Kilt Pub, em 15 de dezembro de 1982, tendo no andar de cima o restaurante Porto's (de Gilberto Dietrich e Schullas Nonnenmacher). Primeiro bar em estilo escocês da Capital, o estabelecimento na Plínio Brasil Milano tinha funcionários em trajes típicos, jogos de dardos, muito rock e blues ao vivo, atraindo um público de classe-média alta a partir dos 30 anos, incluindo gente da aviação civil e de consulados.
Em 1989, o convite de um amigo diplomata o levou a comandar negócio similar na cidade espanhola de Zaragoza. O Kilt foi então adquirido, a partir de anúncio em jornal, pelo agroempresário Francisco Provenze, em sociedade com dois jovens parceiros no comércio de computadores montados com peças adquiridas no Paraguai: o estudante de contabilidade Luís Felipe Guedes e o ex-acadêmico Roni Feres, que deixara o curso de Estatística e o emprego de programador na siderúrgica Gerdau em busca de novos desafios. A inexperiência do trio no ramo noturno e os altos custos levaram a casa a um período de estagnação - o retorno à Capital, mais de um ano depois, teria para Peninha um gosto de cerveja quente ao deparar com a situação.
O bar ainda sopraria os foles até 1992, mesmo em baixa. "Circulando apenas como cliente no meu antigo estabelecimento, sugeri uma guinada de forma e conteúdo, com mudança de nome, conceito de danceteria e foco na clientela jovem", contextualiza Consiglio, 68 anos, hoje empresário no ramo de planos de saúde. “Propus, ainda, a substituição da música ao vivo por som mecânico e mais eclético, troca da cobrança de ingresso pelo sistema de consumação mínima (abolido pela legislação em 2006), venda de bebidas a um preço mais acessível e uma aposta forte em ações promocionais.” Com a ida de Guedes para a Inglaterra, Peninha reassumiu participação no negócio (sem constar no contrato social), por ele rebatizado de Lei Seca Pub Bar. 

Flyer da primeira festa do Lei Seca, em 18 de março  de 1993

Flyer da primeira festa do Lei Seca, em 18 de março de 1993


ACERVO PESSOAL RENE FERES/REPRODUÇÃO/JC
Uma campanha massiva de divulgação corpo-a-corpo foi deflagrada, com dezenas de promoters freelancer em locais como universidades e shoppings, anunciando a inauguração para 18 de março de 1993. Sem alterações significativas no layout interno ou externo e se beneficiando do avanço da movimentação noturna nas imediações (Fim de Século, Torre Eiffel, Publicitá Café, Paisley Park, Santa Mônica), o castelinho rapidamente virou opção preferencial para um público oriundo das mais diversas partes da cidade. Menos de três meses bastaram para que o expediente restrito a quintas, sextas e sábados se estendesse às terças, quartas e domingos, recebendo cerca de 300 pessoas por jornada. Havia só duas mesas, geralmente ocupadas pelos donos.

"Principalmente na época em que eu estava solteira e saía para baladas, o lugar era um dos primeiros na lista da minha turma para dançar, falar bobagem, dar risadas, encontrar amigos e conhecer pessoas", conta com saudade a bibliotecária Magda Guimarães, 50 anos e radicada em São Paulo desde 2007. "Além da entrada 'free' ou com desconto, rolavam muitas festas universitárias com acesso liberado, esse tipo de facilidade que atrai o estudante sem dinheiro para curtir mais de uma circulada por semana. Muitas vezes entrei pensando em sair à meia-noite, mas só fui embora lá pelas quatro da manhã. A pista podia estar tão cheia que a gente chegava a ficar de costas coladas nas de alguém."

Descida triunfal

Jogadores do Grêmio (na foto, da esq para dir: Jardel, Nildo, Paulo Nunes e Dinho) eram presença constante nas noites da boate

Jogadores do Grêmio (na foto, da esq para dir: Jardel, Nildo, Paulo Nunes e Dinho) eram presença constante nas noites da boate


ACERVO PESSOAL RENE FERES/REPRODUÇÃO/JC
As tradicionais filas em frente às mais concorridas boates da capital gaúcha não demoraram a se formar também na calçada diante do número 525, indicando a urgência de um espaço capaz de atender ao fluxo que já havia superado o mero apelo da novidade. Também é verdade que o barulho vinha causando broncas com vizinhos e prefeitura, sem que os ajustes providenciados resolvessem 100% do problema. Dois quilômetros adiante, a solução: um dos reis da noite porto-alegrense, Pedro Mello (1954-2016) estava desistindo de explorar o sobrado onde capitaneara o restaurante Trabuco (1990-1991), a danceteria Bunker (1992-1993) e o bar Tucano Café (1994), na fronteira do bairro Auxiliadora com Moinhos de Vento. Ponto ainda montado e já disponível.
Completando o seu segundo aniversário, em março de 1995 o Lei Seca descia dez quadras da Plínio Brasil Milano e dobrava à direita para se instalar em definitivo no número 455 da rua Coronel Bordini. O hoje corretor imobiliário Hugo Ramirez, 47 anos, testemunhou como DJ as duas fases do empreendimento, no qual ingressara ainda adolescente como integrante da equipe de luz e som terceirizada pelo Kilt: "Com a transferência do porão em Higienópolis para o ambiente de dois andares, o público saltou de 300 para 700 cabeças por noite. Mas a pegada permaneceu a mesma, com uma seleção musical bem sortida e uma sirene anunciando a abertura dos trabalhos na pista".
Ele corrobora os relatos da onipresença de boleiros do Grêmio treinado por Luiz Felipe Scolari em meados da década de 1990: "Eles estavam sempre por lá, para alegria do Roni Feres, torcedor fanático do clube, embora também pintassem alguns jogadores do Inter. O goleiro Danrlei atacou algumas vezes de DJ (brincadeira levada a sério com uma participação, em 1997, no CD Ferveção Máxima, com 14 faixas de dancemusic pela gravadora paulista Paradoxx). Isso sem contar outros famosos que apareciam para conferir o movimento. Uma noite, por exemplo, dei de cara com o cantor James Reyne (fundador da então extinta banda de rock Australian Crawl, bastante popular no Brasil), que recém tinha saído de uma apresentação no Gigantinho". 

Higuita e Paulo Nunes fazendo um 'terceiro tempo' no Lei Seca em 1995

Higuita e Paulo Nunes fazendo um 'terceiro tempo' no Lei Seca em 1995


ACERVO PESSOAL RENE FERES/REPRODUÇÃO/JC
Habituês menos célebres também colecionam lances dantescos ao folclore da boate. É o caso do publicitário Paulo Roberto Álvares, 53 anos, coadjuvante de um episódio ocorrido em maio de 1995: "Eu tinha uma 'ex' que não se conformava com o fim da relação e inventou de me seguir de táxi até a boate, sem eu perceber. Quando me viu aos beijos com uma nova namorada, foi tirar satisfação da guria e rolou um tremendo bate-boca na área do corredor, junto ao balcão dos barmen. Tentei acalmar os ânimos e acabei levando uns safanões das duas, sem que ninguém entendesse direito toda aquela confusão. O pessoal achou graça quando um dos meus amigos também apanhou, sem motivo algum, só porque estava por perto".

Nos bastidores, prosseguia o engarrafamento e distribuição de um marketing direcionado ao público jovem-adulto de classe média. Principal chamariz: festas de aniversariantes, formandos, grupos de amigos etc., nas quais o anfitrião tinha seu nome impresso no convite e regalias como entrada isenta de consumação mínima, de forma que esses colaboradores atuavam como promoters informais da casa. Também se investia pesado em cartazes e folders, além de campanhas de rádio e aparições frequentes em programas da mídia local como o Tele Ritmo, apresentado pelo comunicador Clóvis Dias Costa na TV2 Guaíba (1980-2007). "Chegamos a gastar uns US$ 7 mil por mês em gráficas e divulgação", quantifica o sócio-fundador Peninha.

"Resumo da lei"

Roni Feres (esq) e Marcus 'Peninha' Consiglio, cofundadores do Lei Seca

Roni Feres (esq) e Marcus 'Peninha' Consiglio, cofundadores do Lei Seca


ACERVO RENE FERES/REPRODUÇÃO/JC
Inspirado pelo sucesso das primeiras raves de música eletrônica em galpões e outros espaços de Porto Alegre, em julho de 1995 o Lei Seca apostou em algo semelhante. O sócio Roni Feres e o amigo Sandro Bentz já cogitavam a possibilidade desde uma viagem a São Paulo, onde esse tipo de produção já era comum. O plano virou assunto sério, tendo como principal idealizador Elton Barros, sócio da empresa Sygma - responsável pelos serviços de luz e som da boate. Local escolhido: um depósito desativado da rede de lojas Imcosul (1935-1994) na rua Ramiro Barcelos nº 196, entre as avenidas Farrapos e Voluntários da Pátria.
"O objetivo era mostrar força e explorar o potencial de arrecadação, reunindo de uma só vez toda a clientela que frequentava a casa em diferentes noites da semana", ressalta Elton, 52 anos e que continua na ativa com seu negócio. A data exata se perdeu na memória de seus protagonistas. Mas ninguém esquece a mobilização gerada pela festa, com o título de "Resumo da Lei" e que recebeu um total de aproximadamente 8 mil pessoas, causando fila quilométrica e trânsito congestionado naquele trecho do bairro Floresta. "Foi uma loucura, com o pessoal dançando até as 7 da manhã! Claro que o time do Grêmio compareceu em peso".
Em uma época de cartões de crédito e débito ainda não tão populares entre a classe média, os sacos abarrotados de dinheiro confirmavam o sucesso daquela virada de sábado para domingo. "Já não sei dizer o valor total, mas o faturamento foi tão grande que parte da equipe pernoitou com a grana em um hotel até segunda-feira, por questões de segurança, à espera da abertura da agência bancária", revela o empresário René Feres, 51 anos, irmão de Roni e responsável pelo caixa. "O Lei Seca, aliás, foi uma das primeiras boates da cidade a contar com máquina para impressão do valor do cheque, evitando as trapalhadas no preenchimento pelos mais alcoolizados."
 

Garrafa vazia

Depois de anos agitados, antigo castelinho da Plínio hoje é um imóvel residencial

Depois de anos agitados, antigo castelinho da Plínio hoje é um imóvel residencial


MARCELLO CAMPOS/ESPECIAL/JC
O fato de uma empresa estar sujeita a ciclos costuma ser especialmente cruel com empreendimentos noturnos, tão à mercê de modismos. E nem os mais bem-sucedidos costumam escapar: a questão não é "se", mas "quando". Após longo período de fervura, a movimentação no Lei Seca começou a esfriar no segundo semestre de 1996, algo esperado para quem já acumulava quase quatro anos de êxito em uma Porto Alegre apinhada por alternativas boêmias. "Novos concorrentes diretos, e até indiretos como a Dado Bier (boate-cervejaria próxima ao shopping Iguatemi, na Zona Norte), tiveram impacto nesse processo de declínio", sublinha René Feres.
De comum acordo, o pessoal optou por uma saída honrosa e com o habitual bom humor. "Você não pode ficar de fora da última festa no Lei Seca", dizia um colorido convite marcado para 30 de janeiro de 1997 e que citava números impressionantes: 1.500 noites, meio milhão de entradas e 2 milhões de cervejas vendidas. A despedida teve lotação esgotada, com distribuição gratuita dos derradeiros 300 coquetéis e uma ressaca permanente entre a clientela mais fiel. "Foi como se parte das coisas de que eu gostava na cidade tivesse acabado naquele momento", lamenta Magda Guimarães, que, na sequência migrou para opções como o bar-boate Barbazul (bairro Petrópolis) e a choperia dançante Berlin (Santana).
Os proprietários esticaram sua vinculação com o segmento, curiosamente em trajeto inverso: a volta à sede original na Plínio Brasil Milano, para ali fundar A Torre (1997-2000), que segue na memória dos quarentões como um 'terceiro capítulo' do Lei Seca. Roni ainda experimentaria novas aventuras no local, em 2001, como sócio da boate Astória (originalmente instalada na rua Castro Alves, bairro Rio Branco), antes de partir para outros ramos empresariais - até ser vitimado por um câncer aos 52 anos, em setembro de 2021, deixando uma multidão de amigos e o protagonismo nesse capítulo bacana da vida sociocultural na Porto Alegre das últimas décadas.
Enquanto isso, os dois endereços que ostentaram o emblema da garrafa proibida ganhavam diferentes destinos. O castelinho do Higienópolis manteve sua vocação noturna, com as boates Castle, Café Madrid, Hitch e Australian South Bar - ultimamente, tem servido a fins residenciais. Já o imóvel na Bordini hospedou um restaurante cujo empreendedor exagerou nas alterações físicas, levando à necessidade de demolição, por risco estrutural. Convertido em estacionamento por mais de 20 anos, o terreno sustenta um recém-inaugurado edifício residencial, com apartamentos à venda e sem qualquer vestígio de que ali morou um dos mais concorridos points de Porto Alegre.
 

* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: [email protected]