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Publicada em 04 de Junho de 2024 às 09:45

"Podemos enfrentar situações assim em melhores condições", diz Rualdo Menegat

Professor Rualdo Menegat acredita que não tenha sido o sistema de proteção que colapsou, mas sim a falta de manutenção

Professor Rualdo Menegat acredita que não tenha sido o sistema de proteção que colapsou, mas sim a falta de manutenção

/EVANDRO OLIVEIRA/JC
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Loraine Luz
Geólogo e professor da Ufrgs, doutor em Ecologia de Paisagem, coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre e reconhecido internacionalmente por seu profundo conhecimento sobre solo, subsolo, rios, clima, vegetação, relevo, fauna e a relação disso tudo com as pessoas, não é de agora que Rualdo Menegat alerta para o impacto das ações humanas no planeta e para a urgência da adoção de práticas sustentáveis, como economia circular, agricultura ecológica e urbana, além da transição energética para fontes renováveis.
Geólogo e professor da Ufrgs, doutor em Ecologia de Paisagem, coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre e reconhecido internacionalmente por seu profundo conhecimento sobre solo, subsolo, rios, clima, vegetação, relevo, fauna e a relação disso tudo com as pessoas, não é de agora que Rualdo Menegat alerta para o impacto das ações humanas no planeta e para a urgência da adoção de práticas sustentáveis, como economia circular, agricultura ecológica e urbana, além da transição energética para fontes renováveis.
Ainda assim, o desastre socioambiental gaúcho impressionou o pesquisador, a começar pela volumosa precipitação espremida entre um centro de alta pressão e uma frente fria por cinco dias, que depois escorreu desde o planalto trazendo encostas e se transformando em torrentes violentas de altíssima velocidade. Sabedor de que toda a área do Delta do Jacuí e do norte da Capital são regiões suscetíveis, o mais surpreendente ainda viria depois: um lago de inundação deltaica, ocupando quase o dobro da área do próprio Guaíba. "E não escoava porque se comunica com outra região hídrica muito importante, de lagos e lagoas interconectados, que a gente chama de mar de dentro, um dos maiores complexos lacustres costeiros da América do Sul e do mundo", explica.
Mas ele acrescenta outro ponto alarmante: a debilidade estrutural para enfrentar o fenômeno. "Grande parte da tragédia que aconteceu não foi só pelo volume de águas. Nós nos vimos sem capacidade para enfrentar", aponta. "Não foi o sistema de proteção que colapsou, foi a manutenção. Se tivesse funcionado, cerca de 70% do impacto na Capital teria sido amainado. Se somos uma cidade que a vida inteira lidou com enchentes, isso jamais poderia ter acontecido", lamenta.
JC - O que o RS viveu trouxe algum elemento novo ao conhecimento de pesquisadores como o senhor?
Menegat - Isso tudo nos mostrou de modo inequívoco as conexões. Temos uma vida urbana muito atávica, com pouco tempo para ver as conexões. Como uma maré de tempestade lá no Rio Grande influencia o escoamento do Guaíba. Como grandes chuvas lá no Planalto influenciam Porto Alegre. Toda essa conexão foi muito impressionante para nós. Então, a Capital se descobre como um lugar de encontros das águas de todo um sistema. Onde a cidade se localiza é um patrimônio hídrico. Mas que, ao mesmo tempo, requer muito cuidado e atenção, por sua altíssima suscetibilidade a fenômenos como este.
JC - O senhor avalia que algo ainda pior pode acontecer ou esse desastre já subiu a régua o suficiente por algum tempo?
Menegat - O aquecimento global vem sendo acompanhado há mais de 30 anos. E há 15 anos se vem dizendo de forma mais enfática que o aquecimento leva a uma intensificação e a uma maior frequência dos fenômenos climáticos. Quais fenômenos no caso de Porto Alegre? Enchentes! 1984.. 2015, 2023… Não faltaram enchentes por aqui e na Região Metropolitana, não como a de 1941, mas também trazendo muitas perdas. Se há uma previsão de mais frequência e intensidade, então, para o futuro, temos de esperar por mais enchentes assim. Meu pai passou pela enchente de 41. A inundação atual é a minha primeira e é a primeira do meu filho, mas meu filho poderá passar por quatro inundações dessas no futuro. Precisamos dizer isso para que tenhamos coragem de enfrentar, ter capacitação e infraestrutura. É o momento de refletir: não serão fatalidades. Porque já se sabe que vai acontecer.
JC - Há um consenso sobre ter de reconstruir o Estado sobre outras bases, no sentido de tornar as cidades mais resilientes. Para o senhor, que bases têm de ser essas?
Menegat - Nas regiões do Planalto e no Vale do Jacuí, aumentou ao máximo a área de terras agricultáveis, com desmatamento, calhas de rios assoreadas, supressão de banhados, que são muito importantes na infiltração de águas. A base ecossistêmica se desestruturou. Por isso a água ganha um escoamento em maior volume e velocidade incríveis. Também me refiro ao modo como ocupamos regiões de nascentes, de matas ripárias e ribeirinhas. As malhas urbanas se expandiram na direção dos rios. Há 20 anos, por exemplo, Eldorado do Sul era uma vila, não existia assim. E não só cidades, importantes estruturas também. A Rodovia do Parque está na margem inundável do Rio do Sinos. Um estádio de futebol, a Arena, na porção inundável do Gravataí. Isso tudo agrava as consequências de um fenômeno climático. Como isso pode acontecer? Onde estão os planos diretores? Temos de pensar o seguinte: pode chover 800mm mas os riscos de colapso precisam ser reduzidos. E para isso temos de olhar de outro modo para a agricultura, para a expansão urbana desenfreada, que constrói estruturas em locais muito suscetíveis.
JC - O senhor pesquisou cidades antigas, como Machu Picchu. O que elas têm a nos ensinar nesse momento?
Menegat - É uma pergunta oportuna. O quanto nós observamos um lugar, suas características, belezas e perigos? De um modo geral, a gente vive como se nada pudesse nos oferecer perigo. E construindo de forma pouco refletida, passamos a ter alto risco. Se sabemos que existe o risco de inundação, devemos não nos expor. Mas fizemos o contrário. Toda a estratégia inca foi justamente a de não se expor ao perigo. Se perguntar para mim onde fazer uma aldeia nos Andes, eu, como geólogo, vou te dizer: jamais a coloque nos fundos dos vales. Os incas encravaram as cidades no alto de rochedos, porque encontraram uma forma inteligente de fazer isso. É demonstrativo de uma cultura que conhece profundamente o local. E mostra como nós, aqui, nos desligamos de aspectos importantes da nossa paisagem. Fomos muitos prepotentes.
JC - Essa mudança de olhar, de cultura, passa pela educação?
Menegat - Claro. A educação ambiental desapareceu das escolas. Durante 20 anos, me dediquei à educação ambiental nas escolas municipais. Implantamos laboratórios de inteligência urbana, que reproduziam por maquetes o bairro onde a escola se localizava. Formamos professores com base no Atlas Ambiental de Porto Alegre. A gente ia a campo com as crianças, mostrar os arroios. Isso ajudava a comunidade a construir a inteligência social do lugar. Isso é muito importante. O que vimos nessa enchente é que a Capital não tem uma inteligência do lugar. Falta educação e falta gestão ambiental. A nossa drenagem urbana tem que estar funcionando. Nossos arroios em cabeceiras e comunidades estão atulhados de resíduos sólidos, são verdadeiros valões. Não tem limpeza. Isso me dá vergonha. Porque é indigno.
JC - Essa catástrofe deixa lições duras. O senhor está esperançoso ou preocupado com o futuro?
Menegat - Isso é uma questão fundamental. O mais importante a aprender é que a sociedade não pode se prostrar, como se isso fosse uma fatalidade. O desastre aconteceu por uma grande quantidade de água sim, mas também pela nossa debilidade de infraestrutura e proteção. Nós podemos enfrentar situações assim em melhores condições.Temos conhecimento. Uma sociedade para o século 21 tem de ser capaz de encarar essa realidade e ser mais proativa, capaz de se proteger. E proteger significa respeitar a natureza e suas dinâmicas, tendo uma vida que se conecte com o lugar onde se está.
JC - Então, cada um de nós pode fazer movimentos nesse sentido?
Menegat - Podemos e devemos. É o momento de cada um olhar à volta, ver que vulnerabilidades existem e procurar saná-las. E isso inclui até a árvore em frente a minha casa. Temos de cuidar dela, ela tem um papel. Temos de superar a ideia de que a cidade é inimiga da natureza. Quando respeitamos a natureza, ela nos protege. Francis Bacon disse algo muito sábio em 1620: "Se queres vencer a natureza, obedeça-a". Essa é uma grande frase para esse momento.

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