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Os 80 anos de O louco do Cati, obra polêmica e elogiada de Dyonelio Machado
Lançado em 1942, livro do gaúcho Dyonélio Machado remete à vida de seu autor e carrega em si o espírito de seu tempo - ainda que siga bastante atual
José Weis, especial para o JC *
Lançado pela Editora Globo em 1942, o livro O Louco do Cati, de Dyonélio Machado (1895-1985), teve sua trajetória marcada, desde o começo, pela estranheza e incompreensão. Consequências às quais, diga-se, o autor foi se acostumando ao longo de sua carreira literária. Passadas oito décadas, a história das peripécias que Norberto e um pequeno grupo de amigos passam a enfrentar depois que conhecem um 'maluco' que se junta a eles segue atual, quem sabe até demais - na verdade, talvez seja o Brasil que mudou menos do que poderia ou deveria.
Em O Louco do Cati há um subtítulo, 'aventura'. De fato, há um espírito de superação de desafios que se manifesta tanto no texto literário quanto no esforço para torná-lo realidade. Dyonélio relatou, numa entrevista em 1982, que escrever a obra foi "um desafio com a morte. Ou escrevia o livro, ou morria". Em 1941, Dyonélio, médico psiquiatra, estava convalescente de doença cardíaca, sequela dos tempos em que passou preso pelo governo de Getúlio Vargas por 'delito de opinião'. Ele não tinha forças para quase nada. Acamado, ditou a historia à sua esposa, Adalgiza, e à filha Cecília. A fase seguinte, datilografar os originais, foi uma tarefa que coube à poeta Lila Ripoll e ao colega de profissão Cyro Martins, ambos conterrâneos de Dyonélio, da cidade de Quaraí, na fronteira com o Uruguai.
Por sua vez, a narrativa apresenta uma sucessão de acontecimentos, que partem de um arrabalde de Porto Alegre, no fim da linha do bonde, e seguem adiante, desde o litoral gaúcho até o Rio de Janeiro. O grupo se prepara para uma excursão de fim de semana na praia e, no último momento, incorpora um estranho sujeito, que seria conhecido entre eles como o louco do Cati. Os personagens se deslocam de bonde, num velho caminhão, navio, trem, automóvel e até mesmo em um avião. Todo o itinerário está registrado em um mapa que o próprio Dyonélio desenhou. A aventura tem até uma passagem pela prisão e outros perrengues que acontecem para os dois principais personagens, Norberto e o 'maluco', que se separam do grupo em determinado momento.
Ainda assim, e apesar dos cortes narrativos quase cinematográficos, o livro tem o ritmo de quem conversa ou conta uma história, uma linguagem que utiliza da fala popular ao mesmo tempo em que revela requintes estilísticos e um refinado senso de humor.
Na época em que O Louco do Cati foi publicado, Porto Alegre tentava se recuperar da Grande Enchente de 1941, a segunda grande guerra arrasava a Europa, o nazifascismo ameaçava o mundo. Mesmo assim, a arte resistia: Albert Camus publicava O Estrangeiro e O Mito de Sísifo, duas obras-primas. No cinema, o filme Casablanca começava a levar multidões para ver Humphrey Bogart e Ingrid Bergman combatendo os arrogantes alemães. No Brasil, a ditadura de Getúlio Vargas incentivava a violência e a intolerância, ao mesmo tempo em que se fundava, no Rio de Janeiro, a Associação Brasileira de Escritores, em defesa da democracia.
Dyonélio Machado é aquele tipo de escritor que sempre é redescoberto. Fica um tempo ausente dos projetos de editoras, das livrarias e até mesmo dos estudos acadêmicos. Uma parte de sua obra é encontrada em sebos, e algumas edições contêm inconsistências sobre a biografia do autor. Esse é o caso da quinta edição, da Editora Planeta, lançada em 2003, que apresar de trazer o mapa desenhado por Dyonélio, contém informações errôneas sobre sua biografia.
Volta e meia, parte de sua obra é relançada e chama a atenção de novos leitores. Seu companheiro de geração e admirador, Erico Verissimo, sempre que tinha oportunidade afirmava: "quem lançou a ficção urbana no Rio Grande do Sul foi Dyonélio Machado, com o livro de contos Um Pobre Homem, em 1927". Num depoimento, Erico vai além: "quando nossa geração tiver desaparecido fisicamente da face da Terra, é possível que um dia um crítico - se essa espécie ainda existir - vá buscar num arquivo eletrônico áudio-visual os livros que se escreveram no Brasil entre as décadas de 30 e de 40, venha a descobrir os romances de Dyonélio Machado e, parafraseando o belo final de O Louco do Cati, diga ou escreva: 'só agora se vê como esse escritor era importante'".
Literatura que morde e marca
A primeira edição de O Louco do Cati teve a acolhida da Mário de Andrade, um dos caciques da Semana de Arte Moderna de 1922. "Que impressão estragosamente profunda esse livro me causou, O Louco do Cati morde e marca", empolga-se o autor de Macunaíma, numa carta enviada para Dyonélio.
Em contrapartida, Moysés Vellinho, jornalista, crítico literário gaúcho, atacou o livro. Em Letras da Província (Ed. Globo, 1960) ele afirma que "além de tudo, O Louco do Cati é escrito em linguagem deliberadamente descuidada (...) a ideia é, por certo, digna não só de um, mas de muitos romances de literaturas inteiras, pois é a própria imagem, a imagem essencial da vida na instabilidade de todas as coisas. Resta saber se, na execução dessa ideia, o escritor foi fiel à sua inspiração. Não parece que sim", dispara Vellinho. E segue o ataque, em especial diante do "fim de um romance cuja razão de ser é impossível descobrir, pelo simples motivo de que não tem forma, não tem conteúdo, não tem qualquer propósito acessível à percepção comum."
Para o jornalista e professor Antonio Hohlfeldt, autor do volume sobre Dyonélio Machado publicado pelo Instituto Estadual do Livro, a posição do Moysés é "duplamente ideológica". No meu ensaio sobre o conjunto da obra do Dyonélio se pode ver que ele é claramente marxista, e isso Moysés não podia tolerar", observa. Hohlfeldt também lembra que, "antes do (professor da Ufrgs, Luís Augusto) Fischer, acho que o Flávio Moreira da Costa tinha salvado o Dyonélio do ostracismo, inclusive republicando em editoras de São Paulo os livros do escritor, dentre os quais O Louco do Cati".
Grande pesquisadora da obra de Dyonélio Machado, a professora e doutora do Instituto de Letras da Pucrs, Maria Zenilda Grawunder, não deixa por menos. "É consenso que Dyonélio Machado foi um grande marginalizado em sua época, proscrito pelas editoras de seu Estado; uma das razões teria sido sua atuação política divergente da ideologia predominante na sua época de ascensão como escritor", descreve no texto de apresentação do livro Instituição Literária - Análise da Legitimação da Obra de Dyonélio Machado (Edpucrs).
A prisão, um prêmio literário e incompreensão
Em 1935, Porto Alegre se preparava para celebrar o Centenário da Revolução Farroupilha, uma tentativa populista do então intendente nomeado pelo ditador Vargas, o general Flores da Cunha. O interventor recorria à efeméride para, ao mesmo tempo, refazer um passado questionado e apontar um futuro promissor para o Rio Grande do Sul.
Na mesma época, em todo o Brasil, a Aliança Nacional Libertadora (ANL) mobilizava sindicatos e partidos políticos de esquerda para enfrentar e derrubar Getúlio. Em Porto Alegre, no dia 5 de julho, no Theatro São Pedro, Dyonélio Machado preside o comício da ANL. O evento aconteceu em um clima tenso, com forte aparato policial de prontidão em frente ao teatro, que estava lotado de trabalhadores e militantes sindicalistas. Havia uma expectativa de uma atitude violenta por parte da Brigada Militar e a Polícia Civil de Flores da Cunha.
O comício ocorre e se encerra de maneira pacífica - mas, a partir dele, uma perseguição a Dyonélio toma forma. Neste mesmo mês de julho, na noite do dia 18, ele recebe ordem de prisão ao chegar em sua casa. O médio e escritor estava preso quando recebeu, naquele ano, a notícia que seu romance Os Ratos ganhou o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras.
Sete anos depois, combalido, conseguiu publicar O Louco do Cati, na mesma editora Globo que lançou Os Ratos. Justino Martins, editor da conceituada Revista do Globo, decide publicar o conto Noite no Acampamento, do primeiro livro de Dyonélio, publicado em 1927. Como resultado, o autor do conto foi intimado a dar explicações sobre sua ficção. Não ficou detido, mas teve uma "conversa" com os militares, que se sentiram atingidos. Um tempo depois, no jornal Diário de Notícias, um artigo virulento assinado pelo tenente-coronel Correia Lima bradava: "ainda há pasquins, com diretorias alienígenas e redatores internacionalizados".
Em seu livro póstumo, Memórias de Um Pobre Homem (IEL, 1990), o próprio Dyonélio define estes tempos que viveu e sobreviveu como "un épisode sous la terrreur" (um episódio sob o terror), numa referência aos desdobramentos da Revolução Francesa.
Um livro feito para ser lido
"Do ponto de vista estrutural, o romance é um primor de composição, ainda que talvez por acaso", define o professor e escritor Luíz Augusto Fischer, do Instituto de Letras da Ufrgs. Levando em conta o fato de que o livro foi inicialmente ditado, ele frisa, em seu livro Coruja Qorpo-Santo e Jacaré - 30 perfis heterodoxos (L&PM), que "há quem veja nessa circunstância a matriz da linguagem do texto". Para Fischer, a narrativa também pode ser lida como um livro de viagem: "aquele personagem, o Louco que dá o título ao romance, vai ser o fio condutor de uma longa jornada pelo território brasileiro."
No seu trabalho com a parceira da prefeitura de Quaraí, Márcia Helena Saldanha Barbosa observa que, em O Louco do Cati, Dyonélio Machado "traz para o dentro da trama uma personagem tão emblemática quanto os heróis das clássicas narrativas de busca; o protagonista do romance representa, todavia, um tipo marginalizado e mantido à sombra". No seu A Paródia em O Louco do Cati, a autora a observa que este é o ponto de corte, pois para a autora os gêneros épicos e de aventuras estão "preocupados em exaltar os grandes feitos de homens nobres e/ou corajosos".
No seu ensaio, ela avalia que em O Louco do Cati "constrói-se uma imagem invertida da epopeia do relato de aventuras, situada nos tempos modernos e voltada à denúncia da alienação do indivíduo, cercado pelo Estado totalitário". Porém, Dyonélio não conta uma história fácil para o leitor, já que seu final surpreendente é "aberto a diversas interpretações" - o que inclui o fato de que, no fim das contas, não se fica sabendo o nome do 'maluco'.
Numa de suas entrevistas, Dyonélio Machado reafirmava que "O Louco do Cati foi feito para ser lido. É meu desejo. Talvez minha ilusão. Para o cinema, até hoje, não me atrevia a tanto". Nisso, Dyonélio estava errado: seu livro inspirou um filme, A Última Estrada da Praia, dirigido por Fabiano de Souza e lançado em 2010. Ainda que, em consonância com aquele velho adágio 'livro é livro, filme é filme', tenham ocorrido algumas alterações - segundo o diretor, a história de Dyonélio serviu "como combustível para a criação".
"Esse livro ajudou a me curar"
Há 127 anos, num mês de agosto, nascia Dyonélio Tubino Machado na cidade de Quaraí, fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai. Muito cedo, o menino Dyonélio começou a enfrentar dificuldades. Aos sete anos, ficou órfão de pai. Começou a trabalhar cedo, mas mesmo assim continuou os estudos. Foi monitor de classe e até chegou a fundar um jornal na escola. Jornalismo, política, medicina, literatura, música: tudo atraía Dyonélio, ainda que sem seguir nenhuma ordem em particular.
"Minha vida foi marcada pela solidão do pampa", relembra e define, como o médico psiquiatra que também foi: "a angústia infantil é tremenda porque tudo é proibido". Porém essas vivências também forjaram o escritor. "Eu sou da terra da imaginação. O gaúcho, aquela vida segregada na estância, com um convívio muito limitado, aquilo leva às fantasias, aos sonhos, ao conto, à história..." Esses trechos foram extraídos de uma 'seleta de entrevistas', como define a organizadora Maira Zenilda Grawunder em O Cheiro da Coisa Viva (Grafhia Editorial), um livro fundamental para compreender o universo de Dyonélio Machado.
Militante político, jornalista, médico psiquiatra que chegou a ser nomeado diretor do Hospital São Pedro. Eleito deputado estadual constituinte pelo Partido Comunista Brasileiro. Um humanista, como ainda se diz a respeito deste tipo de personalidade.
Numa das redescobertas do autor de Os Ratos, ele concedeu muitas entrevistas. Numa delas, Julieta Godoy de Lacerda perguntou se O Louco do Cati é contra a repressão da ditadura de Vargas. "Nenhuma ditadura, nenhum ditador me levaria a destacá-lo num livro de ficção", afirmou o doutor Dyonélio. Todavia, a experiência de prisioneiro o marcou bastante, a ponto de relatar numa conversa com Flávio Moreira da Costa para a revista Escrita, em 1976, que teve "duas vidas, uma antes e uma depois da prisão. Mas nunca fiz ficção política. Fiz política nas praças, na Assembleia, na polícia".
Na passagem de O Louco do Cati que conta a prisão de Norberto e o 'louco' no Rio de Janeiro, é possível fazer um paralelo do que conta Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere. Foi naquela circunstância que os escritores se conheceram pessoalmente. No entanto, para o professor Luís Augusto Fischer, "certamente, com as devidas cautelas, o livro de Dyonélio é uma ficção, que recolhe coisas, por certo, da história vivida pelo autor, mas as reconfigura, ao passo que Graciliano conta em voz própria as coisas da cadeia.
O próprio Dyonélio falou a respeito: "O Louco do Cati descreve uma cadeia política, mas diferente do que a preocupação política da época (esquerda e direita) estava acostumada. Naquele tempo, nem blague se podia fazer - eu fiz um blague de uma cadeia". Aos críticos que estabeleceram uma relação entre Memórias do Cárcere e O Louco do Cati, o próprio Dyonélio esclareceu de vez, em 1980: "Cada um desses livros tem sua técnica; um são memórias do autor, outro, uma obra de ficção."
Ao final da historia, fica um desejo de quem leu em seguir adiante. "Agora, é que se via o quanto ainda era moço..." Isso pode, quem sabe, significar que a aventura descrita em O louco do Cati continua. Dyonélio Machado escreveria a seguir mais dois livros, que completariam uma espécie de trilogia: Desolação (1944) e Passos Perdidos (1946). Alguns personagens, como Norberto, reaparecem. Seja como for, O Louco do Cati fecha em torno de si mesmo, de diferentes maneiras - ainda perceptíveis hoje, oito décadas depois de seu lançamento.
"Esse livro ajudou a me curar", disse o autor, em outra oportunidade. "Foi um romance malhadíssimo. Álvaro Lins e Moysés Vellinho, por exemplo, foram alguns dos críticos que não o reconheceram. Por outro lado, Guimarães Rosa deu-me a grande satisfação de dizer que não era necessário, em literatura, ler-se mais do que dois ou três livros. Um desses, em sua opinião, seria O Louco do Cati, que, se houvesse sido escrito no estrangeiro, ganharia o Prêmio Nobel".
* José Weis é jornalista, tendo escrito para diferentes veículos do Rio Grande do Sul e do Brasil.