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Publicada em 18 de Novembro de 2024 às 13:45

Restauro de prédios históricos soma adeptos no Estado

Movimento de empreendedores recuperando imóveis antigos para dar vida a negócios é crescente no Rio Grande do Sul; o Moinho Ellwanger, em Sapiranga, é exemplo nesse segmento

Movimento de empreendedores recuperando imóveis antigos para dar vida a negócios é crescente no Rio Grande do Sul; o Moinho Ellwanger, em Sapiranga, é exemplo nesse segmento

Moinho Ellwanger/Divulgação/JC
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Ana Esteves, especial para o JC
Ana Esteves, especial para o JC
Muitos motivos podem levar as pessoas a quererem recuperar e restaurar um prédio antigo e, dessa forma preservar não só o patrimônio histórico e cultural, mas a memória de toda uma época. Há quem preserve a casa que era dos antepassados, por questões afetivas e de necessidade de manter vivas as lembranças de família e pela importância social e econômica da propriedade. Outras pessoas buscam casas antigas para iniciarem novos negócios, por entenderem da importância histórica, da qualidade e do atrativo econômico que construções antigas podem ter. Há ainda quem se dedique a preservar o patrimônio arquitetônico público e tudo de histórico que vêm junto com ele.
"Vivemos um momento de transformação desse mercado do restauro, especialmente no setor privado, mesmo que ainda muito incipiente. Até poucos anos atrás, esse mercado da conservação e do restauro arquitetônico estava majoritariamente voltado a bens públicos", afirma o arquiteto e coordenador do projeto O Campanário, Jorge Luís Stocker Junior. Segundo ele, muitos empreendedores buscam o imóvel histórico por conta da mensagem que a construção traz, a qual é agregada ao negócio. "Uma das formas mais baratas de ter um imóvel interessante para o seu negócio é optar por um imóvel antigo, pois fazer um imóvel novo, nos padrões de um antigo que demanda acabamentos de alto padrão, que chame a atenção, é muito caro", diz Stocker Junior.
O arquiteto mestre e especialista em edificações do patrimônio cultural, Lucas Volpatto, do Studio1 arquitetura, diz que existe uma tendência mundial de as pessoas valorizarem lugares antigos para instalarem seus estabelecimentos comerciais e ressignificá-los com outras ocupações e novos usos. "São lugares que se tornam mais atraentes, mais interessantes, porque a preservação só se justifica com o uso. Acho bem saudável essa procura quando bem adequada dentro dos princípios da preservação e da conservação." Na avaliação dele, uma construção antiga tem várias qualidades para serem observadas, ter uma fruição maior ao habitar o espaço por causa de um café, de um restaurante, de uma loja, de um centro cultural. "A ocupação sempre justifica a preservação e a permanência daquele bem, senão ele vira um monumento que perde a sua função como patrimônio", diz Volpatto.
Existe tanta falta de conhecimento que os municípios ainda estão muito pouco estruturados para fazer de fato uma restauração. Algumas vezes tem restrição, não pode demolir a edificação porque ela é inventariada ou tombada, mas como não tem equipe técnica em restauro, saem algumas caricaturas de preservação. "Tem que deixar a casa, então a pessoa faz o mesmo projeto que ela faria sem a casa e deixa aquela fachada de pórtico, puxa um telhado atrás, então é uma coisa bem desrespeitosa. É como se a gente imaginasse que fosse preservar uma biblioteca mantendo a capa dos livros e o conteúdo mesmo dos livros, a gente joga fora", compara.
Para Volpatto, o grande desafio é sempre a questão do conhecimento, que deve ser passado para o cliente sobre a importância da preservação, para a equipe de mão-de-obra que não está acostumada a trabalhar com algumas técnicas tradicionais e também para a sociedade sobre o porquê de estar preservando. "Nos projetos de restauro precisamos saber interpretar o bem, para poder intervir, porque diferentemente de obras convencionais, no caso de patrimônio histórico cultural, quem dá as diretrizes não é o arquiteto, nem o cliente, e sim o patrimônio, é aquele edifício que dá as diretrizes, principalmente tem que ser muito bem interpretado."
Volpatto destaca ainda a importância da conservação da memória no trabalho de restauro de prédios antigos, preconizando a manutenção da autenticidade, respeitando as camadas históricas do imóvel, a trajetória do edifício no contexto em que foi construído. "As casas são resultado da nossa sociedade, da nossa forma de pensar, da nossa época." Para os profissionais que trabalham com edificações do patrimônio cultural, a pesquisa é contínua, com o objetivo de buscar as potencialidades dos bens, mantendo sempre as questões de autenticidade e originalidade, quando possível.
 

Casa de 1920 ganha nova roupagem para abrigar cafeteria

Imóvel do estabelecimento, em Novo Hamburgo, estava descaracterizado devido a alterações anteriores

Imóvel do estabelecimento, em Novo Hamburgo, estava descaracterizado devido a alterações anteriores

Florindas/Divulgação/JC
Um café criado com a temática da personagem Dona Florinda, da série de TV mexicana Chaves, encanta a todos que passeiam pelas ruas do bairro Hamburgo Velho, em Novo Hamburgo. Não só pelo tema, mas pela casa que abriga o estabelecimento batizado de Florinda's: uma construção de 1920 que foi completamente restaurada para abrigar o negócio da empresária Gabriela Borba Furtado. "Sabe-se que na década de 1920, o imóvel foi construído ou adaptado para a alfaiataria de João Emílio Leyser. Após o encerramento da alfaiataria em 1941, a casa foi reformada para uso residencial e alugada. Muitos moradores da casa vêm tomar café frequentemente no espaço e conversar sobre suas memórias afetivas do local", conta Gabriela.
O Florinda's era um imóvel que estava todo descaracterizado, pois várias empresas alugaram e fizeram reformas que mudaram a configuração original da casa: trocaram janela, telhado. "Os donos do café nos procuraram especificamente para o restauro. Eles queriam realmente que a casa voltasse a ter um aspecto de prédio histórico porque era uma demanda dos clientes", afirma o arquiteto e coordenador do projeto O Campanário, Jorge Luís Stocker Junior. A partir da obra, foram repostas esquadrias originais, que precisaram ser feitas por marceneiro, foi feito reboco tradicional com cal e areia, pintada com tinta compatível. Era uma fachada que passava batida e não era parte do negócio. Ao recuperar o patrimônio cultural e arquitetônico, cria um vínculo com as pessoas. Um dos grandes desafios do restauro é encontrar peças de reposição, como adornos, janelas, ladrilhos. No caso do Florinda's foi trazido um carpinteiro que trabalha de uma forma mais tradicional, que sabe o tipo de abertura e seu ângulo. "São peças que não têm no mercado. É preciso capacitar e sensibilizar a mão-de-obra, em geral, a gente vê que o pessoal joga a argamassa de cimento por cima da casa histórica e prejudica toda a fachada. Elas são tão genéricas que podem abrigar qualquer tipo de negócio, só que elas são tão pouco segmentadas que não alugam, ficam encalhadas", entende.
 

Família transforma moinho do século XIX em espaço cultural e gastronômico em Sapiranga

Para o restauro do Moinho Ellwanger foram ouvidos idosos e realizada uma pesquisa acadêmica documental

Para o restauro do Moinho Ellwanger foram ouvidos idosos e realizada uma pesquisa acadêmica documental

Moinho Ellwanger/Divulgação/JC
Durante muitos anos do século XIX, o Moinho Ellwanger era um dos responsáveis pela iluminação das casas do município de Sapiranga, no Vale dos Sinos, a partir da produção de azeite de amendoim, usado nas lamparinas das residências. A edificação na técnica construtiva Enxaimel segue de pé até hoje e, depois de um longo tempo desativada, passa agora por um processo de restauro e revitalização para se transformar em um ponto turístico e gastronômico do município. A ideia foi da arquiteta, coordenadora do projeto de preservação e restauro da Casa e Moinho Ellwanger, Julia Wartchow, que pertence a 5ª geração da família a ocupar a propriedade. "Esse bem está na família desde a criação do lote colonial em 1870, quando a área foi vendida pelo Barão do Jacuí. Meu avô nasceu na casa e ouvíamos suas histórias", conta Julia.
Para dar início ao trabalho, foi realizada uma pesquisa histórica acadêmica e documental, além de entrevistas com aos moradores idosos da região que viram o moinho em funcionamento e frequentavam a casa, nos tradicionais bailinhos alemães. "A comunidade reunia alguns músicos com diferentes instrumentos e algumas famílias dos arredores dançavam no salão da casa", conta Julia. Segundo ela, esta memória local foi essencial, pois acrescentou muitas informações sobre o cotidiano, os saberes locais, as práticas comunitárias, como os bailes, a culinária e o funcionamento do moinho. "Se o local fosse demolido, o último moinho de azeite de amendoim, estas memórias se perderiam. Pelas nossas pesquisas, acreditamos que este é o último moinho do tipo e resgatamos informações do seu funcionamento." A ideia é fazer com que o moinho volte a operar, mas para isso eles buscam mão-de-obra especializada que consiga fazer a engrenagem funcionar. Originalmente era movida à tração animal. Segundo a arquiteta, que também é responsável pelo projeto retrofit do espaço, a ideia do espaço cultural se mostrou viável, por uma série de aspectos. "O acesso fácil, próximo a Porto Alegre e municípios turísticos, o fato de ter um moinho singular pela sua funcionalidade, por estar completo e preservado, em seu local original e um ambiente natural diversificado, com área significativa de Mata Atlântica preservada", explica a arquiteta.
Julia conta que a família conseguiu o tombamento do bem — fato que permitiu a criação do primeiro Livro Tombo do município de Sapiranga — para facilitar o acesso a recursos de leis de incentivo à cultura, tanto para o restauro como para atividades de educação, como visitação escolar e produção audiovisual sobre a memória do local. "Uma dificuldade é que não existe nenhuma linha de crédito no mercado voltado para a preservação do patrimônio histórico. Por enquanto estamos usando recursos próprios, inclusive para ações emergenciais de preservação, como substituição do telhado. Vamos constituir uma associação para buscar os recursos que precisamos para manter e preservar o local", finaliza.
 

Capela centenária da Ufrgs é recuperada e contará com memorial para comunidade em Eldorado do Sul

Manutenção e conservação da pequena igreja foi a condição estabelecida pela família proprietária das terras

Manutenção e conservação da pequena igreja foi a condição estabelecida pela família proprietária das terras

Ufrgs/Divulgação/JC
Obras de restauro e recuperação do patrimônio cultural arquitetônico são rotina para o setor de Patrimônio Histórico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (SPH/Ufrgs), mas um projeto recente ganhou carinho especial por parte da equipe: a restauração da capelinha de São Pedro, localizada na estação Experimental Agronômica da Ufrgs, em Eldorado do Sul.
A manutenção e conservação da pequena igreja foi a condição estabelecida pela família proprietária das terras para a venda da área que, na década de 1960, foi comprada pela universidade. "A gente nota que quando as pessoas têm uma ligação afetiva com a memória do lugar, da edificação, quando isso é identificado como algo seu ou tem um pertencimento, amplia exponencialmente o desejo pela preservação e a vontade de perpetuar isso para outras pessoas, para que possam usufruir e ter os mesmos sentimentos", afirma a arquiteta e urbanista do SPH/Ufrgs, responsável pela fiscalização da obra, Ana Lúcia Dreyer.
Todo o processo de restauro foi feito de acordo o original: as telhas coloniais foram retiradas com cuidado, lavadas, recolocadas e as quebradas foram substituídas por telhas semelhantes. Os ladrilhos foram feitos iguais aos originais, a partir de um molde específico.
A parte externa da edificação foi feita como antigamente: usando barro como massa de reboco e pintura com cal. "Interviemos o mínimo possível na edificação e uma alteração importante é acessibilidade, com uma rampa eliminando o desnível, além da criação de um memorial com a história da Capela e da Estação", afirma a arquiteta e urbanista do SPH/Ufrgs, também integrante do projeto, responsável pela fiscalização da obra, Camila Zanini.
Ana acrescenta que iniciativas de restauro vêm atreladas a questões de sustentabilidade e de ocupação do espaço urbano, transcendem o uso da edificação e reforçam a importância do prédio em determinada cidade.
"Ao mesmo tempo que a gente vê um crescimento de uma corrente de pessoas mais engajadas em preservar, também tem o oposto bem forte", afirma a arquiteta. A próxima obra prevista pela equipe do SPH é a reforma do prédio da Rádio da Universidade, localizada no Campus Centro. "A nossa expectativa é que inicie a obra em 2025", afirma Ana.
Os trabalhos de restauro dos prédios históricos da universidade dependem, em grande parte, da captação de recursos da Lei de Incentivo à Cultura (LIC), através do projeto Resgate, que existe há mais de 20 anos, e de doações de pessoas físicas que acontecem durante todo o ano. Sempre no fim do ano há o Dia da Doação, que nesta edição deve ocorrer na segunda semana de dezembro.
Na época da fazenda, a capela costumava ser usada para a realização de eventos religiosos não só para a família proprietária das terras, mas também para os moradores que viviam nas imediações. Camila acrescenta que a tipologia arquitetônica da Capelinha, como é chamada pela comunidade, é bem tradicional das capelas rurais da mesma época no Brasil.
Segundo a arquiteta, existe uma nave única, num volume principal, associada a um volume lateral mais baixo na composição e que corresponde à sacristia. "É uma edificação caracterizada por simplicidade arquitetônica, sem rebuscamentos decorativos, mas com um conjunto de vitrais coloridos em mosaico sobre a porta principal e nos óculos", afirma Camila.
Outros detalhes interessantes estão no frontão triangular que faz o acabamento superior e contém uma cruz em trevo no topo, cujos círculos interseccionados representam a Santíssima Trindade Católica, além de pináculos nas extremidades laterais da fachada. A aquiteta Ana Dreyer conta que mesmo depois que a universidade comprou a área de fazenda onde está a capela, a edificação foi mantida para seu uso original. "A comunidade universitária usava a capelinha como templo religioso", relembra.
Para Ana, o engajamento das pessoas para doação de recursos para obras na universidade é bem mais fácil quando são ex-alunos que frequentaram determinados espaços e que se sensibilizam com a necessidade de recuperação dos mesmos.
"Quando as pessoas são de fora, o trabalho na parte de divulgação e de educação patrimonial é ainda maior para fazer com que entendam a importância de manter a memória dos lugares."
No caso da Capelinha, ela seguia sendo a queridinha da comunidade universitária que transita pela estação experimental. Ana conta que, antes de a reforma começar, uma funcionária da universidade ia todos os dias colocar flores no altar para adornar a capela. "A capelinha cativa as pessoas, pois apesar de pequenininha, ela é muito bonita, é simples, e é querida assim, especialmente por ser a única dentro da Ufrgs, que é uma entidade laica."
Camila diz que a capela fica localizada na parte mais central da estação agronômica, perto do restaurante universitário, da administração e do alojamento dos estudantes. "Tem um eixo de palmeiras, que são 12 palmeiras que chegam na porta da capelinha. Inclusive tem uma história que cada árvore representa um dos 12 apóstolos. Tem alguns professores que dizem que uma das palmeiras volta e meia e morre e nasce de novo e que ela representa Judas", diz a arquiteta. Segundo ela, o terreno onde a capela foi erguida devia abrigar uma série de artefatos do passado que não foram localizados durante a obra de restauro. "Não conseguimos identificar nada, provavelmente já foi mexido em outro momento", lamenta Ana.
Sobre a obra em si, foram impostos alguns desafios especialmente para tentar manter a capela da maneira mais original possível. Além da questão em si das telhas, do reboco externo à base de cal e barro, e não de cimento, e dos ladrilhos, foi preciso um treinamento especial para os prestadores da obra.
"O pessoal que executou a obra se sentiu bem desafiado, pois para a maioria deles foi um tipo de trabalho totalmente novo", expõe Camila. Para Ana, a questão da conservação passa também por um processo de conscientização maior, não só pela questão histórica, mas também pelo viés da sustentabilidade, pois, cada vez que se demole uma edificação gera impacto. "Esse entulho vai para algum lugar, ao mesmo tempo em que estamos consumindo materiais novos, agregando coisas novas. Então é uma questão positiva a de preservar."
Para ela, a questão do espaço urbano também entra na conta, pois, em muitos casos, ao demolir uma casa ou um prédio, ocorre uma descaracterização dos lugares. "Tem a questão de identidade desses locais e, ao mesmo tempo que, na sociedade, tem uma corrente de pessoas querendo preservar, tem outra que não enxerga o potencial que essas edificações antigas têm", diz Ana.
 

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