O autodidata Hélio Nascimento - gaúcho de Porto Alegre, 86 anos em dezembro próximo - é resultado de duas universidades. A primeira, mais ampla e mais genérica, é a Rua da Praia. A segunda, mais específica e especializada, são as salas de cinema. Na principal via de Porto Alegre, Hélio caminhou, conversou, fez amigos, namorou, discutiu, polemizou, trocou ideias, enfim, viveu. Já nos cinemas, aprofundou seu conhecimento tendo aulas com Charles Chaplin, Orson Welles, Vincente Minnelli, Nelson Pereira dos Santos, Andrzej Wajda, Roman Polanski, George Cukor, Elia Kazan e, principalmente, Ingmar Bergman. Destas duas escolas - e mais leituras de Karl Marx e Sigmund Freud, da revista Cahiers du Cinema, e audições de Villa-Lobos e Bach - Hélio construiu sua formação humanista. Formação esta que lhe garantiu muitos amigos e discípulos, uma das mais longevas carreiras na crítica cinematográfica e reconhecimentos como o que recebeu recentemente no Festival de Cinema de Gramado, quando foi agraciado com o Prêmio Gramado 50 Anos, destinado a pessoas cujas trajetórias em cinema se destacaram ao longo das décadas. Hélio não pôde receber o prêmio e enviou um representante, mas a causa era mais do que nobre. Desde o final de agosto, Hélio está em Londres, ao lado de Letícia, sua única filha, e mais o genro e as duas netas.
Viúvo de Ilse (quase a Ilsa de Ingrid Bergman em Casablanca) há três anos, Hélio passa a maior parte do tempo em seu apartamento na avenida Independência. Porém, as duas bases da sua formação não foram abandonadas, apenas a frequência foi diminuída. Ele continua indo à Rua da Praia e, mais ainda, aos cinemas.
Rara exceção foi o período pandêmico, quando, mesmo recolhido, ele não se afastou das páginas, exercitando seu conhecimento e sua memória para falar de filmes de outras épocas.
Nessa reportagem, eu sou o visitante, pois Hélio está em casa. Meu texto ocupará esta e as próximas páginas para falar dele exatamente no mesmo espaço que, desde 1961, Hélio usa para conversar com os leitores sobre sua maior paixão intelectual, o cinema. Por seu texto ser tão pouco autorreferente, minha função maior será apresentar o autor pelo outro lado das telas. E posso garantir - sem medo de dar spoiler - que o personagem é fascinante.
Então, desligue seu celular que vai começar a sessão.
Seis décadas de crítica cinematográfica

Hélio Nascimento chegou ao Jornal do Comércio em 1960, pelas mãos do também cinéfilo Hiron 'Goida' Goidanich
/TÂNIA MEINERZ/JC
O Festival de Cinema de Gramado é um velho conhecido. Nestes 50 anos, Hélio Nascimento foi do comitê organizador, do corpo de jurados, da comissão de seleção e - do outro lado do balcão - da crítica e da plateia. "Se acham que eu merecia ser homenageado, ótimo", agradece Hélio. "Deve ter sido um reconhecimento a tanto esforço, tantas noites em claro e ainda à muita pressão que acabei sofrendo. Eram tempos difíceis: o que eu conheci de gente que se achava Orson Welles..."
Gramado foi também a extensão natural de uma ligação entre Hélio e o cinema que começou em Porto Alegre, mais de uma década antes. Foi pela Rua da Praia que Hélio entrou no cinema. Desempregado, perambulando pelo Centro, Hélio encontrou Hiron Goidanich, o Goida, outro cinéfilo e também frequentador do Clube de Cinema. Goida sabia da situação do amigo e sabia ainda que havia uma vaga no setor administrativo do Jornal do Comércio. Assim, incentivou Hélio a ir ao local. Era 1960.
Pelos meses seguintes, Hélio manteve as tarefas burocráticas da área administrativa do JC, mas também passou a colaborar pouco a pouco com a seção de cinema. O primeiro texto foi sobre o filme Uma Menina Busca Seu Pai, drama soviético dirigido por Lev Golub, que - como o próprio título deixa explícito - narra a história de uma menina de 5 anos em busca de seu pai, líder político soviético perseguido pelos nazistas.
Foi pouco antes de o jornal se tornar diário - o que aconteceu em 1º de setembro de 1960, até ali, saía apenas três vezes por semana. O titular do setor era Moraes de Oliveira, que, quando decidiu deixar a empresa para se dedicar à publicidade, foi substituído por Hélio. Assim, por quase uma década, Hélio conciliou as atividades do escritório com a crítica cinematográfica, inclusive quando o Jornal do Comércio passou a ter sua sede própria na avenida João Pessoa, em 1968.
Aí Hélio se dividia em dois: na sede do Palácio do Comércio, ele era da parte administrativa; na da João Pessoa, jornalista. Quando não podia ir ao "segundo emprego", enviava os textos. "Há um texto de sua autoria que jamais esqueci. Ao comentar O Iluminado, de Stanley Kubrick, ele iniciou dizendo que era quase uma refilmagem de 2001: Uma Odisseia no Espaço, que o mesmo Kubrick fizera 12 anos antes. Surpreso pela analogia, fui ler o texto. Era simplesmente brilhante. O protagonista que enlouquecia, o ambiente isolado, os demais tentando fugir dele. Foi uma das melhores críticas de filmes que li na minha vida", lembra o advogado Marco Antônio Campos, ex-presidente do Clube de Cinema.
No começo dos anos 1970, Hélio pôde então se dedicar apenas ao jornalismo. Incorporado à redação, ele ajudou a implementar o caderno cultural, inclusive sugerindo o nome que seria adotado: Panorama, criado em 1983. Na nova estrutura, ocupou quase todas as funções e - com exceção de um pequeno período de pouco mais de um ano em que trabalhou na Zero Hora, para onde foi levado por José Onofre (outro amigo dos tempos do Clube de Cinema, que então ocupava o cargo de editor-chefe na ZH) - nunca se afastou da crítica, publicando até hoje uma coluna semanal neste caderno (está em recesso temporário, viajando).
O cinema como experiência de vida

Hélio Nascimento aprecia Arnaldo Jabor e Walter Hugo Khouri, mas não se entusiasmou com Glauber Rocha
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Paulo Fontoura Gastal era o grande guarda-chuva que abrigava a quase todos que se interessavam por cinema em Porto Alegre. Através de seus espaços na Companhia Jornalística Caldas Júnior, Gastal exercia na capital gaúcha papel semelhante ao que era exercido por Paulo Emílio Salles Gomes em nível nacional: incentivava o surgimento de uma nova crítica. Assim, de alguma forma ou de outra, quase todos que se aproximaram da crítica cinematográfica a partir dos anos 1960 estiveram ligados a Gastal: Hélio Nascimento, Tuio Becker, José Onofre, Jefferson Barros, Goida, Flávio Loureiro Chaves, Enéas de Souza e tantos outros. A todos interessava o cinema e - mais ainda - a discussão posterior sobre o filme. "Conheço o Hélio há muito tempo. Já era leitor e admirador, dele e de sua coluna no JC, quando o conheci pessoalmente nas sessões do Clube de Cinema. Durante o período em que o Clube editou a revista Moviola, o Hélio escreveu textos maravilhosos para publicarmos", lembra Marco Antônio. E acrescenta: "Hélio segue sendo um crítico de cinema à moda antiga. Digo isso no bom sentido da expressão. Conhece o cinema profundamente, sua história e comenta os filmes sempre contextualizando dentro da obra do diretor, carreira do ator ou gênero do filme". O jornalista Roger Lerina, de uma geração posterior, também elogia: "Hélio Nascimento é uma referência para os novos resenhistas pela capacidade de conciliar ecletismo e rigor nas informações, generosidade e assertividade nas opiniões".
Com o tempo, a influência de Gastal foi dando espaço a novas referências. A primeira e maior delas foi o Cahiers du Cinema. A revista francesa abria os olhos de todos para as novas cinematografias internacionais, em especial a nouvelle vague de François Truffaut e Jean Luc Godard. "Para nós foi um choque, ainda mais que incentivavam a vanguarda, mas também respeitavam velhos diretores americanos como John Ford, Orson Welles e Vincente Minnelli, além de terem sido os primeiros a valorizar Clint Eastwood", lembra Hélio.
No Brasil, Hélio nunca gostou da chanchada, nem dos filmes de Teixeirinha - ainda que veja nestes exemplos a tentativa de se criar uma escala industrial - mas ficou impactado pelo lançamento de Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos. "O filme surgiu num momento em que o Brasil estava muito agitado politicamente", recorda Hélio. "Quando o filme estreou em Porto Alegre, lembro que o Cine Imperial ficou lotado, ainda mais porque o longa havia sido censurado meses antes".
O entusiasmo de Hélio se estenderia a outros cineastas surgidos naquela época - Hugo Carvana, Arnaldo Jabor, Walter Hugo Khouri - mas não se repetiria com Glauber Rocha - "Ele não queria fazer filmes, queria fazer revoluções" - ainda que reconheça que o baiano gerou alguns grandes momentos da cultura brasileira. "Se você pegar a entrevista que ele fez com o jornalista Carlos Castello Branco e que foi incluída como depoimento em A Idade da Terra vais ver uma das melhores análises políticas já feitas sobre o Brasil. Mas ficou ali meio perdida num filme imenso..."
Pelos cineastas gaúchos, Hélio também é admirado. "Tive a grande sorte de conviver com uma geração fantástica de críticos de cinema de Porto Alegre, que reuni numa cena ficcional de meu filme Inverno, de 1983. Lá estava Hélio Nascimento, na tela, provavelmente em sua única participação como ator em toda a vida, fazendo de conta que era funcionário de uma imobiliária, ao lado de seus colegas jornalistas", conta o diretor e professor Carlos Gerbase. "Alguns meses depois, lá estava o texto do Hélio, no jornal, ajudando a entender o filme. Sua evidente generosidade, que nunca impediu uma avaliação séria dos filmes gaúchos, com certeza contribuiu para o amadurecimento da cena local. Todos temos muito a agradecer a Hélio", diz Gerbase.
Cinéfilo que nunca quis fazer cinema - "sempre achei muito trabalhoso e demorado, ver os filmes e escrever me dá prazer maior" - Hélio acredita que a grande função do cinema está num ensinamento que ouviu há muitos anos, a respeito de uma conversa de George Cukor com Jack Lemmon, em que o diretor alertava ao ator que, em cinema, vale a atitude normal, ou seja, falar como se estivesse vivenciando um determinando acontecimento e não interpretando um texto.
Um prêmio ao pioneirismo

Colunista de cinema do JC foi um dos agraciados com o Troféu Gramado 50 anos
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À distância, Hélio foi muito aplaudido na homenagem realizada no Palácio dos Festivais, na 50ª edição do Festival de Cinema de Gramado. Simbolicamente, Roger Lerina entregou o Troféu Gramado 50 anos ao colunista do JC. Além do troféu, Hélio e os outros homenageados foram agraciados com R$ 10 mil, em reconhecimento a todo apoio que deram ao audiovisual brasileiro. "A história do Festival de Cinema de Gramado não se escreveria sem a presença e sem a colaboração do Hélio", destacou Roger Lerina. Na sequência, ele lembrou que Hélio foi integrante do grupo pioneiro de críticos e cinéfilos responsável pela concepção do Festival e pela seleção dos filmes nos primeiros anos do evento. "Escrevendo sobre o festival gaúcho para um livro ainda inédito, o veterano crítico acaba por tabela também rascunhando uma autodefinição sucinta: 'Um festival de cinema, a meu ver, (...) deve acolher visões diferentes e até opostas da realidade. É uma forma democrática de agir, até porque tal opção também permite ao observador contemplar e constatar a riqueza de uma cinematografia'", ressaltou Lerina.
Cinema escrito

Livro 'Cinema Brasileiro' de autoria de Hélio Nascimento
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Hélio escreveu dois livros. O primeiro, Cinema Brasileiro, foi lançado em 1981 pela editora Mercado Aberto dentro da coleção Revisão. O segundo, maior e mais amplo, O Reino da Imagem, também veio dentro de uma coleção (Escritos de Cinema), em 2002, e reúne em 496 páginas parte da extensa produção do crítico. A seleção dos textos foi realizada pelo próprio Hélio e engloba um período de quase três décadas, de 1962 a 1991, concentrados num mesmo órgão de imprensa, o Jornal do Comércio.
Os textos estão organizados a partir dos diretores, 64 no total, e que são apresentados em ordem alfabética, iniciando com o americano Woody Allen e finalizando com o italiano Valerio Zurlini. Na capa, Harriet Andersson e Kari Sylvan numa cena de Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman, talvez o filme preferido de Hélio. "Com muito orgulho, tenho um exemplar autografado. Ele escreveu: 'Para Luli e Gerbase, com o mesmo amor pelo cinema' e assinou. E fico pensando agora que esse amor pelo cinema, compartilhado pelo Hélio, por mim e pela Luciana Tomasi, é um sentimento agregador, que aproxima pessoas, eleva espíritos, consola nos momentos difíceis e ajuda a construir pontes emocionais numa sociedade cada vez mais fria e insensível", diz Gerbase.
Cinema falado

Livro 'O Reino da Imagem', de autoria de Hélio Nascimento
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Durante três décadas, a partir de 1972, Hélio Nascimento produziu Cinema de Segunda a Segunda. Escrito e apresentado por ele, o programa era apresentado pela Rádio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, local onde Hélio também foi programador. Enquanto esteve no ar, o programa teve boa audiência e nele, além de notícias, críticas e comentários, eram transmitidas as músicas de filmes, além de registros históricos gravados, quando algum filme a eles recorria. "Naquela época, as estreias eram feitas às segundas-feiras, daí o título". Na mesma emissora, Hélio também produziu outros programas. "Gostaria de ressaltar que no dia 28 de dezembro de 1995, a data que marca o centenário do cinema, por minha iniciativa, a emissora, durante todo o dia, transmitiu somente música escrita para filmes; ou então peças da chamada música clássica utilizada por cineastas como Stanley Kubrick, Luchino Visconti, Louis, Malle, Humberto Mauro e Nelson Pereira dos Santos".
Dez filmes que Hélio Nascimento levaria para uma ilha deserta (e outros dez filmes)

Hélio Nascimento está em recesso, visitando a família em Londres; coluna semanal no JC retorna no final de outubro
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- A Grande Ilusão, de Jean Renoir
- Cidadão Kane, de Orson Welles
- Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman
- Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais
- Lawrence da Arábia, de David Lean
- O Leopardo, de Luchino Visconti
- Rastros de Ódio, de John Ford
- Tempos Modernos, de Charles Chaplin
- Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock
- 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick
Isso para ficar na tradicional lista. Há outros, claro, se a cinemateca tivesse mais espaço:
- Menina de Ouro, de Clint Eastwood
- Assim Estava Escrito, de Vincente Minnelli
- Cinzas e Diamantes, de Andrzej Wajda
- Matar ou Morrer, de Fred Zinnemann
- Os Brutos também Amam, de George Stevens
- O Pianista, de Roman Polanski
- O Terceiro Homem, de Carol Reed
- Trilogia de O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola
- Trilogia de Apu, de Satyajit Ray
- Vidas Amargas, de Elia Kazan
Melhor diretor? Essa é fácil: Ingmar Bergman.
Melhor diretor brasileiro? Nelson Pereira dos Santos. Não é para qualquer um aquela cena final de Memórias do Cárcere.
* Márcio Pinheiro é porto-alegrense e jornalista. Trabalhou em diversos veículos da Capital, de São Paulo e do Rio de Janeiro.