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Reportagem Cultural

- Publicada em 03 de Novembro de 2022 às 18:49

José Antônio Severo, um repórter na história, tem vida celebrada com lançamento de livro

Lançamento de livro A Independência Além do Grito marca homenagens a jornalista gaúcho, falecido em setembro do ano passado

Lançamento de livro A Independência Além do Grito marca homenagens a jornalista gaúcho, falecido em setembro do ano passado


/TÂNIA MEINERZ/ARQUIVO/JC
Para fazer sua última reportagem, o jornalista José Antônio Severo decidiu retroceder 200 anos na história do Brasil. Voltou ao período de uma década que vai do Congresso de Viena, em 1815, ao reconhecimento da Independência do Brasil por parte de Portugal, em 1825. Severo, infelizmente, não chegou a ver a reportagem concluída. Morto em 24 de setembro de 2021, aos 78 anos, vítima de uma parada cardíaca durante uma cirurgia, Severo seria lembrado e homenageado exatamente um ano depois com o lançamento do livro A Independência Além do Grito, consolidação da imensa reportagem que Severo estava escrevendo e que acabou sendo editada pelo também jornalista Elmar Bones, amigo de Severo por mais de meio século.
Para fazer sua última reportagem, o jornalista José Antônio Severo decidiu retroceder 200 anos na história do Brasil. Voltou ao período de uma década que vai do Congresso de Viena, em 1815, ao reconhecimento da Independência do Brasil por parte de Portugal, em 1825. Severo, infelizmente, não chegou a ver a reportagem concluída. Morto em 24 de setembro de 2021, aos 78 anos, vítima de uma parada cardíaca durante uma cirurgia, Severo seria lembrado e homenageado exatamente um ano depois com o lançamento do livro A Independência Além do Grito, consolidação da imensa reportagem que Severo estava escrevendo e que acabou sendo editada pelo também jornalista Elmar Bones, amigo de Severo por mais de meio século.
Próximos desde que foram para São Paulo no final dos anos 1960, quando integraram a primeira turma da Veja, Elmar e Severo estiveram ligados por toda vida. Além da própria Veja, os dois estiveram juntos em outras aventuras jornalísticas em São Paulo (na Gazeta Mercantil e na revista Repórter 3) e em Porto Alegre (na Folha da Manhã e no CooJornal). Nada mais natural, assim, que coubesse a Elmar a tarefa de finalizar a última reportagem do amigo e transformá-la em livro. Feito originalmente para subsidiar Independências, série em 16 capítulos que TV Cultura de São Paulo produziu e exibe desde o dia 7 de setembro, o trabalho de Severo reconstrói o panorama político e diplomático de um dos períodos cruciais da história do Brasil. A Severo e a Elmar juntou-se Enio Squeff, outro jornalista gaúcho, também da primeira turma da Veja, e que ficou responsável pelas ilustrações do livro. "Nos conhecemos em 1968, quando embarcamos no mesmo avião rumo a São Paulo para fazer parte de um grupo de estudantes e de jornalistas recém-formados que participaria de um curso que seria o embrião de uma nova revista da Editora Abril", recorda Squeff sobre o primeiro contato com Severo.
Interessado desde sempre pela história do Brasil e - mais ainda - pelos grandes conflitos armados acontecidos nas mais diversas regiões, Severo, com A Independência Além do Grito, completa um itinerário de pesquisas e de estudos em que analisou personagens e cenários para reconstituir momentos pouco lembrados ou, até mesmo, pouco conhecidos da história brasileira. Estava tão imerso na produção da obra que nem mesmo a doença que o levou ao hospital impediu seu trabalho, fazendo a revisão do texto já internado. Severo não viu o resultado, mas deixou uma obra importante, um testamento literário dos mais preciosos.
 

Um sujeito de amigos e de amizades

Elmar Bones (esquerda) assumiu conclusão do livro A Independência Além do Grito depois da morte de Severo

Elmar Bones (esquerda) assumiu conclusão do livro A Independência Além do Grito depois da morte de Severo


/TÂNIA MEINERZ/ARQUIVO/JC
Severo era um homem de muitos amigos. Amizades longas e variadas. Do jornalista Elmar Bones, seu mais próximo parceiro por mais de cinco décadas, ao general Hamilton Mourão, atual vice-presidente da República e senador eleito pelo Rio Grande do Sul; do ex-ministro da Agricultura e ex-diretor-presidente da Copesul, Luiz Fernando Cirne Lima, ao crítico musical e escritor Tárik de Souza; da jornalista e produtora cultural Maria Cotinha Duhá a Aldo Rebelo, ex-deputado pelo PCdoB, ex-presidente da Câmara dos Deputados e ex-ministro da Defesa no governo Dilma. Inclusive é de Rebelo - ligado inicialmente a Severo através de livros presenteados pela ex-senadora Ana Amélia Lemos, o que demonstra ainda mais a amplitude dos relacionamentos do jornalista gaúcho - o prefácio de A Independência Além do Grito. "Severo foi um grande amigo que fiz nos últimos anos. Apenas lamento não o ter conhecido antes, mas o tempo que convivemos foi o suficiente para que dividíssemos nossos interesses por períodos importantes da história brasileira", lembra Rebelo. "Tive o prazer de viajar com Severo por várias cidades do interior gaúcho e conhecer mais sobre temas e personagens que sempre me encantaram."
Em encontros em São Paulo e em Brasília, quase sempre em mesas com vinhos e carnes, Severo e Rebelo partilhavam inquietações históricas e recentes a respeito do Brasil. Os dois conversavam bastante, trocavam impressões, não apenas em temas históricos, mas também em assuntos contemporâneos. "Tínhamos preocupações com a ofensiva desagregadora do identitarismo patrocinado pelas corporações financeiras e multinacionais, financiado pelas bolsas generosas das fundações estrangeiras e protegido por grande parte de nossa academia", explica Rebelo. "Severo era o intérprete do Brasil que percebia com grande sensibilidade as armadilhas intelectuais e políticas dos modismos identitários a ameaçar as origens indígena, africana, portuguesa e mestiça do Brasil", completa.
Brasil, política e cultura eram outros temas que aproximavam Severo de Luiz Fernando Cirne Lima. "Eu primeiro conheci o Totonho, o talentoso filho do meu amigo Alberto Severo, advogado e produtor rural de Caçapava do Sul", lembra Cirne Lima, remontando uma amizade iniciada no começo da década de 1960, quando ambos frequentavam os gabinetes da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul, a Farsul. "Depois vi o Totonho se transformar em José Antônio Severo e trilhar uma das mais completas carreiras jornalísticas do Brasil", acrescenta Cirne Lima.
Amigos por mais de 60 anos, Cirne Lima e Severo estreitaram a relação na época em que o segundo foi assessor de imprensa do primeiro, quanto este estava no comando da Copesul. "Ali tínhamos um comitê que se reunia com frequência e era responsável por criar projetos, quase sempre de alcance amplo. Severo foi fundamental na definição do viés cultural e na aprovação de publicações importantes", ressalta Cirne Lima. "E nestas publicações destaco o talento do Severo no desenvolvimento do livro sobre o general Osório. Ele seria uma das poucas pessoas que conheço a reunir todo aquele volume de informação histórica", completa.

Detalhe da capa de 'A independência Além do Grito', de José Antônio Severo. Arte de Enio Squeff.

Detalhe da capa de 'A independência Além do Grito', de José Antônio Severo. Arte de Enio Squeff.


JA EDITORES/DIVULGAÇÃO/JC

Outra amizade, esta surgida em Buenos Aires em 1970, foi com o jornalista argentino Guillermo Piernes. Ele lembra que o fraterno convívio entre os dois começou quando ambos trabalharam juntos na criação da agência noticiosa Latin-Reuters, em Buenos Aires. Guillermo e Severo eram da mesma geração e tinham interesses semelhantes. A partir de então não mais perderam o contato, sempre próximos, ainda que por caminhos diferentes. Voltaram a trabalhar lado a lado na Gazeta Mercantil, responsáveis por um projeto de ampliação do jornal que visava atingir alguns países da América do Sul, em especial o Uruguai e a Argentina. "Não imagino melhor colega. Impossível um melhor amigo. Severo era generoso, leal, espirituoso, íntegro. Me apoiou em cada escorregão da vida e celebrou todas as minhas conquistas. Fui privilegiado em compartilhar muitas taças de vinho com Severo ao longo dos anos".

Guillermo além da amizade, ainda destaca o talento jornalístico: "Como repórter, o Severo sempre gostou de ficar atrás dos holofotes. Como grande observador, queria ter a melhor luz a seu favor. Quando farejava algo importante, havia a garantia de que ele voltaria sempre com uma boa história". E acrescenta a importância da capacidade agregadora que Severo sempre demonstrou: "Como chefe de uma redação, ele sempre transmitia calma, até nas piores horas, em busca da harmonia. Seu principal interesse era que todos se sentissem livres para lançar as ideias. Quando se chegava a uma conclusão, fazia que todos a tomassem como se fosse própria, para a melhor execução em equipe", garante Guillermo.

Outra amizade que atravessou fronteiras foi a de Severo com a jornalista Cotinha Duhá, sua amiga desde 1965 - "do nosso tempo de juventude e de bares em Porto Alegre". Gaúcha, há 43 anos radicada em Nova York, Cotinha esteve sempre próxima de Severo - em Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Miami e Nova York. Ela testemunha: "Acredito que o trabalho meticuloso de jornalista e de editor foram os primeiros rascunhos e que serviram como uma espécie de treino para que Severo formasse a sua obra literária."

"Me fizeste reviver velhas lembranças, e principalmente minha longa amizade com o Severo", emociona-se o jornalista Tárik de Souza ao ser provocado a recordar seu convívio. "Também fiz o curso da Abril, que iria escolher a equipe de jornalistas para o grande projeto da editora, e Severo já era um jornalista experiente e sempre inquieto - sua característica marcante. Assim, embora eu fosse um carioca exilado em São Paulo, me associei ao bloco gaúcho: Severo, Elmar, Enio Squeff e mais o Caio Fernando Abreu, que adiante seria revelado como escritor de sucesso". Anos depois daquela experiência inicial, Tárik e Severo voltariam a se encontrar e a amizade seria retomada, já com os dois morando no Rio de Janeiro, com Tárik trabalhando no Jornal do Brasil e Severo na Gazeta Mercantil. "Na volta da caminhada da praia, eu sempre passava em seu apartamento no Leblon para um dedo de prosa, e lá estava o inescapável vivente de Caçapava do Sul, enrolado em seu poncho e degustando o chimarrão bem quente, mesmo no verão".

Fascínio por letras e imagens

José Antônio Severo fez do fascínio pela história do Rio Grande do Sul e do Brasil material para várias obras literárias

José Antônio Severo fez do fascínio pela história do Rio Grande do Sul e do Brasil material para várias obras literárias


/Tânia Neimertz/divulgação/jc
Gaúcho de Caçapava do Sul, nascido em dezembro de 1942, Severo desde a infância teve uma sólida ligação com o campo. Primeiro em meio às lides campeiras na estância da família e, logo depois, aos 16 anos, quando veio para Porto Alegre com a intenção de se matricular na Escola Técnica de Agricultura de Viamão, da Ufrgs. A sequência natural deste vínculo foi um primeiro emprego na Secretaria Estadual da Agricultura, quando, então, descobriu um novo caminho profissional a partir da produção do Informativo Rural e Econômico. Seus relatos sobre temas ligados ao campo chamaram a atenção de outros jornalistas e, em 1964, Severo foi convidado para ser editor do suplemento rural do Jornal do Dia. Quatro anos depois uma nova mudança. Agora, Severo iria para São Paulo para integrar a primeira turma da redação da Veja. Logo depois, ele passaria ainda pelo O Estado de S. Paulo, Realidade, Exame, Agência Reuters e Gazeta Mercantil.
Severo teria uma rápida passagem de volta pelo Rio Grande do Sul comandando, ao lado de Elmar, a redação da Folha da Manhã, da Caldas Júnior, no começo dos anos 1970. Estrearia na literatura com A Invasão, em 1979, uma reportagem-ficção sobre uma mudança de regime político no Brasil. Logo a seguir viria A Guerra dos Cachorros (1983). "Severo transpôs para São Paulo o fenômeno das matilhas de cães selvagens que assolavam os campos nos tempos do Rio Grande primitivo", ressalta Elmar. "Seus primeiros livros, A Invasão e A Guerra dos Cachorros foram coquetéis perfeitos com as medidas justas de fatos, fantasias, críticas e humor", destaca Guillermo Piernes. "Severo não se limitou à ficção histórica gaúcha e brasileira. Ele atravessou o oceano, foi até a África, escrever sobre Angola", acrescenta Cotinha Duhá.
Além das letras, Severo se fascinou pelas imagens. Trabalhou anos na área de telejornalismo da Globo, da Band e da TV Cultura. Da proximidade com o escritor e cineasta Tabajara Ruas surgiu o Severo interessado em produção e roteiro cinematográfico. Escreveu então Os Senhores da Guerra, um romance histórico. "Acredito que quem melhor definiu o trabalho do Severo foi o ex-prefeito José Fogaça quando disse que considera Os Senhores da Guerra um dos textos mais eloquentes e arrebatadores da literatura rio-grandense, desses de se ler com sofreguidão e interesse do início ao fim", avalia Cotinha. Pela Copesul, com o apoio do amigo Cirne Lima, Severo lançaria o seu trabalho de maior fôlego, General Osório e seu Tempo, uma obra de quase mil páginas que traça um gigantesco painel da formação do extremo sul da América. "Gaúcho de estirpe, Severo tornou os temas locais universais, como todo escritor de caligrafia robusta. A Invasão, Os Senhores da Guerra, Rios de Sangue, Cinzas do Sul, A Guerra dos Cachorros e principalmente General Osório e seu Tempo traçam um amplo painel das peculiaridades sulistas do País, que geraram tantos mandatários políticos, e uma cultura de características autóctones, porém irradiadora e cosmopolita", resume Tárik.
A Independência Além do Grito fecha um ciclo. Severo teve problemas de saúde no início de 2021. "Embora tenha se recuperado, sua saúde ficou instável", lamenta Elmar. "Nos falávamos por telefone toda semana e eu jamais senti qualquer sinal de desânimo. Quando eu perguntava como ele estava, a resposta era sempre positiva", conta Cirne Lima, que só dias depois da morte do amigo soube que ele estava vivendo uma rotina de entradas e saídas dos hospitais.
Ativo, nos últimos dois anos de vida, Severo trabalhou na pesquisa para o roteiro da série produzida que deu origem ao último livro de sua autoria. "Trabalhou nele até o fim. Sua última revisão fez já no hospital", lembra Elmar. "Soube de sua morte pelo Lourenço Cazarré quando recebi dele a informação que em seu livro sobre Canudos, ele o dedicaria ao Severo, uma homenagem ao nosso amigo comum que havia partido para o 'infinito Pampa'", diz Squeff. Tárik resume o sentimento de muitos: "Lamentei sua morte como a de um irmão que se afasta, mas sempre esteve por perto. Comecei a impregnar-me da iconoclasta série Independências ainda sem saber que o projeto original era dele. Ganhou um significado ainda maior quando eu soube".
 

Trecho de A Independência Além do Grito

"Vamos começar mostrando o parto de nosso personagem, o Brasil. O primeiro vagido da nova soberania, em 1815, no Congresso de Viena, quando as grandes potências reconhecem o status de país independente, integrante singular do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e membro relevante da comunidade internacional.
Com suas dimensões continentais, com seu potencial econômico, populacional e político, a antiga colônia conferia ao colonizador o status de grande potência, e, assim, Portugal, alinhado aos vencedores da Guerra Peninsular contra Napoleão Bonaparte, adquiria credenciais para sentar-se ao lado das demais monarquias absolutistas e participar do novo desenho do mapa político mundial.
Nesse contexto, o Sete de Setembro foi a mudança política de uma nação já reconhecida e integrante do sistema internacional. Os eventos de 1822 serão o epicentro de um terremoto".
 
Obras de José Antônio Severo
LIVROS
- A Invasão (1979)
- A Guerra dos Cachorros (1983)
- Os Senhores da Guerra (2000)
- General Osório e seu Tempo (2008)
- Cinzas do Sul (2011)
- Rios de Sangue (2011)
- A Independência Além do Grito (2022)
 
FILMES
 
- Netto e o Domador de Cavalos (2008), roteiro de Severo para direção de Tabajara Ruas
- Os Senhores da Guerra (2011), roteiro de Severo para direção de Tabajara Ruas
- Os Senhores da Guerra 2 - Passo da Cruz (2014), roteiro de Severo para direção de Tabajara Ruas
- Independências (2022), pesquisa de Severo para direção de Luiz Fernando Carvalho
 
 
 
* Márcio Pinheiro é jornalista e escreveu os livros Esse Tal de Borghettinho e Rato de Redação - Sig e a História do Pasquim.