O faturamento do sistema cooperativo gaúcho somou R$ 86,3 bilhões em 2023, o equivalente a 13,4% do Produto Interno Bruto (PIB) do Rio Grande do Sul no período. O dado é ainda mais representativo se for considerado que as cooperativas do agronegócio, que contribuem com a maior parte do faturamento, foram fortemente impactadas pelas adversidades climáticas dos últimos anos. Ainda assim, o ramo do agro teve faturamento de R$ 48,6 bilhões (56,3% do total) em 2023.
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Quando a análise inclui as 370 cooperativas de sete diferentes ramos registradas no Sistema Ocergs, houve crescimento nas receitas, comportamento que se repete ano após ano. Além disso, as sobras (que equivaleriam ao lucro, se as cooperativas fosse empresas tradicionais) tiveram um volume 20% superior no ano passado, alcançando a marca de R$ 5,1 bilhões.
O presidente do Sistema Ocergs, Darci Hartmann observa que o conjunto de números superlativos resume a força do cooperativismo gaúcho, que alavanca o desenvolvimento de comunidades e o crescimento do Estado, especialmente no Interior. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Hartmann destaca que, mais uma vez, as cooperativas já estão de mangas arregaçadas para trabalhar na reconstrução do Rio Grande do Sul após a catástrofe climática, e aponta o papel fundamental das organizações nessa tarefa.
Hartmann ainda avalia a performance do setor, sustenta a importância de facilitar o acesso a crédito pelo governo federal para a recuperação do território gaúcho, e aponta a importância do trabalho colaborativo, para criar um novo Rio Grande do Sul, mais moderno e preparado para enfrentar novos desafios. O presidente da Ocergs ainda comenta a meta ambiciosa das cooperativas, de alcançar faturamento anual de R$ 150 bilhões.
Jornal do Comércio - Como foi o exercício de 2023 para as cooperativas do Rio Grande do Sul?
Darci Hartmann - Foi um ano muito bom, com real crescimento do sistema, mostrando que esse modelo econômico e social do cooperativismo está crescendo cada vez mais através da sua profissionalização, da gestão dos seus quadros, todos os ramos cresceram. Mesmo o ramo agropecuário, que teve queda de faturamento - tivemos quebra na soja, no milho, no trigo -, avançou no share de mercado no sistema agropecuário. Crescemos na margem líquida nos resultados, chegamos a R$ 5 bilhões de resultados em todos os ramos, e o cooperativismo está em um processo de crescimento, estamos caminhando firmemente por (alcançar faturamento anual de) R$ 150 bilhões. Em 2023, quem puxou o resultado foi o (ramo) Crédito. A Saúde teve crescimento de entrega, foi o segundo melhor crescimento. Basta ver o quanto cresce a Unimed, que é líder de mercado, 56% dos planos de saúde são Unimed, e 44% são todos os outros planos (no Estado).
JC - As cooperativas gaúchas não cresceram dois dígitos em faturamento em 2023 por causa da questão climática que afeta o agronegócio. Mas o resultado - as sobras - cresceu dois dígitos...
Hartmann - Em sobras cresceu dois dígitos, no patrimônio líquido cresceu dois dígitos, em todos os setores. Só no faturamento não cresceu, porque o agropecuário é o carro-chefe e teve redução de faturamento. Nesse ano, se for normal, o faturamento vai crescer dois dígitos.
JC - Qual é o papel das cooperativas no trabalho de retomada econômica do Rio Grande do Sul?
Hartmann - É de fundamental importância. Em primeiro lugar, precisamos buscar a reconstrução através do investimento na agropecuária, onde o retorno é mais rápido. Precisamos de recursos para recuperar o solo, que as enxurradas levaram com muita força. Precisamos de recursos para capitalizar o produtor, para que possa fazer seus investimentos. E com a capacidade de trabalho, a resiliência do cooperado e a capacidade de gestão e profissionalização das cooperativas, vamos realavancar essas atividades. Temos algumas regiões que precisamos ter tratamentos especiais...
JC - Quais?
Hartmann -O Vale do Taquari e o Vale do Jacuí têm cooperativas que foram destruídas. A cooperativa Certel, de Lajeado, teve prejuízo de R$ 150 milhões, duas usinas destruídas, 70% das redes destruídas. Cooperativas de infraestrutura sofreram muito com o impacto das cheias, com armazéns inundados, produtores perdendo 70% do seu produto na lavoura. Essas regiões precisam ter tratamento diferenciado com recursos mais a longo prazo, precisa de investimentos com juros zero ou até a fundo perdido. Tem muito produtor que perdeu do martelo até o trator, do galpão até a casa. A Ocergs, até fazendo projetos, tem buscado recursos a fundo perdido, para que possamos alavancar esses produtores. E as outras regiões, do Planalto, que tiveram a colheita concluída, 85% ou 90% da soja tinha sido colhida, tiveram um processo de erosão muito grande, vão precisar muito de investimento na recuperação de solo. A Ufrgs tem estudos que apontam perdas de
R$ 8 bilhões em solos. O centro de pesquisas das cooperativas da CCGL, em Cruz Alta, fala em 10 sacas de soja por hectare o potencial de redução de produtividade para o ano que vem, se não houver investimento maciço. E não temos visto sinais muito promissores de investimento... Sem contar que a Metade Sul teve perda de 50% da sua produção e já vem com dois anos de muita dificuldade, porque a seca tem sido mais intensa na Metade Sul.
R$ 8 bilhões em solos. O centro de pesquisas das cooperativas da CCGL, em Cruz Alta, fala em 10 sacas de soja por hectare o potencial de redução de produtividade para o ano que vem, se não houver investimento maciço. E não temos visto sinais muito promissores de investimento... Sem contar que a Metade Sul teve perda de 50% da sua produção e já vem com dois anos de muita dificuldade, porque a seca tem sido mais intensa na Metade Sul.
JC - O crédito acessível tem papel fundamental na retomada. O dinheiro está chegando na ponta?
Hartmann - Hoje não tem chegado nada. As cooperativas têm um projeto desde o início, pedimos uma reconversão desse pacote de débitos dos últimos 3, 4 anos que o produtor está endividado, para que pudéssemos jogar tudo em um pacote e refinanciar em 10 anos com 2 de carência, com juros de 3%, 5% e 7%. Para que o produtor pudesse limpar seu nome e acessar novos créditos. Em segundo lugar, no Plano Safra, a questão é a capacidade de o produtor acessar esse recurso, porque tem contas do ano retrasado, vencidas, contas do ano passado vencidas, já tem um passivo. Como vai ter a capacidade financeira de acessar esse recurso? O sistema cooperativo tem brigado para criar um fundo de aval mais robusto, para que os produtores tenham acesso a crédito, e possam fazer o alongamento à dívida, para investir no custeio. Precisamos de crédito para recuperação de solo, é através do solo que vamos potencializar a produção e fazer a recuperação da atividade econômica.
JC - O senhor acredita que é preciso uma linha específica de crédito para o Rio Grande do Sul?
Hartmann - Com certeza. O Plano Safra pode ser para o Brasil todo. Mas para o Rio Grande Sul é preciso um fundo de aval específico e repactuação dos débitos. Então, alongamento de débitos para 10 anos e um fundo garantidor para que o produtor tenha acesso ao dinheiro do Plano Safra.
JC - O senhor mencionou a recuperação dos solos. Quanto o impacto das chuvas deve afetar os resultados das próximas safras?
Hartmann - No próximo ano, vamos ter perda de produtividade, mesmo com investimentos. Se tivermos recursos, a projeção é de em cinco anos voltarmos aos índices de produtividade anteriores à chuva. Mas precisamos investimentos. O produtor vai ter que repensar seu processo.
JC - Qual é o papel das cooperativas de crédito para ajudar os produtores nesse cenário?
Hartmann - As cooperativas de crédito têm um trabalho fundamental, com capilaridade e presença. Pode não ter nenhuma instituição financeira, mas a cooperativa de crédito está lá nos rincões do Rio Grande do Sul. Essa relação direta com o produtor e os recursos vão ser fundamentais. Tenho muito mais esperança de recurso das cooperativas de crédito do que de recursos oficiais. A cooperativa conhece seu associado, a história, não é um simples cadastro. Está lá fisicamente. E tem convivência com o associado e sabe quem paga e quem não paga.
JC - E a necessidade de disponibilização de crédito e prazos a partir dessa nova realidade...
Hartmann - A necessidade dos produtores em relação à renegociação é de 10 anos... A dívida que temos levantada é dimensionada àquilo que o produtor deve nas cooperativas, que é R$ 3 bilhões. O índice de endividamento é muito alto, porque em cinco anos tivemos três secas, uma chuvarada e um ano que deu uma safra boa. É desafiador.
JC - A tendência é que esses eventos climáticos, com muita ou com pouca água, se repitam. Como está sendo trabalhado esse cenário nas propriedades, se safras cheias e rentáveis estão cada vez mais sob risco climático?
Hartmann - A velocidade da recuperação está ligada a aporte de recursos. O produtor vai plantar. Com mais ou menos tecnologia, o produtor é resiliente, criativo, ele busca alternativa. Eventualmente pode plantar e perder dinheiro, porque vai para o custo financeiro do mercado acessar recursos. O aumento da produtividade vai estar relacionado aos projetos governamentais de incentivo. Produtividade está relacionada a investimentos em calcário, fertilizantes e corretivos. E isso a média do produtor não vai fazer neste ano se não houver financiamentos e grandes projetos de alocação de recursos. Agora, que ele vai plantar, vai... Vem a seca, e temos outro problema. Estávamos falando, até o ano passado, em fazer irrigação, mitigar a seca, e podermos resolver tudo isso. Eu diria o seguinte: o produtor vai plantar, tecnologia vai depender da capacidade de acesso ao crédito e, em segundo lugar, a velocidade da reestruturação do solo e da produtividade vai depender de investimentos maciços do governo.
JC - Nesse contexto de desafios da recuperação tem outro fator, a cotação das commodities...
Hartmann - A commodity sobe e desce. Se pega o preço da soja subindo, compra o insumo mais baixo, tem uma boa margem. Se pega um ano em que o preço do insumo está mais alto - e o insumo sempre é atrás do preço da commodity -, tem uma margem líquida bem menor. Mas isso é do jogo da atividade econômica. O que precisamos é produtividade. E produtividade é investimento no solo. Para ter margem, é preciso produtividade. Tem, no Rio Grande do Sul, quem produz 40 sacas de soja por hectare e quem produz 90 sacas, na média. Isso, às vezes, em uma distância de um quilômetro. Isso é investimento em tecnologia, e para isso precisa recurso. E o produtor não tem recurso para investir.
JC - Essa conjuntura pode frear investimentos das cooperativas em estruturas de armazenagem?
Hartmann - Não vejo hoje um grande problema de armazenagem. O maior problema é a Metade Sul, onde a velocidade de aumento de área de soja é muito grande. Então, a armazenagem está vindo atrás, mas não está alcançando. Mas aí tem a proximidade do Porto de Rio Grande, com essa facilidade escoa diretamente. Mas as cooperativas, as empresas vão tirar o pé nos investimentos, principalmente por causa dos dois anos de seca. E agora por causa dessa chuvarada. Essa instabilidade vai tirar investimentos em armazenagem.
JC - Mesmo com todas essas adversidades, as cooperativas de todos os ramos no Rio Grande do Sul tiveram crescimento de 20% no resultado de 2023, isto é, as sobras cresceram. A que se deve essa alta contínua?
Hartmann - Os 20% da sobra são do geral das cooperativas. Grande parte dessas sobras são geradas pelas cooperativas de crédito. As cooperativas do agro tiveram sobras mais ou menos idênticas ao ano passado e um pouquinho de redução. Mas tiveram sobras. E o produtor que teve tecnologia, que produziu bem, teve sobras no ano passado. Mas tem muito produtor que já está há três anos reduzindo a tecnologia. Menor a produtividade, menor o resultado... Mas o cooperativismo aumentou o share do mercado, sua participação do mercado agro no Rio Grande do Sul. Crescemos.
JC - E a participação no PIB como um todo também cresceu?
Hartmann - O sistema cooperativo faturou no ano passado R$ 86,3 bilhões. Isso corresponde a 13,4% do PIB do Rio Grande do Sul, que somou R$ 640,2 bilhões em 2023 (5,9% do PIB nacional). Hoje o sistema cooperativo tem, na exportação da soja, os dois terminais da CCGL têm 70% de todas as exportações de soja do Rio Grande do Sul. O sistema cooperativo está crescendo. Pela assistência técnica, pela presencialidade, pela tecnologia do SmartCoop, que é uma plataforma tecnológica pela Rede Técnica Cooperativa (RTC), tem o Centro de Pesquisa, depois tem 1,1 mil agrônomos que têm essa pesquisa à mão, para ser aplicada em tempo real, então, tem todo um trabalho que é feito diferente de uma empresa que compra soja. E nesse crescimento tem o RS Coop 150, oportunizando essa intercooperação com o transporte e os outros ramos do cooperativismo, que têm essa capacidade.
JC - As cooperativas gaúchas ajudando-se entre si...
Hartmann - O RS Coop tem essa capilaridade de oportunizar o crescimento entre as cooperativas. Por exemplo, hoje tem uma plataforma onde as cooperativas de transportes tomam frete das cooperativas e grãos. Hoje as cooperativas de infraestrutura prestam serviços a todos os armazéns das cooperativas agropecuárias. Tem se trabalhado assim, para que todas as cooperativas de saúde possam atender todas as cooperativas agropecuárias. Então, o processo é transversal. Se olharmos, por exemplo, todos os supermercados de cooperativas (somados formam) a maior (rede) do Estado. Está se criando uma central de compras no sistema cooperativo. Está se discutindo uma central de logística do sistema. Temos muita capacidade de convergência ainda, onde possamos nos unir, não nas estruturas básicas de armazém, mas na inteligência, na logística, na informação, na tecnologia, temos condições de crescer muito nos próximos anos.
JC - Muito se fala em como manter o jovem no campo. Agora a pergunta é como manter o gaúcho no Rio Grande do Sul com essa questão das enchentes...
Hartmann - Olha, o jovem tem ficado no campo, acho que essa matéria está um pouco vencida. O jovem está ficando no campo porque tem tecnologia, internet fibra ótica, toda a tecnologia no campo, e tem renda. Produtor que tem renda, o jovem fica. Para manter o gaúcho, temos que trabalhar muito forte, com muita vontade de mostrar o quanto somos capazes de fazer de novo, mas fazer diferente. Construir um agro diferente, construir cidades diferentes, construir um Estado diferente, com novas tecnologias, com novas variáveis. E o grande caminho para fazer isso é a cooperação. E é por isso que o cooperativismo está crescendo muito forte.
JC - É hora de unir todo o Rio Grande do Sul?
Hartmann - Agora é hora de olhar o Rio Grande, fazer cooperação entre Estado, município e União para que possamos reconstruir. Eu acredito que é muito bom esse Estado. Temos muita tecnologia, muita capacidade de produção, muita resiliência. O que precisamos agora é de um empurrão da União através da injeção de recursos para que o Estado possa decolar de novo, e vamos produzir com muita intensidade. Quando eu comecei a produzir soja, produzíamos 3 milhões de toneladas (no Rio Grande do Sul. Estamos com 22 (milhões de toneladas). Se der duas safras boas, não temos capacidade de exportação, não tem terminais para exportar. Então, tem muita coisa boa acontecendo nesse Estado, só que temos que valorizar e potencializar.
JC - Diversos ramos do cooperativismo colaboraram na crise...
Hartmann - O trabalho que a Cootravipa fez na limpeza de Porto Alegre... É uma cooperativa. As cooperativas de transporte, colocando os veículos a disposição, foi um trabalho belíssimo feito nesse período. A questão da Saúde, que fez o trabalho de disponibilização das centrais de medicamentos. As de Crédito, que estão dobrando o valor, cada real que é doado, é doado mais um real pelas cooperativas de crédito, o Sicredi está aportando para fazer a reconstrução do Estado.
JC - Qual é o aprendizado que a sociedade como um todo pode pegar no cooperativo?
Hartmann - Esse desastre climático ensinou uma questão fundamental: temos que buscar uma cooperação maior, temos que repensar nossas atividades, pensar, fazer diferente, fazer novo, entender que precisamos trabalhar mais com cooperação. Cooperação entre todos os setores, olhar mais as nossas convergências e minimizar nossas divergências. Muitas vezes potencializamos os 10% que temos de divergências, esquecendo de olhar os 90% que nos convergem. E olhar o Rio Grande como um todo, com cooperação e com muita vontade de trabalhar vamos reerguer esse Estado, tenho absoluta convicção disso. E vamos ter um Estado muito melhor preparado e muito mais tecnológico. Vamos sair em uma nova era de desenvolvimento. Mas vai depender de nós todos, integrados, temos condição de (fazer) emergir esse Estado. O sistema Ocergs está se colocando à disposição do governo do Estado para a reconstrução.