La Camorra: uma boate especialmente construída na avenida Goethe

Um dos ícones boêmios da década de 1990, La Camorra foi caso raro de boate instalada em imóvel especialmente construído com esse objetivo

Por Marcello Campos

Um dos ícones boêmios da avenida Goethe na década de 1990, La Camorra marcou, em cinco intensos anos, a memória noturna de Porto Alegre
Dentre as quase mil casas noturnas que já movimentaram Porto Alegre com seus jogos de luz e penumbra, mais de 99% foram instaladas em alguma construção pré-existente, bastando para isso reformas, adaptações e improvisos. Residência, loja, garagem, depósito, galpão, cineteatro. Até um apartamento e a fuselagem de um avião já serviram a tal propósito. Sem contar, por óbvio, as que sucederam negócio similar em determinado endereço. Foram, portanto, pouquíssimos os imóveis especialmente erguidos para empreendimentos do ramo - afinal, há que se ter bala-na-agulha para tamanho arrojo em uma das atividades mais sujeitas a riscos e incertezas.

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Ícone boêmio da Goethe

O imóvel executado sob medida pela Diplan Engenharia oferecia vantagens consideráveis, a começar pela planta que já atendia exigências de isolamento acústico e prevenção de incêndios, dentre outros aspectos inerentes a uma casa noturna. "Mesmo com legislação menos rígida que a atual, houve todo um cuidado em cada detalhe. Isso não impediu uma tramitação complexa junto à prefeitura", explica a arquiteta Valéria Ferreira de Gaspari, 64 anos e autora do projeto - convite motivado por sua assinatura na montagem de endereços de sucesso como o próprio Roseplace e o icônico restaurante Il Gattopardo (1989-2002), também na 24 de Outubro.
Junto à escada de acesso, o nome "La Camorra - Circolo Notturno" e a logomarca com a figura estilizada de um gângster no painel em back-light refletiam o gosto de José Augusto Faillace Krause pelo glamour estético dos filmes inspirados na máfia ítalo-americana. A referência à organização criminosa criada em Nápoles no século de 1600 (e cujas ramificações em diversos países a tornaram uma das maiores do gênero) não tinha grande influência no conceito da boate, salvo por textos alusivos em alguns folders e pelo "Il Capo", restaurante interno de janelões com vista para a avenida e atrativos capazes de satisfazer à mesa os mais exigentes chefões de Chicago.
 
 

Menu: culinária internacional com quatro opções de congro, duas de camarões, três de aves e quatro de carnes, além de duas entradas frias e três quentes. "Filé à moscovita ao molho de caviar, côngrio com queijo roquefort, camarão à grega, Pato à L'orange e o 'Fettuccine à Il Capo' já conquistaram aficionados", elogiou uma reportagem gastronômica da época. Graças a uma cozinha funcionando madrugada adentro, esses e outros pratos - incluindo opções mais simples, como fricassê, estrogonofe e petiscos tradicionais - eram servidos em um ambiente privê com isolamento acústico ou então no mezanino, para quem não quisesse perder de vista a movimentação da casa.

Já no cardápio sonoro, a boate servia como entrada uma seleção de músicas mais lentas, permitindo bailar juntinho. Sade, Frank Sinatra, Roberta Flack, George Michael etc., intercalados com outras mais embaladas. Às 23h30min, um jogo especial de luzes em sincronia com o famoso trecho de abertura da cantata Carmina Burana (composta pelo alemão Carl Orff em 1936) anunciava a abertura "oficial" da pista. Prato principal: pop dançante, hits radiofônicos, flash-back e tendências como a emergente axé music de Daniela Mercury, com direito a novas incursões pelo repertório romântico em quatro blocos de 15 minutos até o fim da jornada, por volta das 5h.

A trilha coube a DJs como Zazo, Pacheco, Borges, "Sueco" e Udo. Hoje com 55 anos e empresário do ramo de sonorização, Udo Werner relembra os tempos de cabine, em 1994-1995: "Uma vez o gerente surgiu preocupado em como eu abriria os trabalhos, porque no segundo piso um evento particular reunia quarentões e no térreo tinha a festa da liga antitabagismo. O jeito foi rodar a versão ragga do grupo Skank para o rock É Proibido Fumar, do Roberto Carlos. As duas turmas lotaram a pista! Em outra ocasião, ganhei 50 reais (R$ 524 em valores corrigidos) de um coroa que me enviou pelo garçom um pedido para tocar algo do Julio Iglesias".

Era trabalho pegado de terça a sábado, às vezes com alguma programação especial no domingo ou segunda-feira - incluindo as antológicas "Festas da Bia", promovidas por Beatriz Bacelar em algumas das mais concorridas casas noturnas da capital gaúcha desde a década anterior. O aprendizado nas pick-ups se dava na prática, em um tempo no qual não havia curso de disc-jockey, nem internet para baixar músicas ou se manter informado sobre as novidades do hit parade mundial. Na comemoração do Ano Novo de 1996, por exemplo, nem mesmo uma pane no ar-condicionado central impediu que o agito prosseguisse com casa lotada até as oito da manhã.

Mudança estética

No verão de 1997, Krause considerou que mais de três anos de funcionamento do La Camorra já era tempo suficiente para a segunda repaginada no espaço desde a sua inauguração. Cerca de 40 dias de obras foram norteados pela troca de uma configuração clássica e rebuscada por uma atmosfera mais clean e descontraída, sem prejuízo à elegância. A reabertura, em 8 de março, trouxe mudanças estéticas merecedoras de holofotes nos principais jornais, em meio a um movimento quase sincronizado de concorrentes que também retomavam atividades após pausas estratégicas para reformas e ampliações - Dado Bier, Opinião, Refinaria, Cord, Strike 410.
Cardápio mais enxuto. Pista de dança ampliada. Mesas com tampo em mármore italiano bruto. Paredes com espelhos e painéis de tecido em vez de quadros artísticos. Cores que privilegiavam a harmonização entre tons claros e terrosos, como amarelo-ocre, marrom-telha e bege-areia - do lado de fora, ao branco-creme da fachada somou-se um moderno diálogo entre verde-turquesa e salmão-terracota. "Foi muito bacana realizar um trabalho com essa visibilidade pública, pois quem desenvolve projetos de interiores geralmente acaba mais restrito a casas, escritórios e outros ambientes particulares", orgulha-se a arquiteta Lívia Bortoncello, 58 anos.
A indicação de seu nome para a tarefa, aliás, havia partido do relações-públicas Jacintho Pilla, um dos quase 35 colaboradores abrangidos pela folha de pagamento do La Camorra. Figura essencial para o sucesso desse e de outros tantos estabelecimentos do gênero, ele puxa recordações pessoais e profissionais como a comemoração de seu 40º aniversário (com lotação esgotada) e a satisfação em ter José Augusto Faillace Krause como chefe: "Eu não conhecia o 'Ovelha' quando fui contratado e ele se mostrou uma grata surpresa, como homem gentil e empresário extremamente profissional, correto e aberto a ideias, sempre dando carta branca para eventos e iniciativas". 

Jacintho, que prossegue em plena atividade aos 66 anos, recorda um fato pitoresco que tantas vezes testemunhou e ainda o leva às gargalhadas, tendo como protagonista o comunicador televisivo mais especializado do Rio Grande do Sul quando o assunto são as badalações elegantes da vida noturna: "Meu querido amigo Xicão Tofani era morador de uma cobertura no edifício Plaza Goethe, localizado na calçada oposta (a 190 metros em linha diagonal). Quando ele não estava trabalhando e batia aquela fome por volta das três da manhã, atravessava a avenida, de sobretudo e óculos escuros, para comer filé à xadrez em um dos balcões do La Camorra".

Xicão não só confirma a história como esbanja admiração pelo lugar, que considera um dos mais fashion já produzidos pela cidade. "Desde a inauguração que sacudiu Porto Alegre, o La Camorra era uma balada de altíssimo nível, com muita gente bonita, além das festas de formatura, aniversários e desfiles de moda", enumera o hoje comentarista da Rede Pampa de Comunicação. Em seu livro Vivendo a Noite (Ed. Melhorpubli, 2019), ele menciona uma curiosidade dos tempos em que gravava naquele ambiente vários de seus programas: o uso do generoso recuo em frente à entrada como cenário para festas de lançamento de automóveis.

Na mesma publicação ele retrocede a 1994 para compartilhar um lance que marcaria sua vida. Tudo começou ao atender o pedido de um amigo galanteador (Alexandre Diamante, já falecido) para que entregasse buquê de flores a uma linda mulher sentada junto a uma das mesas da boate, já lotada. Acontece que, ao deparar com a beldade, Xicão se apaixonou perdidamente, passando a cortejá-la. "Essa moça veio a ser minha noiva durante um ano e meio, tornando-se também colega de profissão e depois uma pessoa importante no meu passado. Quanto ao amigo, expliquei a situação e pedi desculpas pelo acontecimento, de forma que tudo ficou resolvido."

Novos inquilinos

Em um mapa pontilhado por dezenas de alternativas para quem curtia os prazeres da vida noturna, algumas em concorrência direta, o primeiro semestre de 1998 manteve o fluxo de clientes aquém do desejado. Krause continuava a fazer tudo da melhor forma, sem descuidar da qualidade (e com mais tempo disponível desde a venda do Roseplace, meses antes), mas as coisas já não andavam mais como no auge. "O resultado foi um desânimo que me levou a desfazer do negócio", lamenta. "Restou essa experiência que me trouxe momentos inesquecíveis, como em uma festa de réveillon em que instalamos uma cascata de fogos de artifício no topo do edifício."
Sua ligação com o ramo ainda renderia um breve e corajoso capítulo, a partir de outra decisão, que já vinha sendo amadurecida: morar novamente nos Estados Unidos, 15 anos depois. Foi quando Miami entrou no radar como território para a investida em uma segunda versão do La Camorra. "Cheguei a escolher um local no badaladíssimo distrito de South Beach, só que outro sujeito entrou na disputa e acabou levando a melhor, afinal ele era um dos irmãos da cantora Madonna", revela Krause, que então deu por encerrada a carreira de empresário da noite, passando a atuar em outras frentes - ele permaneceu na Flórida até pegar o avião de volta para Porto Alegre em 2002.
Enquanto isso, o número 89 da Goethe se mantinha presente no roteiro do entretenimento, ainda que sem o mesmo protagonismo que, durante seus cinco anos iniciais, ajudara a alavancar o perfil boêmio da região. O proprietário seguinte aproveitou a infraestrutura e o apelido-corruptela pelo qual a boate já era carinhosamente conhecida, alterando o letreiro para Laca Club (1998-2002), na onda do pagode. Depois virou Café do Rock (2002-2006), que, apesar do nome, estava mais voltado ao samba e dance music. Mais tarde foi a vez de um bingo e, desde 2008, a casa de jogos Ypiranga Poker Club, atualmente uma das escassas atrações da região para quem curte dormir tarde.
 

Boates instaladas em imóveis especialmente construídos

Os estabelecimentos noturnos que ocuparam casas ou prédios erguidos com essa finalidade compõem uma minoria diante do vasto universo boêmio do segmento na Porto Alegre das últimas décadas. Mas têm moldura cativa na galeria afetiva da cidade, principalmente para quem fez da década de 1990 o seu momento para aventuras dançantes, amorosas e etílicas.
Confira, a seguir, alguns dos locais mais lembrados - correções e acréscimos são bem-vindos, bastando para isso enviar mensagem para o e-mail
portonoitealegre@gmail.com.
Lajos Night Club
Boa Vista, 1963-1970
Looking Glass
Menino Deus, 1978-1981
L'Atmosphere
Floresta, 1990-1996
Ópera Rock
Três Figueiras, 1991-1993
La Camorra
Rio Branco, 1993-1998
Dado Bier
Chácara das Pedras, 1995-2000
 
A noite na avenida Goethe e entorno nos anos 1990
Quem viveu a boemia em torno da Goethe certamente passou por vários desses lugares:
BARES
Anonimato
Kripton
600
Hook
Arubar
Tropical
 
BOATES
Malibu/Manara
Rodeo Drive
Sgt. Peppers
Alambique's
Trivial
Mika & Holmes
Barong
Vollare
Press
Venezza
 
 
 
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses.