Boate Anos Dourados: diversão garantida para jovens-adultos na Cidade Baixa

Instalada na rua José do Patrocínio em trecho de intensa boemia entre 1988 e 1994, boate foi uma das prediletas da classe média porto-alegrense de 25 a 40 anos

Por Marcello Campos

Boate foi uma das prediletas da classe média porto-alegrense
"Comprei uma boate!", anunciou o advogado e empresário Rubens Reinheimer à então namorada no final de 1987. Dono de um motel e dois postos de combustíveis, ele decidira se aventurar pelo novo ramo ao passar os olhos por uma placa de "vende-se o ponto" na loja 904 da rua José do Patrocínio - mesmo endereço do bairro Cidade Baixa onde o célebre bar musical Chão de Estrelas havia inscrito seu nome na Porto Alegre boêmia da década de 1970. O "alvará" da moça serviu de deixa à revelação: tudo não passava de um blefe (o tal "jogar verde para colher maduro"), justamente para testá-la sobre o plano que o empresário tinha em mente.
Entusiasmado com a recepção positiva da parceira (que logo viraria ex), Rubens pegou a chave e não perdeu tempo. "O espaço permanecia montado como casa noturna (o Clube 5 Estrelas, que se mudara para a avenida Azenha), mas providenciei ajustes, de olho em um público classe média na faixa de 25 a 40 anos", relembraria em depoimento concedido a este repórter em 2018. "Ao compartilhar a novidade com a turma de jovens executivos que frequentavam comigo uma academia de ginástica no estádio Beira-Rio, achei ótimo quando alguém sugeriu o nome 'Anos Dourados', título de uma minissérie de sucesso na Rede Globo (em 1986)."
O conceito foi repassado ao arquiteto Denys Fijtman, que providenciou logomarca retrô e layout interno. Costurados pelo diálogo entre simplicidade, elegância, funcionalidade e elementos decorativos com discretas referências à estética cinquentista, os pouco mais de 100 metros quadrados de espaço útil foram redesenhados para abrigar mesas, balcão e pista de dança com pequeno palco. Quase tão sutil era a fachada, com parede em tijolos de cerâmica, toldo amarelo, placa indicativa em acrílico junto à porta e outra em back-light aplicado de lado a lado sob a marquise, ofuscando a existência de dois andares residenciais logo acima.
Igualmente sem pretensões de refinamento, a montagem do cardápio evidenciava a aposta no esmero para compensar o número reduzido de opções. Batata frita, picadinho, sanduíche aberto, filé e um prato onipresente nas casas noturnas da época: estrogonofe de frango desfiado - o bom e velho fricassê, que cruzou gerações sem sair de moda. O mesmo valia para os embalos etílicos, restritos a cerveja, caipirinha, cuba libre, gin tônica e meia dúzia de coquetéis. "Com tantas alternativas na cidade, nossa estratégia geral era oferecer um serviço básico, eficiente e acessível aos bolsos do pessoal, em um ambiente descontraído", explicou Rubens na mesma entrevista.
Inaugurada em março de 1988 com um mix de som mecânico e duas bandas a se alternarem durante a semana, a Anos Dourados rapidamente caiu no gosto de casados e solteiros, muitos dos quais a manteriam no topo de sua preferência durante os sete anos de funcionamento da casa. "Grande parte da clientela era de mulheres desacompanhadas, que não estavam ali necessariamente em busca de relacionamento amoroso, mas de amizades e diversão segura, porque se sentiam protegidas para dançar e conversar em um ambiente de diversão, camaradagem e respeito", sublinha a psicóloga Sônia Godinho, esposa e sócia de Rubens na etapa final do empreendimento.
 

Clima descontraído para solteiros e acompanhados

Com seleção musical eclética - MPB, músicas românticas, Beatles, samba, Jovem Guarda - e uma pista de dança para lá de animada, a boate Anos Dourados fazia frente a dezenas de casas noturnas já consagradas entre os marmanjos de Porto Alegre. Não faltavam opções, a começar pela própria Cidade Baixa: Sandália de Prata (do outro lado da rua), Carinhoso (Joaquim Nabuco), Clube da Saudade (Aureliano de Figueiredo Pinto). Ali perto, no Menino Deus, a avenida Getúlio Vargas enfileirava ao menos quatro endereços para esse mesmo público: Carlitus, Chipp's, Velha Guarda e Fascinação. E a lista chegava a dezenas, se ampliado o raio de busca a outros bairros.
O empreendimento de Rubens Reinheimer oferecia uma espécie de denominador comum entre o que havia de mais divertido nesse roteiro. Intercalando som mecânico com duas bandas fixas (Anos Dourados e Caça-Níqueis) a se revezarem de terça a sábado na faixa entre 22h e 5h (ou mais), a casa também oferecia um apelo irresistível a veteranos e recém-picados pelo mosquito da boemia. A memória afetiva da auxiliar de farmácia Karen Freitas, 46 anos, tem mesa reservada para uma época na qual sua versão adolescente e então moradora da Zona Norte acompanhava mãe, tia e amigas em incursões hilárias pelo número 904 da José do Patrocínio:
"Seu Rubens estava sempre faceiro, em um ambiente de muitas risadas mas também de respeito, inclusive por parte dos homens que nos tiravam para dançar. Jovenzinha, eu costumava me sentar maravilhada em frente ao bar de parede com espelhos, sem conhecer todas aquelas garrafas. Uma vez entrei na pista após alguns coquetéis e pisei na barra da minha calça, tropeçando sem rumo até cair agarrada às pernas do guitarrista, que ajudou a me levantar. Consegui voltar ao balcão onde tinha deixado meu último drink e a bebida acabou derramada sobre uma das gurias da turma. Foi fim de noite para nós, afinal a minha cota de trapalhadas estava esgotada". 

A artesã Rejane Santos, 67 anos, define a boate como "um lugar mágico, sem stress" e "ponto de encontro espetacular para fazer amigos". Ela rebobina mais de três décadas para falar de relações pessoais que resistiram ao tempo, bem como do alto astral entre funcionários e frequentadores. "Depois dos jogos de vôlei feminino em uma quadra na Zona Norte, a turma atravessava a cidade até a Cidade Baixa. Bastava eu chegar para que o pessoal automaticamente preparasse minha taça de Lagoa Azul (curaçau blue, vodka e limão), sem que fosse necessário pedir", suspira. "Como seria bom voltar àquela época! Só de lembrar já dá vontade de repetir."

Essa atmosfera hospitaleira se estendia ao relacionamento com a concorrência, reforçando as impressões de que aquele período foi realmente dourado. Hoje com 64 anos e operador em uma empresa de poços artesianos, Paulo Roberto Daniel foi o mais duradouro guardião sob o toldo amarelo, em sua única experiência como porteiro. Seu perfil versátil e a confiança gerada pela proximidade familiar (a esposa dele e a do patrão eram irmãs) o levaram a atuar como braço-direito em múltiplas tarefas desde o início da tarde - recepção a faxineiros, tratativas com fornecedores e outras chateações inevitáveis a um negócio noturno.

Logo veio uma incumbência adicional durante as madrugadas. "As bandas pausavam 15 minutos por hora, então fui orientado a dar fugidas até outras boates do entorno durante esses intervalos, para conferir o movimento, deixando a segurança a cargo de um colega. Eu não precisava ir disfarçado, pois era bem recebido e sequer pagava a conta, afinal, rolava uma rivalidade sadia e o pessoal da concorrência também aparecia para conversar e saber das novidades. Em uma época de casas noturnas abertas até bem tarde, principalmente nos fins de semana, seguidamente combinávamos encontro em algum bar depois do expediente".

Anos hilários

E quem melhor que o pessoal da retaguarda para puxar do bolso episódios insólitos? Paulo Roberto desarquiva um dos tantos lances que testemunhou naquelas madrugadas: "Durante a maior parte do tempo, quem está dentro da boate como cliente acaba ficando por fora do que acontece na entrada. Teve uma moça, por exemplo, que tirou praticamente toda a roupa no saguão, fazendo o maior escândalo porque queria ir embora mesmo sem dinheiro para pagar a cartão de consumação mínima (sistema que seria abolido por lei estadual em 2006). A fiasquenta foi então coberta com o casaco de alguém e despachada em um táxi, se safando de uma baita despesa".

Memórias também não faltam à cabeleireira Gilselda Paltian, 57 anos. Indicada por uma amiga garçonete e movida mais por curiosidade que por aperto financeiro, ela desempenhou funções de barwoman na casa durante o segundo semestre de 1993, fornecendo bem mais do que coquetéis caprichados. "Como sempre fui bastante comunicativa, o balcão também servia como um tipo de consultório sentimental, porque o álcool ajudava muita gente a colocar para fora suas decepções amorosas", diverte-se. "Tirando a parte da bebida, não deixa de ser algo parecido com os desabafos de vários dos meus clientes no salão de beleza onde trabalho hoje."

Outra passagem singular se deu no final da década de 1980, quando a boate passara a realizar shows com veteranos do segundo escalão da música popular brasileira (Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Renato & Seus Blue Caps etc.), em promoções com ingressos esgotados antecipadamente e uma rara harmonia entre informalidade e profissionalismo. Quem trabalhou na casa lembra - sem revelar nomes - de um artista de fama nacional, contratado para subir ao palco às 22h mas que só apareceu bem depois da meia-noite, com uma desculpa qualquer: ele terminou barrado no próprio espetáculo, enquanto uma plateia já impaciente recebia de volta o dinheiro.
Mas houve também um momento sombrio na história do estabelecimento. A data ninguém sabe mais ao certo, menos ainda o motivo: um sujeito que aparentemente curtia o movimento junto à borda da pista simplesmente disparou um tiro de revólver contra a própria cabeça. O estampido embaralhado pelo som da música ao vivo não permitiu que todo mundo percebesse o que se passava, enquanto o suicida era levado agonizante até o Hospital de Pronto Socorro (HPS), a oito quadras dali. "Não faço ideia de como ele conseguiu ingressar armado, pois nossa revista é rigorosa", frisou o dono em depoimento ao delegado responsável pela investigação, na época do incidente.
 

Anos difíceis

Já em sociedade com a esposa Sônia Godinho (que conhecera em uma noite de 1990 no Choppão, icônico restaurante-dançante do estádio do Inter), Rubens promoveu de garçonete a promoter a incansável Luciane Dalbosco, então acadêmica de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs) e que recém trocara Canoas pela Capital. "Eu e Sônia percorríamos faculdades e outros lugares, fazendo contatos, afixando cartazes e distribuindo convites, em uma estratégia de promoção constante para manter o pique", recorda a hoje servidora pública de 52 anos. "Foi um período marcante, inclusive conheci meu primeiro marido em uma festa na casa."
À divulgação intensa somaram-se melhorias no ambiente, contemplando itens como pista, bar e decoração. Cozinha, escritório e depósito, por sua vez, ganharam em 1993 um espaço próprio, com o aluguel do apartamento logo acima da boate e que até então abrigava - acredite - um residencial geriátrico. Empolgado, no ano seguinte Rubens tomou uma decisão da qual se arrependeria. "Esse primeiro andar dava acesso a um pátio nos fundos do edifício, então resolvi construir ali uma extensão do térreo. Fui imprudente. O dono não gostou e tive que desfazer a obra, desperdiçando duplamente o investimento".
Sina comum a muitos dos melhores enredos envolvendo esse tipo de aventura, o prejuízo gerado pelo passo maior que a perna colocou o movimento em uma rota de declínio que faria Rubens ligar o sinal amarelo no segundo semestre do ano seguinte. Sua avaliação posterior: "Até problemas menores foram determinantes no processo de esvaziamento da casa, naquela fase em que tudo começa a dar errado. Um exemplo foi a notícia de que certo clube de Porto Alegre tinha cancelado uma série de festas intituladas 'Anos Dourados', informação que levou muita gente ao mal-entendido de que nossa boate é que estava fechada".
Apostando em uma última bala de prata, Rubens e Sônia aproveitaram o verão de 1995 para mudanças na roupagem interna da casa e uma novidade radical em seu luminoso, que passava a ostentar o nome Taverna di Bacco. Mas nem apelo à divindade boêmia pôde salvar o negócio. "Essa segunda casa, que tinha basicamente o mesmo público anterior, já nasceu na UTI", compara a parceira de vida e negócio. "Não deu certo e ainda gerou dívidas incompatíveis com o faturamento, então o jeito foi colocar um ponto final, meses depois. O que vale mesmo é a história da Anos Dourados, um lugar maravilhoso enquanto durou." 

Outros capítulos seriam ali vividos pelas décadas seguintes, com novo senhorio e uma sequência de inquilinos. Alugado durante três anos a uma franquia dos Correios que se limitou a utilizá-lo como depósito, o espaço teve retomada sua vocação noturna ao hospedar as boates Som Brasil (1998-1999) e Gê Powers (2000-2005), desativada após o assassinato de duas pessoas por atiradores (a marca de um dos disparos permanece junto à porta do prédio anexo, onde residem duas famílias). Depois chegaram brique de móveis, vidraçaria, imobiliária, dois bares moderninhos e, por fim, uma lancheria transferida do bairro Menino Deus em maio passado.

Enquanto isso, Rubens e Sônia voltaram às suas atividades originais. Ela como psicóloga na Trensurb (da qual estivera licenciada) e ele - já desfeito do motel e dos três postos de combustíveis que mantivera em paralelo - ao aceitar convite para advogar em um escritório de Direito. A parceria administrativa do casal foi retomada em 2007 com a abertura da Kanguruh, empresa de recursos humanos especializada na seleção de babás, copeiros e outros empregados domésticos. E foi em seu escritório, cinco anos atrás, que o casal concedeu duas longas entrevistas a um projeto de pesquisa deste repórter sobre a vida boêmia porto-alegrense.

O segundo e último encontro foi sublinhado por uma declaração surpreendente. "Essa conversa sobre a Anos Dourados me deixou com vontade, pela primeira vez em muito tempo, de abrir novamente uma boate. Estou falando sério", confidenciou o empresário. Mas a ideia ficaria arquivada para sempre: após longa batalha contra um câncer, Rubens Reinheimer faleceu em 11 de setembro de 2021, deixando como legado uma combinação de camaradagem e empreendedorismo ainda hoje lembrada pela presença de quase uma década naquele trecho da Cidade Baixa. A julgar pelos comentários gerais, a casa bem que poderia ter se chamado "Anos Incríveis".

Cidade Baixa noturna em 1988-1995

Anos Dourados (Rua José do Patrocínio nº 904)
Sandália de Prata (Rua José do Patrocínio nº 885)
Opinião (Rua José do Patrocínio nº 834)
Aconchego (Rua José do Patrocínio nº 588)
Flash (Rua José do Patrocínio nº 527)
Carinhoso (Rua Joaquim Nabuco nº 288)
Fly Bar (Rua Joaquim Nabuco nº 397)
Peccados Mortaes (Praça Garibaldi nº 64)
Clube da Saudade (Rua Aureliano de Figueiredo Pinto Nº 984)
Blue & Jazz (Rua Aureliano de Figueiredo Pinto nº 998)
Estância de São Pedro (Rua João Alfredo nº 387)
Van Gogh (Rua da República nº 14)
Café Antártico (Rua da República nº 174)
João de Barro (Rua da República nº 576)
Bar do Beto (Rua Sarmento Leite nº 929)
Zelig (Rua Sarmento Leite nº 1.086)
Átrio (avenida João Pessoa nº 599)
 

* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: portonoitealegre@gmail.com