Remover obstáculos, transformar uma realidade desfavorável, ultrapassar limites, ato de progredir, de vencer, acessando recursos (principalmente anímicos) que nem se sabia que tinha. Eis a definição de "superação". Sua condição extraordinária passou a fazer parte do cotidiano ordinário de centenas de supermercadistas desde maio, quando no Rio Grande do Sul se registrou um dos maiores desastres climáticos brasileiros, sem precedentes na história gaúcha.
As inundações catastróficas afetaram 2 milhões de pessoas e destruíram anos e anos de trabalho de empreendedores na Capital e nos vales dos rios Taquari, Caí, Pardo, Jacuí, Sinos, Gravataí, além de Guaíba, Pelotas e Rio Grande. Segundo a Agas, 331 estabelecimentos foram total ou parcialmente impactados.
Passados mais de 100 dias, para muitos supermercadistas qualquer compromisso na agenda diária ainda carrega o peso de uma "super" ação. Ao abrirem as portas de suas lojas outra vez, o que parecia impossível diante do cenário desesperador de maio, reconhecem que foram fundamentais os bons relacionamentos no setor e o apoio de colaboradores e da comunidade.
"Houve exemplos realmente emocionantes. Conhecemos empresas que cederam funcionários a outras para ajudar na limpeza, supermercados que emprestaram empilhadeiras a concorrentes e até quem emprestou uma casa para a família da empresa concorrente", lembra Antônio Cesa Longo, presidente da Agas. "A solidariedade foi o ponto mais alto desta tragédia."
Em um contexto ainda delicado para todos, a Expoagas é mais uma frente oportunizada aos empreendedores dentro do exercício diário de superação que vem desde maio. "As empresas que vierem à feira sairão melhores e mais qualificadas, com novas conexões e muitas oportunidades de negócios", acredita Longo. "É a Expoagas do recomeço."
Protagonistas em suas comunidades e trabalhando com itens de primeira necessidade, os supermercados tiveram desde o início papel central na retomada plena das microeconomias de bairros e cidades. A garantia de abastecimento, mesmo em momentos de gargalos muito graves de logística, prova o quanto o setor é essencial em momentos de crise. Já tinha sido assim na pandemia. No entanto, as ações de apoio aos negócios, criadas por entidades como a Agas, precisam ser de longo prazo. "Estamos distribuindo vale-compras para que as empresas atingidas repassem aos consumidores e funcionários. Esses vouchers só poderão ser usados nestes supermercados afetados", comenta o dirigente.
Em pleno desastre climático, a Agas e a Associação Gaúcha de Atacadistas Distribuidores (Agad) anunciaram, em 6 de maio, o lançamento do app Ajuda Sul, uma central de informações sobre e para supermercadistas e fornecedores afetados. Por meio dela, podia-se compartilhar informações, construindo um banco de dados e permitindo o envio de auxílios e bonificações, além da prorrogação de prazos de pagamento e outras flexibilizações.
Exclusivas para líderes e gestores cadastrados no app, iniciaram neste mês as aulas do curso livre de Gestão em Supermercados (GES Ajuda Sul). Com instrutores colaborando de forma totalmente voluntária, o conteúdo busca incrementar a reconstrução e o gerenciamento dos negócios neste período de retomada das operações. Também foram formadas turmas em Gestão Estratégica e Gestão da Operação.
Há muito a reconquistar
A mais recente edição do Boletim Econômico-Tributário, publicada pela Receita Estadual em 9 de agosto, aponta que mais de 3,1 mil estabelecimentos estão com nível de atividade considerado baixo - volume de vendas inferior a 30% da média normal. O boletim mostra os impactos das enchentes nas movimentações econômicas dos contribuintes do ICMS.
A maior parte desse total (2.226) diz respeito a microempresas ou empresas de pequeno porte. O impacto é maior para os setores de supermercados, com 984 estabelecimentos, de calçados e vestuário, com 465, e de móveis e materiais de construção, com 354.
'Buscamos soluções onde não tinha'
Itamar Lorenzatto emprega 150 pessoas em suas unidades no Sarandi
/PATRÍCIA COMUNELLO/ESPECIAL/JCA rapidez na reabertura das duas lojas localizadas no bairro Sarandi está entre as principais superações de Itamar Lorenzatto e de seus colaboradores — um contingente de 150 pessoas somando os dois estabelecimentos da rede Carnetti. Uma reabertura aconteceu em 1º de junho e outra no dia 13 do mesmo mês. "Eu preferi reabrir logo e ir arrumando o que faltava já em funcionamento. Porque de portas fechadas não teria como reagir. Buscamos soluções onde não tinha. Estamos operando integralmente, mas faltam detalhes e a chegada de alguns equipamentos comprados novos", comenta.
Com um prejuízo de mais de R$ 4 milhões, Lorenzatto lançou mão, inicialmente, de recursos próprios. Depois, conseguiu ajuda de linhas de crédito do governo. A capacidade de reação teve muito a ver com sua equipe. "Todo desafio gera superação, isso é do ser humano. Só conseguimos reabrir de forma rápida graças ao empenho dos funcionários e colaboradores. Isso demonstra que, quando estamos todos alinhados no mesmo objetivo, a vitória é certa."
Mas a agenda de superações do supermercadista está longe de esvaziar. Ele não apenas manteve todas as vagas de empregos como está com outras abertas. E é aí que se encontra um dos seus principais obstáculos atuais: não consegue preenchê-las. "O bairro esvaziou, as pessoas não voltaram ou foram embora", atesta. Essa escolha dos ex-moradores está associada, segundo ele, à falta de credibilidade nos entes públicos de que vão resolver os problemas estruturais do bairro.
Com mais de 26 mil moradores atingidos e quase 40 mil residências debaixo d'água, o Sarandi foi o bairro mais afetado pelas cheias. "A gente vê muita fala e pouca efetividade", comenta ele sobre o discurso dos gestores públicos. "O que a gente espera são planos de pró-ação e não apenas reação ao desastre", acrescenta. A queda demográfica afeta significativamente as vendas. Em uma das lojas, julho teve queda de 13% no faturamento em comparação ao mesmo mês do ano passado. Para tentar superar o problema, a rede tem apostado em finais de semana com preços promocionais no início e no final do mês.
"Temos uma conta a pagar, mas reabrimos a loja ainda mais bonita", afirma empresária
Água no Mercado do Gringo, no bairro Humaitá, em Porto Alegre, chegou a 1m80cm de altura; estabelecimento ficou alagado por cerca de 15 dias
/Mercado do Gringo/Divulgação/JCO Humaitá foi outro bairro que sofreu com as inundações na Capital. Não só pelo poder de destruição do desastre, mas pelo tempo que levou a retomar o mínimo de normalidade, que dependia não só das ruas secas outra vez mas do recolhimento de entulhos e da volta do abastecimento de luz e água potável. Essa singularidade criou um dos principais desafios entre tantos que precisaram ser superados pelo Mercado do Gringo, conforme lembra Rosane Constante, uma das sócias: o reinício solitário, em meio à limpeza pesada dos primeiros dias.
"Afinal, os moradores não conseguiam voltar para a região", explica. Com o apoio de um pequeno grupo de amigos e conhecidos, que enfrentaram as áreas inundadas para ajudá-las, ela e a sócia encontraram motivação.
"Apesar de todo o avanço da tecnologia no mundo, a gente viu com essa experiência que ainda precisamos muito das pessoas", comenta Rosane, sobre os aprendizados.
O nível de água chegou a 1m80cm dentro do estabelecimento, que ficou alagado por cerca de 15 dias. Mercadoria e todo o estoque foram perdidos. Da estrutura, só restaram as prateleiras. Ao todo, 60 famílias dependiam do futuro do negócio. Quando finalmente conseguiram reabrir, quase três meses depois, os líderes do empreendimento se sentiram recompensados pelos esforços de superação. Tinha fila de clientes na porta. "Nesse momento, a gente sente a nossa importância. Estamos há 14 anos nesse ponto. Somos um patrimônio do bairro", reconhece. Tamanha satisfação já tinha sido sentida quando os funcionários começaram a voltar. "Eles estavam felizes em voltar, mostrando que amavam trabalhar ali", recorda Rosane.
Para reerguer o negócio, a ajuda da Rede Grande Sul de supermercados junto a fornecedores foi fundamental. Também usaram linhas de crédito ofertadas de forma emergencial pelo governo. "Temos uma conta para pagar, mas reabrimos a loja ainda mais bonita", destaca ela. Para a solenidade de reinauguração, o mercado contou ainda com o apoio da Agas.
"A retomada está na força das pessoas"
Pelo que já foi possível fazer e por tudo que ainda precisa ser realizado, o cotidiano da rede Unisuper ilustra bem como tem sido diário o exercício da superação entre os supermercadistas gaúchos atingidos pelas enchentes de maio. O estado contínuo de "super" ações deve prosseguir por cerca de um ano, projeta Sandro Formenton, diretor presidente da rede, quando então ele planeja estar a pleno. Das 22 lojas, nove ficaram alagadas (sete em Canoas e duas em Porto Alegre). O Centro de Distribuição também foi atingido. Atualmente, opera em outro endereço, no mesmo bairro, mas em terreno mais alto e com uma estrutura mais robusta.
Trabalhando desde maio, somente em agosto as unidades começaram a ser reabertas: uma no dia 8, outra prevista para o dia 22. Sete endereços seguem em reformas sem data prevista para a volta das operações. A matriz, que nunca em 34 anos ficou fechada mais do que dois dias no ano, está sem operações há mais de 100. E deve seguir assim por cerca de dois meses ainda. "Estamos focando nas reaberturas, mas temos uma limitação financeira", afirma. Segundo o dirigente, o prejuízo está em R$ 92 milhões até agora. O grupo não conseguiu acesso aos programas anunciados pelo governo e está recuperando o negócio com capital próprio. Formenton confessa que, em meio ao caos dos dias de maio, sentiu desespero. "Meu filho disse pra mim: pai, se for para a gente cair, vamos cair atirando. Vamos levantar a cabeça e trabalhar. Fiquei pensando e é isso: vamos para cima", comenta.
Há mais de 30 anos no ramo, Formenton lembra que desafios fizeram parte da história da empresa, que sempre buscou formas de se desenvolver tendo iniciado familiar e sendo regional. A catástrofe climática da enchente, porém, foi um desafio gigante demais, desafiando o conhecimento adquirido com a experiência. "Nunca antes fizemos tantas contas, tantos planejamentos, estratégias, reuniões, nunca se trabalhou tanto em tantas frentes. Reuniões com fornecedores, bancos, com equipes", enumera ele. Os aprendizados começaram já na limpeza dos estabelecimentos. "Fomos atrás de empresas que soubessem fazer e não tinha. Os líderes, os sócios é que arregaçaram as mangas e foram para o front", relembra. Levamos 60 dias para limpar tudo.
Como combustível anímico, receberam o carinho de amigos, familiares e clientes. Não tem um dia que o grupo não receba mensagens perguntando quando vão reabrir. "Um bairro pedindo para gente voltar não tem preço. É um reconhecimento. Ficamos felizes porque comprova que as pessoas veem valor no nosso trabalho", diz o supermercadista. "Hoje, olhando tudo o que a gente conseguiu fazer, eu vejo a força, a garra e a determinação que temos. A retomada está na mão, na força das pessoas", enaltece. "A cada dia foi aparecendo mais gente para ajudar, mesmo quem perdeu tudo. A corrente foi ficando cada vez mais forte e, assim, encontramos os caminhos até agora", complementa agradecido.
O dirigente ressalta que a ajuda de fornecedores regionais significou muito e lamenta não ter tido a mesma compreensão de multinacionais. "A força que a gente tem é a força do setor, da nossa rede de relacionamentos, um apoiando o outro, compartilhando o que fez diante de cada problema", afirma, citando a Agas e a RedeCen. A jornada de superação, no entanto, está no começo. "Ainda tenho 650 colaboradores em casa. A partir do mês que vem, devem retornar. Minha maior preocupação é com a manutenção dos empregos. Governos e instituições não olharam muito bem para isso, ficou tudo com a gente. Temos 1,2 mil famílias que dependem do nosso negócio", afirma.