Disco de estreia de Nei Lisboa, 'Pra Viajar no Cosmos' completa 40 anos

Há 40 anos, Nei Lisboa lançava Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina, disco que marcou uma geração e ajudou a moldar a música urbana gaúcha

Por Daniel Sanes

Há 40 anos, Nei Lisboa lançava Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina, disco que marcou uma geração e ajudou a moldar a música urbana gaúcha
Bom Fim, Porto Alegre, 1980. A efervescência do bairro, antes concentrada na Esquina Maldita - como era conhecido o cruzamento da avenida Osvaldo Aranha com a rua Sarmento Leite, nos arredores da Ufrgs - já havia começado a migrar para o entorno da João Telles. Em dezembro, aquele se tornaria o endereço da "fauna ensandecida do Ocidente", que circulava entre bares como João, Lola, Luar Luar, Cais, Escaler, Fedor e, mais tarde, bateria ponto na Lancheria do Parque.
A alguns metros do "fervo", no 10º andar de um prédio na avenida Cauduro, os jovens Nei e Augustinho tentam encontrar o título para uma composição que desejam inscrever no Musipuc. O festival, notório por revelar grandes nomes da música gaúcha, fora interrompido por dois anos, mas ganharia nova edição em novembro.
À mesa da cozinha, saboreando um cafezinho feito pela mãe de Nei, Dona Clélia, um deles solta:
— Pra viajar no Cosmos…
E o outro emenda:
— …não precisa gasolina.
"Não lembro quem falou primeiro e quem completou, tipo Rei do Gatilho do Moreira da Silva: 'Eu garanto que foi ele / Ele garante que fui eu'", brinca o guitarrista Augusto Licks, ao recontar a história.
Nei Lisboa corrobora a versão do antigo parceiro musical, mas sem muita certeza. "Foi algo assim… Só não lembrava das circunstâncias, de que tinha sido pra inscrever no festival", diz.
O fato é que o nome encaixou como uma luva para a canção, um blues malandro com o espírito daquela virada de década. E, de tão impactante, também batizou o primeiro disco de Nei. Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina seria lançado bem depois do Musipuc - de forma independente, em setembro de 1983.
Dois anos antes, a faixa-título, até então conhecida apenas por quem frequentava o circuito de shows independentes da cidade, chegava a um público mais amplo. O radialista Mauro Borba lembra do dia em que um jovem tímido de cabelos compridos foi até o estúdio da Bandeirantes FM (que logo viraria Ipanema), na avenida José Bonifácio, levando uma versão demo de Pra Viajar no Cosmos… Era o próprio Nei, na época com 22 anos.
"Foi em 1981. Ele tinha gravado essa fita rolo no estúdio da (gravadora) Isaec e apareceu lá porque a emissora era uma das poucas que davam espaço para quem estava começando. A aceitação foi muito boa, a música começou a rodar direto na programação", afirma.
Seja retratando a paisagem metropolitana (como em Berlim-Bom Fim, aquela da "fauna ensandecida do Ocidente", de Carecas da Jamaica), seja expondo as cicatrizes deixadas pelo regime militar (E a revolução, de Cena Beatnik, uma homenagem a seu irmão mais velho, o poeta e guerrilheiro Luiz Eurico, assassinado em 1972), Nei se consagrou como um cronista musical da Capital. "Me criei no entorno da Redenção, quase de frente para o Araújo Vianna. Não há como negar meu vínculo com o bairro, sobretudo lá no início da carreira. Pra Viajar no Cosmos… é fruto dessas vivências", concorda o cantor.
Para o músico, pesquisador e jornalista Arthur de Faria, essa habilidade faz de Nei Lisboa "um dos poucos compositores do Estado no nível de Lupicínio Rodrigues". Em trecho inédito de um dos próximos volumes da série Porto Alegre: Uma Biografia Musical (o primeiro livro saiu no ano passado, pela Arquipélago Editorial), Faria o inclui no "quarteto dos mais significativos cantautores gaúchos dos últimos 25 anos do século XX". "Se Vitor (Ramil) e Bebeto (Alves) dedicaram sua vida a conectar o mundo e o pampa, e Nelson (Coelho de Castro) é um mestre da tradição emepebística, Nei é quem vai se tornar o porta-voz da juventude urbana porto-alegrense ao longo desse tempo."
Quarenta anos depois, o impacto do álbum de estreia de Nei Lisboa é indiscutível, assim como seu papel na cena cultural do Rio Grande do Sul. Na época, porém, esse caxiense que tão bem cantou a vida na Capital era um novato lutando por espaço. E, até chegar ao tão sonhado primeiro LP, haveria um bom caminho a percorrer. Não tão longo quanto uma viagem cósmica, mas certamente com muita gasolina pra queimar.
 

De Caxias para o Bom Fim

Caçula de uma família de quatro meninas e três meninos, Nei Lisboa nasceu em 18 de janeiro de 1959, em Caxias do Sul. Mas a permanência na Serra foi curta. Seus pais, Eurico de Siqueira Lisbôa e Clélia Tejera Lisbôa (o compositor optou por "abolir" o acento circunflexo ao ver que seu nome era constantemente escrito errado) se mudaram para Porto Alegre quando ele tinha seis anos.
Aos oito, começou a ter aulas de violão no Liceu Musical Palestrina. Nessa época, chegou a se apresentar no Theatro São Pedro com outras crianças - uma estreia "não oficial" nos palcos.
Depois, largou o instrumento por uns tempos. Até que, aos 16 anos, foi aprovado em um intercâmbio para concluir o Ensino Médio nos Estados Unidos. Se mudou para a ensolarada Califórnia, mas, em vez de Los Angeles ou San Francisco, foi parar em uma desértica cidadezinha chamada Barstow.
"Fiquei um tanto solitário. De certa forma, aquilo virou uma espécie de prisão", reflete Nei. Logo fez amizade com um violão largado em um armário da casa onde vivia e comprou songbooks que, se não deram fim à solidão, o ajudaram na prática do idioma estrangeiro - e das seis cordas. Com clássicos de nomes como Elton John e Paul Simon, esse repertório seria revisitado décadas depois, no disco Hi-fi (1998).
Ainda nos EUA, compôs a primeira música, uma ode ao proletariado em inglês "macarrônico". Inscreveu a canção em um festival de igreja, ficando em oitavo (e último) lugar. Mas isso era o que menos importava. A essa altura, já estava decidido a ser músico.
Na volta ao Brasil, em 1976, presta vestibular para Composição e Regência na Ufrgs. Não chega a concluir o curso, mas é na faculdade que acaba conhecendo algumas pessoas importantes em sua trajetória artística - entre eles, o pianista Glauco Sagebin (já falecido) e o guitarrista Augusto Licks. Este último, que depois ganharia fama com os Engenheiros do Hawaii, se torna seu principal parceiro nesses primeiros anos.
A exemplo de Nei, Licks foi para os EUA via American Field Service (AFS). De boa memória, o instrumentista lembra que sua turma participou da seleção de novos intercambistas, incluindo "um menino de óculos do Colégio Aplicação". "Só fui ter noção da musicalidade do Nei quando eu fazia Jornalismo na Ufrgs e surgiram as Entradas Francas, rodas de violão que aconteciam em diretórios acadêmicos de diferentes faculdades", conta.
Em evento similar, na Faculdade de Medicina, o guitarrista foi prestigiar o amigo Luiz Carlos Galli "Boina", que conhecia desde antes do intercâmbio. "Fiquei impressionado com sua interpretação em uma canção irônica e divertida. Após a apresentação, ele me falou que era do 'Neizinho' do AFS. Em pouco tempo, Nei e eu começamos a nos apresentar como dupla nas Entradas."
 

Um ano de mudanças

O inverno de 1979 foi marcante para Nei Lisboa. Após sete anos de sofrimento, sua família descobriu que Luiz Eurico havia sido enterrado em um cemitério em São Paulo, com o nome de Nelson Bueno. A localização do primeiro corpo de um desaparecido político morto pela ditadura teve repercussão nacional. Evidentemente, o episódio deixaria marcas na vida do artista, inclusive em sua obra.
No âmbito musical, as coisas começavam a engrenar. Conheceu Gelson Oliveira, um jovem compositor negro que também lutava por espaço. Juntos, fizeram uma minitemporada no Clube de Cultura, de 15 a 17 de de junho.
"Eu estava começando a carreira. Então o Augusto me sugeriu alguns shows em teatro, e disse que iria me apresentar um cara que poderia estar interessado também. Na época, o pessoal ficava tocando violão no entorno do Araújo. Foi ali que conheci o tal Neizinho!", recorda Gelson.
Para ver se dava liga, cada um mostrou algumas composições para o outro. Gostaram do que ouviram e decidiram se unir para a série de shows, intitulada Lado a Lado. No repertório de Nei, destaque para Doody II, que entraria no primeiro disco.
 

Retrato de uma geração

Por volta de outubro de 1979, Porto Alegre amanheceu pichada com os dizeres "Deu pra ti, anos 70". Uma frase que sintetizava o pensamento dos jovens, cansados da opressão. E dava nome ao novo show de Nei e Licks.
A ideia era fazer um espetáculo mais profissional, com banda completa e até programa com as letras das músicas. Depois de meses de preparativos e pichações, o show acabou sendo apresentado em um único fim de semana, no Teatro Renascença. Seu impacto seria maior no cinema: simpáticos à ideia, os cineastas Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti a usaram para batizar seu filme de estreia.
"A princípio, parecia que alguém estava usando a gíria do momento para espantar a década que ia acabando e chamar o novo. Era isso, claro, mas também o anúncio do show. Quando ficamos sabendo o verdadeiro significado das inscrições nos muros, resolvemos que tínhamos que filmar aquilo, de alguma forma", explica Giba. Nei e Licks escreveram a trilha de Deu pra Ti, Anos 70 e fizeram uma ponta no filme. Lançado em março de 1981, o longa venceu o Festival de Gramado daquele ano.
Fora das telas, pouco havia mudado. Ainda sem disco, a dupla fazia pequenas apresentações - como o espetáculo Só Blues -, posteriormente ganhando o reforço de Glauco, Boina e outros músicos, no show Verde.
Em 21 de novembro de 1980, veio o Musipuc. Foi um sucesso: enquanto cantava o trecho "o povo passa fome / o povo quer comer", de Pra Viajar no Cosmos..., Nei jogava pedaços de pão para a plateia. A bem-humorada performance rendeu ao artista o prêmio de melhor intérprete do festival.
Empolgado com a repercussão, o cantor resolve registrar a faixa em estúdio. À época namorada do músico Felipe Franco, amigo de Nei, a produtora Bebê Baumgarten tem uma lembrança vívida desse momento. "A gente ia pro estúdio da Isaec para acompanhar as gravações. Ficávamos lá na antessala ouvindo Nei, Augustinho e banda tocando pela primeira vez com aquela produção maravilhosa! Até hoje ouço o disco e lembro daquele período, de uma adolescência marcada por descobertas."
 

Crowdfunding analógico

Show na reitoria da Ufrgs não era pra qualquer um. Por isso, Nelson Coelho de Castro, que já tinha na bagagem o compacto Faz a cabeça (1979) e logo lançaria Juntos (1981), o primeiro LP independente da música gaúcha, queria causar boa impressão. Seu desejo era tocar com um violão Ovation, raridade na época. "Além do Sílvio Marques, do Saracura, só o Nei tinha esse instrumento em Porto Alegre. Me apresentei dizendo que trabalhava com o Nelson e queria alugar o violão. Surpreendentemente, ele emprestou, sem cobrar nada", afirma a produtora Dedé Ribeiro.
Tempos depois, Nei apareceu na casa dela perguntando se não poderia produzi-lo também. Foi o começo de um namoro e também de uma parceria profissional. "Estávamos juntos há um mês e eu ainda não tinha ouvido o Nei cantando. Então fui vê-lo em um show coletivo no Araújo. Quando começou Pra Viajar no Cosmos…, fiquei passada: 'Eu não acredito que esse gurizinho tem essa voz toda!'", diverte-se.
Por meio da produtora Lance Livre, da qual era sócia na época, Dedé incluiu Nei em um edital para ocupação do Teatro Renascença. Intitulado Vem Comigo Neste Barco Azul, o espetáculo de 1982 marcou a estreia solo do músico.
O próximo passo seria a gravação do disco. Para isso, a produtora aproveitou a mesma ideia que havia sido usada em Juntos: vender o trabalho de forma antecipada, uma espécie de crowdfunding pré-internet.
O próprio Nelson, após uma apresentação conjunta no Litoral, tratou de incentivar o colega. "Lembro que o Nei ainda aguardava convite de gravadora, mas o tempo estava passando… Então fiquei pilhando pra que ele corresse atrás", diz o cantor.
Intitulada Nei Lisbônus, a campanha de financiamento incluiu um show no Renascença, já em 1983. Com duas músicas tocando no rádio (a segunda era Não me Pergunte a Hora, que havia rendido mais um prêmio de intérprete no Musipuc) e outras tantas na trilha de Deu pra Ti, Nei ofereceu ao público a chance de escolher sete das 11 faixas que entrariam no LP.
Mas o dinheiro não foi suficiente para bancar a ida a São Paulo, onde ocorreriam as gravações no estúdio Vice Versa, do falecido produtor Fernando Ribeiro, ex-marido de Dedé. "Eu tinha uma grana guardada, o Augusto também, e colocamos como adiantamento. Foi assim que conseguimos pagar as passagens", explica a produtora.
Com orçamento reduzido, os músicos embarcaram para a capital paulista de ônibus, em junho de 1983. A viagem foi descontraída, com direito a frango assado levado por Fernando Paiva - baterista de apenas 17 anos que precisou de autorização no cartório para se somar à trupe.
A animação logo foi substituída pelo estresse de três semanas de gravação. E não era para menos: durante o dia, ficavam o tempo todo no estúdio; à noite, dormiam amontoados na casa de Fernando Ribeiro.
"Foi uma convivência bem difícil", admite Nei, que não arriscou dar muitos pitacos na produção. "Ficou tudo a cargo do Fernando. No mais, houve um grande conflito de concepções sobre como o disco deveria soar. Colaborei pouco em termos de arranjos, que ficaram mais com o Augusto e o Glauco. Saí de lá desencantado".
Mesmo com todo o desgaste, o resultado foi positivo. Além das 500 cópias pré-vendidas por meio do Nei Lisbônus, as outras 2,5 mil venderam rapidinho. Posteriormente, o álbum foi licenciado pela gravadora ACIT, que o relançou também em CD, via selo Antídoto. Hoje, se encontra disponível apenas nas plataformas de streaming, sem previsão de nova prensagem.
 

"Não sou muito de nostalgia"

Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina é um álbum histórico por traduzir os anseios da juventude da época. Musicalmente, ao contrário do que poderiam sugerir os dois blues que viraram faixas de trabalho, é um caldeirão de estilos, indo do reggae ao jazz, sempre com a fina ironia de Nei.
Isso fica evidente nas referências debochadas à maconha, em Síndrome de abstinência (“Se essa seca durar mais um mês / Vou-me embora para o Paraguai”), e ao tradicionalismo, em Exaltação (“Entrei numa roda e me deram uma coisa para provar / Uma erva galhuda esverdeada e gostosa de chupar”). E, claro, em Rabo de foguete, em que a “prenda minha” é que vai-se embora.
 
No livro Prezados ouvintes – Histórias do Rádio e do Pop Rock (Artes e Ofícios, 2001), Mauro Borba resume a experiência de ouvir a faixa-título pela primeira vez. Uma descrição que, de certa forma, pode ser aplicada ao disco todo: “Pra viajar no cosmos não precisa gasolina. É lei. Todas as viagens estão aí. Todas as rodas de som na beira da praia, todos os baseados do fumódromo, todas as bandeiras e estrelas estão aí, nessa frase”.
 
Mas o trabalho está longe de ser o favorito de Nei. Não só pela insatisfação com o resultado final, mas também pelas composições, que prefere deixar de lado hoje em dia. “As músicas que toco de coração são as parcerias com o Augusto (Pra Viajar no Cosmos… e Não me Pergunte a Hora). Não é um repertório que eu ache muito maduro”, confessa.
 
O artista entende que o LP abriu portas para ele e teve importância para toda uma geração. “É difícil desgostar de algo que as pessoas consideram um clássico. Mas eu não sou muito de nostalgia”, diz. Para justificar seu ponto, lembra que este ano há nada menos que quatro discos seus aniversariando – os outros são Amém (1993), Relógios de Sol (2003) e A Vida Inteira (2013).
 
“Tenho todos os motivos do mundo pra comemorações. Só que a gente vive muito disso: 15 anos de não sei o quê, 27 do show tal… Eu mesmo já fiz o Duplo H, em 2018 (pelos aniversários de 20 e 30 anos de Hi-Fi e Hein?!, respectivamente)”, recorda. “Quero olhar mais pra frente, pensar um repertório novo (o último registro inédito foi o EP Pandora, de 2021). Essas coisas meio que te prendem. Mas vai ser bem difícil não fazer alguma coisa pra comemorar”, finaliza, aos risos.

Uma capa icônica

Na famosa capa de Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina, Nei Lisboa aparece em um cenário pouco iluminado, com um cigarro na boca e olhar provocador. O responsável pela imagem é Roberto Silva, fotógrafo e artista gráfico que também criou a arte do Nei Lisbônus. "Fizemos a foto de forma bem espontânea, perto da Lancheria do Parque. A ideia da pose foi do Nei mesmo", afirma Silva, que ainda trabalharia com o músico em Noves Fora (1984), Carecas da Jamaica (1987), Hein?! (1988) e Amém (1993). E reflete bem o conteúdo do disco, "filho de uma época dura", como observa o cantor: "A ditadura se manifestava com muita violência no final dos anos 1970. A polícia colocava a gente contra a parede na Osvaldo, invadia bares. Nesse início de 1980 ocorreu uma certa distensão em relação a isso, com mais liberação do corpo, do desejo, de ultrapassar a linha do que é permitido ou não". Por todas essas questões, Nei reconhece que parte do sucesso do LP pode ser atribuído à capa. "O pessoal adorou! Aquele cigarro pendurado era uma alusão a um baseado, uma afronta ao bom-mocismo, à obediência. Hoje, isso não chocaria ninguém", ri.
 

 
*Daniel Sanes é jornalista formado pela Universidade Católica de Pelotas. Já foi repórter e editor no Jornal do Comércio. Hoje, atua como freelancer.