Apesar de o Brasil ter assumido frente à comunidade internacional a meta de reduzir o uso de combustíveis fósseis para emitir menos gases de efeito estufa, as projeções oficiais para o setor elétrico nos próximos anos vão na contramão do objetivo anunciado. A previsão é que a matriz de geração no País, hoje uma das mais limpas do mundo, fique menos renovável e mais poluente.
O cenário principal projetado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE - estatal vinculada ao Ministério de Minas e Energia) é que em 2034 o volume de emissões resultantes da geração de eletricidade cresça 84% até 2034, para 26,9 milhões de toneladas de CO2eq (dióxido de carbono equivalente). O chamado grau de renovabilidade da matriz elétrica cairia de 94% para 89%.
A menor renovabilidade contrasta com o resto do mundo. Desde 2008, a participação das fontes renováveis na geração de energia cresce de forma contínua no planeta. O movimento no caso brasileiro, previsto no Plano Decenal de Energia da EPE, é explicado em grande parte pela legislação já em vigor, que prevê a contratação de termelétricas movidas a gás natural. Jabutis inseridos pelo Congresso no projeto de privatização da Eletrobras, que resultou em uma lei sancionada em 2021, exigem o uso de diferentes unidades dessas usinas, em grande parte no regime inflexível -isto é, de geração obrigatória, inclusive quando o cenário estiver favorável para hidrelétricas.
Com os 8 mil MW (o dobro da demanda média de energia do Rio Grande do Sul) de expansão compulsória de termelétricas a gás previstos na lei hoje, a projeção é que esse seja o insumo com maior crescimento na geração de energia do País -mais que quadruplicando sua participação na matriz ao longo dos próximos dez anos. Por enquanto, os leilões dessas termelétricas não têm ocorrido. Dos 8 mil MW previstos, apenas 754 MW já foram contratados e 7.246 MW aguardam um próximo certame.
Isso porque falta interesse da iniciativa privada nos leilões devido a uma trava inserida na lei da Eletrobras que estabeleceu um preço-teto para a contratação. O valor previsto na lei é o mesmo observado em leilão de energia de 2019 e não viabiliza gasodutos que teriam que ser feitos para escoar o gás, que têm custo bilionário.
Diante disso, a EPE traçou um cenário alternativo como exercício. A estatal considerou que, em vez das usinas termelétricas inflexíveis, a expansão de energia nos próximos anos continue sendo feita com usinas renováveis e parcialmente via térmicas flexíveis a gás. Nesse caso, as emissões passariam dos 26,9 milhões de CO2eq previstos para o cenário de referência em 2034 para 14,5 milhões na hipótese alternativa. Apesar de ainda haver leve queda na renovabilidade, haveria uma queda de 46% em relação ao cenário de referência.
O uso de térmicas flexíveis traria vantagem em relação ao cenário principal porque elas são chamadas a operar apenas em momentos de necessidade do sistema -como em períodos de estiagem. Já as inflexíveis possuem nível de operação constante, gerando de forma contínua energia e gases de efeito estufa.
"Dessa forma, como esperado, uma expansão otimizada em que se permita a substituição da oferta térmica a gás natural inflexível por uma oferta renovável e com térmicas a gás natural flexíveis [resulta em] uma redução significativa das emissões de gases de efeito estufa anuais", afirma a EPE.
O presidente executivo da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace Energia), Paulo Pedrosa, afirma que o Congresso deveria rever as obrigações de contratação de usinas térmicas inflexíveis. "Essas usinas trazem dano ao setor elétrico. Elas deslocam a geração renovável, encarecem o custo da energia para o País, carbonizam as emissões brasileiras e tiram a competitividade da economia", afirma.
Apesar do cenário alternativo traçado pela EPE, o Congresso não tem demonstrado vontade de eliminar a obrigação de contratação de usinas termelétricas inflexíveis. Recentemente, os parlamentares foram na direção oposta ao usarem o projeto de lei das eólicas offshore (no mar) para mexer na lei da Eletrobras e flexibilizar a regra do preço-teto que tem impedido leilões -o que deve viabilizar 4 mil MW de usinas inflexíveis.
A manobra foi criticada pelo Ministério do Meio Ambiente, que enxerga uma contradição em relação aos esforços climáticos do País, como o Acordo de Paris e diz que o movimento "representa um retrocesso ambiental, econômico e político". "O ministério manifestou posição contrária ao artigo 21 do PL (das eólicas offshore, em trecho que obriga as termelétricas) ante a necessidade de manter o compromisso do Brasil com a redução de emissões e a integridade climática", afirmou o Ministério do Meio Ambiente. Já a pasta de Minas e Energia não comentou.
O texto aprovado pelo Congresso seguiu para análise de sanção de Lula. O governo analisa o que vai fazer. Um eventual veto do presidente ainda poderia ser derrubado por deputados e senadores. Caso prevaleça a vontade do Parlamento pelas usinas inflexíveis, a previsão principal continua sendo de uma matriz menos limpa. Ricardo Fujii, especialista em conservação do WWF Brasil, afirma que as termelétricas a gás têm tido frequente apoio no Congresso e prejudicam o esforço necessário para combater mudanças climáticas. Além disso, afirma, são opções caras.
"O Brasil não possui uma infraestrutura robusta de gasodutos, então essas novas termelétricas demandariam não apenas a construção delas em si, mas também de uma rede, inclusive em áreas de produção potencial de gás que estão em alto-mar", diz. No governo e entre especialistas em energia, afirma-se que alguma elevação no uso das térmicas a gás é, na verdade, desejável -mas não no modelo inflexível. O motivo é dar mais segurança energética quando o País estiver em condições de geração mais problemáticas, como em períodos de seca.
"Alguma contratação de termelétrica pode ser necessária ao sistema. Uma contratação que, de forma eficiente e econômica, ajude a tornar o sistema como um todo mais seguro para todos e a energia, na média, mais barata", afirma Pedrosa, da Abrace. A diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ceri), Joísa Dutra, afirma que o cenário da eletricidade no País não depende necessariamente da expansão termelétrica a gás. Mas que o insumo pode ser uma opção barata no desafio da transição energética, principalmente considerando as necessidades do País de expandir sua geração.
A previsão oficial é que, em dez anos, o País precisará de quase 40% mais eletricidade do que atualmente. A opção pelo gás natural seria menos poluente do que outras opções, como usinas a carvão ou movidas a diesel. Além disso, diz Joísa, o uso do gás na eletricidade pode ter respaldo retórico de quem defende compartilhamento de custos e consequentemente viabilização da construção da infraestrutura para o insumo ser usado na indústria- este, sim, um setor que pode se descarbonizar ao usar o gás no lugar de opções mais emissoras.
"Não necessariamente (o País precisa do gás na eletricidade). Mas aqui é preciso avaliar qual a solução de mínimo custo", afirma. "As pessoas podem não gostar e, sinceramente, acho que tem muita gente que não gosta (da expansão do uso do gás). Mas o Brasil tem dado sinais de que fará essa opção", diz.
Folhapress