O consumidor brasileiro vem comprando cada vez mais comida parcelada. Dados da GetNet, uma das três maiores empresas de pagamentos eletrônicos do País mostram que cresceu, nos últimos 12 meses, o nível de compras parceladas em supermercados, hipermercados e atacarejos. Segundo a GetNet, a fatia de transações parceladas no total de compras no varejo alimentar entre agosto de 2023 e agosto deste ano subiu de 6,2% para 7,4%, considerando o valor.
O tíquete-médio parcelado em agosto foi de R$ 270, um aumento de 15% sobre agosto de 2023. Em número de transações, o percentual saiu de 1,3% para 1,5% no período. Embora ainda represente um patamar baixo, o aumento chama a atenção por se tratar de um consumo básico.
A Associação Brasileira de Supermercados (Abras) diz não ter dados consolidados sobre quanto o parcelado representa das vendas totais do setor. Mas afirma que os consumidores que parcelam suas compras em cartões de lojas de supermercados apresentam uma taxa de inadimplência 30% maior em comparação àqueles que optam pelo crédito à vista nesta modalidade.
"Em média, muitos optam por parcelar em três vezes, mas, ao chegar à terceira parcela, as novas compras se acumulam e o consumidor acaba comprometendo novamente sua capacidade financeira, aumentando o risco de endividamento", afirma a Abras.
"O brasileiro incorporou o limite do cartão à própria renda e, se não consegue fechar uma compra de reposição dentro do seu orçamento, acaba parcelando", diz Rodrigo Carvalho, superintendente data & analytics da GetNet.
Na opinião de Paulo Robilotti, professor de economia da ESPM, a prática representa um grande risco para a estabilidade financeira do consumidor. "Alimentação é um gasto recorrente, mensal, diferente da compra de vestuário e eletrodomésticos, onde o parcelamento é comum."
Embora a renda real do consumidor esteja se recuperando desde 2021, o brasileiro ainda não voltou ao nível pré-pandemia, diz ele. "O nível de ocupação está aumentando, mas a renda achatou. Ao mesmo tempo, a inflação dos alimentos no domicílio disparou", afirma Robilotti, destacando que a variação do preços dos alimentos pelo IPCA entre janeiro de 2020 e agosto de 2024 foi de 49%.
"Há um alta generalizada dos preços, mesmo das marcas mais baratas, não há para onde correr", diz o professor da ESPM, para quem a situação tem alguma chance de melhora a partir de 2025, com a redução da taxa básica de juros Selic — hoje em 10,75%. "A renda atual não permite manter o ritmo de consumo."
Do ponto de vista dos lojistas, o aumento do parcelado também preocupa. "O parcelamento de compras no supermercado começou a ser oferecido por conta da concorrência: um varejista não quis ficar atrás do outro", diz Márcio Milan, vice-presidente da Abras. "Mas hoje o setor precisa lidar com três grandes desafios: a seca, que prejudica o preço especialmente dos hortifrútis, as bets, que tiram uma parte dos gastos com alimentos, e o parcelado, que encarece os custos".
A taxa MDR (do inglês Merchant Discount Rate, cobrada sobre transações feitas com cartão) são maiores no parcelado do que no pagamento à vista. Isso gera um descompasso no fluxo de caixa, uma vez que o prazo médio de recebimento se estende, enquanto os prazos com os fornecedores continuam os mesmos.
Para o consultor Alberto Serrentino, sócio da Varese Retail, este é um tema complexo. "Uma coisa é você parcelar eletrodomésticos e vestuário, que vão durar anos. Ou cosméticos, que duram meses. Mas parcelar um produto de consumo corrente pode ser perverso em larga escala, porque você empurra o consumidor para o endividamento", afirma.
O atacarejo segue como o principal canal de vendas do varejo alimentar do País e o que mais cresce há duas décadas. As vendas do canal somaram R$ 137,7 bilhões no ano passado, um salto de 82% em relação às vendas de 2019. No mesmo intervalo, as vendas em supermercados cresceram 30%, para R$ 105,4 bilhões, segundo a consultoria Euromonitor International.
Folhapress