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Publicada em 18 de Setembro de 2024 às 20:53

A guerra de uma década que forjou a identidade gaúcha

Estancieiros do RS consideravam injusta a cobrança de altos impostos por parte do império

Estancieiros do RS consideravam injusta a cobrança de altos impostos por parte do império

Guilherme Litran/Reprodução/JC
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Juliano Tatsch
Juliano Tatsch Editor-assistente
"Foi o 20 de Setembro, o precursor da liberdade".
"Foi o 20 de Setembro, o precursor da liberdade".
No ano que vem, completam-se 180 anos do fim do conflito que forjou uma cultura. Durante 10 longos anos, entre 1835 e 1845, os campos do Pampa gaúcho se tornaram cenários de batalhas e pelejas, onde o tilintar das espadas se chocando se misturou com os estampidos e explosões dos canhões e pistolas. O sangue que manchou a terra desenhou uma tradição e escreveu um dos capítulos mais extraordinários da história gaúcha e brasileira.
A Guerra dos Farrapos está presente no dia a dia dos gaúchos. Em Porto Alegre, por exemplo, basta um passeio pelas vias da cidade para se cruzar pela avenida Bento Gonçalves, pelas ruas Anita Garibaldi e Vicente da Fontoura, pela avenida Farrapos e por tantas outras ruas e logradouros públicos espalhados pelos quatro cantos do município.
A Revolução Farroupilha foi a mais longa das guerras civis já travadas em território brasileiro. Durante uma década, brasileiros enfrentavam brasileiros em um conflito que, ainda que longo, deixou um número de mortos relativamente pequeno, entre 2,9 mil e 3,4 mil pessoas - menos de uma vítima fatal por dia.
A guerra em si se dava de diversas maneiras, seja por meio de emboscadas, pequenas e médias escaramuças, confrontos navais e de artilharia com canhões, até grandes embates em campo aberto com soldados se enfrentando com espadas e armas de fogo a cavalo ou a pé.
Composta por hábeis cavaleiros, homens acostumados com a lida do campo, com a doma e o pastoreio, conhecedores do terreno, a cavalaria dos Farrapos era temida e respeitada, como registrou Giuseppe Garibaldi em carta enviada a Domingos José de Almeida em setembro de 1859, na qual, saudosamente, relembra o período em que atuou junto com os farroupilhas 17 anos antes.
"Eu vi corpos de tropas mais numerosos, batalhas mais disputadas, mas nunca vi, em nenhuma parte, homens mais valentes que os da bela Cavalaria Rio-grandense, em cujas filas principiei a desprezar o perigo e combater dignamente pela causa sagrada das nações. Quantas vezes tenho tentado patentear ao mundo os feitos assombrosos que vi realizar por essa viril destemida gente, que sustentou por mais de nove anos contra um poderoso Império a mais encarniçada e gloriosa luta."
Os líderes farroupilhas eram homens, em sua maioria, de posses. Proprietários de terras, escravocratas, criadores de gado e militares com patentes altas no Exército imperial brasileiro faziam parte de uma elite rural do Rio Grande do Sul.
Elite essa que se via escorchada pelos altos tributos cobrados pelo poder central do charque produzido por aqui e que era o motor da economia da Província de São Pedro do Rio Grande, nome que o Rio Grande do Sul tinha na época.
O charque do Sul do País - produzido com mão de obra escravizada - alimentava a produção nacional de café e de cana do centro do Império, mas os produtores gaúchos viam a carne uruguaia e argentina entrar no Brasil a preços muito menores, estabelecendo-se, assim, uma concorrência desleal ente o charque gaúcho e o charque importado.
Um dos pedidos recorrentes dos estancieiros gaúchos era pela taxação da carne importada, aumentando, dessa maneira, a competitividade e a atratividade do produto brasileiro. Entretanto, isso não era do interesse dos fazendeiros paulistas e mineiros, que tinham na compra do charque de fora um negócio mais lucrativo e não queriam ver suas receitas caírem para satisfazer as demandas dos produtores do Sul.
Somado a isso, existia também, de fundo, um crescente desejo por mais autonomia para as províncias em relação ao poder central, naquele momento exercido pelos regentes, já que o jovem imperador Dom Pedro II tinha apenas nove anos de idade.
Descontentamentos em razão da cobrança de impostos, porém, por si só, sempre existiram e seguem existindo e nunca foram motivo suficiente para originar uma revolta armada. Assim, o contexto político local na época envolvia outras nuances.
 

Ao Sul do Brasil, um pedaço de terra sempre em conflito

RS tinha uma divisão bem diferente da atual no início do século 19

RS tinha uma divisão bem diferente da atual no início do século 19

/Reprodução/JC
O Rio Grande do Sul sempre foi uma parte do território brasileiro que deu dor de cabeça ao Império, tanto antes quanto depois da independência proclamada em 7 de setembro de 1822. Fazendo divisa com a América espanhola (Argentina e Uruguai), a região fronteiriça vivia em estado de permanente tensão, com disputa pela posse da terra e invasões e confrontos fazendo parte do dia a dia dos que ali viviam.
Érico Veríssimo retratou bem esse cenário em seu livro O Continente, parte da trilogia O Tempo e o Vento. "Escuta o que vou lhe dizer, amigo. Nesta província a gente só pode ter como certo uma coisa: mais cedo ou mais tarde rebenta uma guerra ou uma revolução... Que é que adianta plantar, criar, trabalhar como um burro de carga? O direito mesmo era a nossa gente nunca tirar o fardamento do corpo nem a espada da cinta. O castelhano está aí mesmo. Hoje é Montevidéu. Amanhã, Buenos Aires. E nós aqui no Continente sempre acabamos entrando na dança."
Uma década antes dos acontecimentos de 1835, a região vivera uma guerra que deixou uma cicatriz permanente no Império brasileiro, resultando, em 1825, na separação da Província Cisplatina, que pertencia ao Brasil, e se tornou o independente Uruguai.
A separação ampliou o desgaste entre os estancieiros e charqueadores do RS e o império, que se via em meio a uma espécie de cabo de guerra que pendia fortemente para o lado dos paulistas e mineiros.
 

A transformação que colocou o gado no centro da economia do RS

Carne produzida no Estado era tributada até nas vendas para outras províncias do País, onde predominavam café e cana de açúcar

Carne produzida no Estado era tributada até nas vendas para outras províncias do País, onde predominavam café e cana de açúcar

/José Lutzenberger/Acervo Margs/Reprodução/JC
O Rio Grande do Sul passou por uma profunda transformação em sua economia no começo do século 19, com os campos de trigo perdendo espaço e relevância para a pecuária de corte.
O sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso trata desse momento no RS em seu livro Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, lançado em 1962 como resultado de sua tese de doutorado. "O novo período da economia rio-grandense foi, pois, o do gaúcho, do tropeiro, do militar, do antigo colono ou do administrador colonial - frequentemente uns e outros tipos sociais representados pelo mesmo homem - que se transformou em estancieiro", aponta FHC.
Em seu livro, o ex-presidente brasileiro reproduz uma passagem registrada pelo naturalista francês Auguste Saint-Hilaire que, em viagem pelo Estado por volta de 1820, pontuou quem eram os criadores de gado na província e como a atividade pastoril era realizada. "Os homens ricos desta Capitania são os possuidores de rebanhos, aos quais não dão cuidado algum e que se multiplicam facilmente", apontou.
Em contraposição ao modelo econômico sulista, a base da economia brasileira na época era a produção de café e de cana de açúcar. O charque gaúcho não era visto como um ativo importante por parte do poder central, tendo um papel significativo - o de alimentar os escravizados das lavouras de cana e fazendas de café do centro do País -, mas secundário.
Assim, a política econômica imperial atendia prioritariamente aos interesses de paulistas e mineiros, que desejavam pagar o menor preço possível pela carne que alimentaria os negros escravizados. A demanda gaúcha por mais protecionismo comercial tinha sentido, na medida em que o charque oriundo da Argentina e do Uruguai pagava pequenas taxas alfandegárias para ingressar no Brasil. Por outro lado, a carne produzida no RS era tributada até nas vendas para outras províncias do País. Esse foi o estopim para a guerra.
 

O mito do gaúcho como herói formador do Rio Grande do Sul

O termo original era de uma figura bem diferente da representada atualmente, inclusive pejorativo, apontam historiadores

O termo original era de uma figura bem diferente da representada atualmente, inclusive pejorativo, apontam historiadores

/Reprodução/JC
A mudança na economia, se não fez surgir, deu mais destaque à figura que originou o mito do gaúcho. Conforme o historiador e especialista em história do Rio Grande do Sul, Moacyr Flores, a lenda do cavaleiro gaúcho, como herói formador do RS, surgiu com a literatura romântica no final do século XIX. "O herói formador de todas as culturas possui elementos de um arquétipo universal: é corajoso, hospitaleiro, honesto, sacrifica-se pelos amigos, luta contra o mal e não teme a morte. São atributos do herói grego, do cavaleiro medieval, do formador do clã africano, do formador do clã dos índios e do gaúcho, tanto brasileiro, argentino ou uruguaio", aponta.
A origem do termo "gaúcho", inclusive, difere muito do significado que a palavra ganhou com o tempo e o qual é usado atualmente. O gaúcho original era uma espécie de bandoleiro, um homem que ganhava a vida roubando gado e negociando o couro, levando terror aos proprietários de terra e criadores. Conforme Flores, em 1750 apareceram os termos gaúcho e gaudério para designar "esses marginais que viviam da pilhagem na capitania de Rio Grande de São Pedro". Durante a Revolução Farroupilha, inclusive, o termo gaúcho tinha sentido pejorativo, aponta o historiador. "O gauchismo nada tem a ver com a Revolução Farroupilha, porque, na época, o gaúcho era um marginal. Nem os imperiais, nem os farroupilhas queriam os gaúchos", destaca, ressaltando que a construção da identidade de um povo, como o rio-grandense, é memória e não história. Moacyr Flores salienta que o mito não é uma mentira, e sim uma interpretação de uma realidade. "A construção do gaúcho mítico partiu do real e se tornou plausível com referenciais históricos, passando no decorrer do tempo a ser considerada como conhecida de todos, embora seja uma criação que se processou lentamente, até se tornar anônima, formando uma tradição de geração em geração", aponta.
O historiador afirma ainda que o regionalismo rio-grandense surgiu dentro da corrente do Romantismo, "influenciada pelas ideias de federação dos liberais moderados e farroupilhas".
 

A bravura e a participação dos Lanceiros Negros

Lanceiros Negros também foram protagonistas na Revolução Farroupilha

Lanceiros Negros também foram protagonistas na Revolução Farroupilha

/Vasco Machado/Reproduçao/JC
A participação do povo negro na Revolução Farroupilha ficou marcada por parte dos combatentes que atuavam com lanças. Era um grupo que se destacava e ficou conhecido como Lanceiros Negros.
Apesar de ter sido escrita por incontáveis atos de bravura e coragem, a Revolução Farroupilha também carrega a mancha de uma das passagens mais tristes da história do Rio Grande do Sul. Era novembro de 1844, a guerra já se arrastava há nove anos e se encaminhava para o final, com negociações de paz em andamento. Na madrugada do dia 14, em Cerro de Porongos, área que hoje pertence ao município de Pinheiro Machado, uma emboscada realizada pelas tropas imperiais comandadas por Francisco Pedro de Abreu, o Moringue, dizimou um grupo com centenas de soldados negros que faziam parte do grupo liderado por David Canabarro.
Uma corrente de historiadores defende que Canabarro teria facilitado o ataque imperial, tendo sido previamente avisado do avanço dos inimigos e desarmando os soldados negros, deixando-os à mercê do massacre que ocorreu. Não há certeza acerca dos motivos que teriam levado o general Farrapo a trair seus soldados. Documentos e relatos orais indicam que Canabarro desejava o fim do conflito, e a derrota em Porongos enfraquecia os Farrapos, facilitando a assinatura da paz. O historiador Moacyr Flores aponta que os negros foram traídos porque o comandante das forças imperiais, o Barão de Caxias, tinha ordens de não lhes conceder anistia. Assim, com a eliminação dos negros, um dos principais entraves às conversações de paz deixaria de existir.
A exigência da libertação dos negros feita pelos Farroupilhas não era aceita pelo Império, que não queria antecipar um movimento abolicionista no País, o que impactaria sobremaneira a economia cafeeira e da cana de açúcar. Há correntes de historiadores que indicam que não houve traição por parte da Canabarro e que ele teria sido pego de surpresa pelo ataque. Uma carta supostamente escrita por Caxias para Moringue indicando um ataque é o documento mais forte da tese da traição, pois, no texto, Caxias apontava que o cenário havia sido combinado com Canabarro. Esses pesquisadores questionam a autenticidade da carta, que poderia ter sido forjada para desacreditar a figura do general Farroupilha.
 

Celebração no Acampamento Farroupilha ocorre desde 1987

Evento é atração anual em setembro no Parque Harmonia, em Porto Alegre

Evento é atração anual em setembro no Parque Harmonia, em Porto Alegre

/Tânia Meinerz/JC
O Acampamento Farroupilha, que, neste ano, recebe 187 piquetes, prevê mais de 120 atrações musicais durante os 16 dias do evento, que termina no domingo, 22 de setembro.
O Acampamento tem origens no início dos anos 1980. Desde 1981, com a criação do Parque da Harmonia, na região central de Porto Alegre, grupos se dirigem ao local alguns dias antes do 20 de Setembro para confraternizar.
Oficialmente, a primeira edição do Acampamento ocorreu em 1987, quando o Harmonia recebeu o nome de Parque Maurício Sirotsky Sobrinho.
De lá para cá, os festejos seguiram ininterruptamente durante o Mês do Gaúcho, com uma única exceção. Em 2020, a prefeitura da Capital não realizou o evento em razão da pandemia de Covid-19. No ano seguinte, em 2021, ainda em meio à pandemia, o Acampamento teve uma formatação diferente, com acesso restrito, mas aconteceu.
Neste ano, o evento ocorre diariamente das 9h à meia-noite, com entrada de pedestres gratuita e diversas atrações, com destaque para o pavilhão da Agricultura Familiar, tradicional na Expointer.
Seguindo a temática da retomada, a edição deste ano do Acampamento arrecadou donativos como alimentos não perecíveis, produtos de limpeza e itens elétricos e domésticos para as vítimas das chuvas.
 

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