Os cientistas estão angustiados. No dia desta entrevista, o nível do Guaíba, em Porto Alegre, ainda estava mais próximo do recorde histórico do que do seu normal. No WhatsApp da professora de Física Marcia Barbosa, não paravam de chegar mais interessados em participar da iniciativa que ela e cerca de 50 cientistas estão montando sob a denominação Programa Gaúcho de Emergência Climática e Ambiental, que, associando cientistas e gestores públicos, busca oferecer todo o assessoramento para criação de mecanismos de enfrentamento sistemático e permanente.
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Enquanto seus colegas, em subgrupos, trabalhavam no refinamento das ações em seis enfoques do programa (veja no quadro), ficou a cargo dela fazer chegar um resumo da proposta ao maior número de gestores públicos possível dentro do Estado - o prefeito de Porto Alegre e o governador gaúcho já receberam cópias. Segundo ela, o uso do conhecimento local e da capilaridade de universidades e institutos de pesquisa sairia mais barato do que aderir a uma consultoria internacional.
"O que vai doer no coração é ver pegarem esses recursos e reconstruir tudo igualzinho como era antes. Não adianta um prefeito resolver o seu cantinho quando o problema é global", avisa, garantindo que os cientistas locais sabem como fazer. "Tem de construir estrada e ponte de outro jeito. A Castelo Branco esfarelou. Eu dou aula para Engenharia. Quando olhei aquilo, desejei que quem construiu não tivesse sido meu aluno."
Marcia também está criando um banco de consultores (incluindo empresas privadas), se o projeto realmente virar, como se pretende, uma fonte acadêmica para o governo. Em 2020, a docente da Ufrgs foi mencionada pela ONU Mulheres como uma das sete cientistas que moldam o mundo e foi eleita pela revista Forbes como uma das 20 mulheres mais influentes no Brasil. Um ano antes, tinha sido eleita membro da Academia Mundial de Ciências. Em 2023, assumiu a secretaria de Políticas e Programas Estratégicos, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), cargo do qual pediu exoneração para retomar seus trabalhos de pesquisa no RS. Curiosamente, a água é seu foco há mais de 20 anos.
JC - A proposta que a senhora e colegas montaram parece ter o intuito de aproximar cientistas e tomadores de decisão. Por que essa aproximação ainda é algo a ser conquistado?
Marcia - Nós temos algumas dificuldades. O meio acadêmico está soterrado de atividades internas. Só foi possível juntar esses mais de 50 pesquisadores de maneira tão rápida porque não estão fazendo suas atividades cotidianas em função da enchente. A gente teve tempo de pensar. Há uma angústia. A gente já avisa há muito tempo que vai ter enchente e ninguém ouve. É difícil entender esse prognóstico dos pesquisadores de clima porque afirmamos que vai ter enchente mas não sabemos dizer exatamente quando. Isso é parte do jogo da ciência, ela não é linear. Então, esse diálogo é difícil. O político opera na lógica dos quatro anos. Por outro lado, a academia responde muito à provocação. Ela fica esperando que o Estado venha demandar dela alguma coisa. E agora consegui convencer meus colegas de que é o momento de a academia levantar e demandar o Estado.
JC - De fato, qualquer cientista pode dizer "nós avisamos". Mas como a senhora vê a capacidade de comunicação da academia?
Marcia - No Brasil, o trabalho na universidade é massacrante, comparado com qualquer outro lugar no mundo. Nos EUA e na Europa, o suporte ao trabalho cotidiano de um pesquisador é imenso. No Brasil, os docentes precisam fazer um monte de tarefas que lá fora são feitas por técnicos. A gente tem pouca gente para ajudar. Na área da comunicação, então, nem se fala. E cientista no geral, no mundo inteiro, não faz boa comunicação. Visitei um instituto no Canadá que nem dá aula, só faz pesquisa. Os cerca de 40 pesquisadores passam o dia só fazendo pesquisa. E eles têm 20 pessoas para trabalhar só com a área de comunicação. Nós não temos formação. Eu sou uma física teórica. Para fazer comunicação, eu teria de receber formação. Tem quem consiga falar com a imprensa, com o público, achar um tempo para fazer divulgação, mas não é da nossa natureza. E ainda tem um grande desafio: para o cientista, a precisão é fundamental. Se me perguntarem quando vai ser o próximo evento, a resposta científica começaria falando das equações não lineares… Entendeu? A resposta que o cientista tem de dar é tão ofuscante que ela acaba impedindo a comunicação.
JC - Sua mensagem com a proposta do programa é clara…
Marcia - A mensagem que a gente está tentando dar aos políticos é que precisamos mudar a forma de construir as cidades, de fazer agricultura e oferecer serviços. Mas aí vem outra questão: isso não vai aparecer em quatro anos. Entendeu o problema? O cientista diz que vai precisar investir tempo e dinheiro em algo que só lá adiante vai render aplauso. É como quem construiu o muro da Mauá. Deve ter sofrido crítica imensa e só agora mostrou a importância. Requer uma visão de política de Estado, e não partidária.
JC - O que precisa é cientista e tomador de decisão juntos…
Marcia - Sim. Eu gosto de brincar que a gente precisa de ciência e consciência. Se esse desastre servir para a gente se preparar para quando vier a seca, se servir para que os gestores ouçam mais a comunidade científica, eu já sinto minha esperança ser abraçada. Mas a comunidade científica precisa ter coragem de gastar seu tempo com isso. Há uma resistência. É adoravelmente confortável ficar fazendo ciência sem ninguém atrapalhar a gente. Desculpa dizer isso, mas é verdade. Diante de um problema brutal, a gente precisa reservar esse tempo e devolver para a população que paga nosso salário esse conhecimento em prol de algo que tenha resultado.