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Publicada em 02 de Julho de 2024 às 19:40

Hiperinflação era 'tortura cotidiana', diz Gustavo Franco, um dos mentores do Real

Ex-presidente do Banco Central e sócio fundador da Rio Bravo Investimentos, Gustavo Franco, integrou a equipe responsável pela criação do Plano Real

Ex-presidente do Banco Central e sócio fundador da Rio Bravo Investimentos, Gustavo Franco, integrou a equipe responsável pela criação do Plano Real

FERNANDA FELTES/ARQUIVO/JC
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Nícolas Pasinato
Nícolas Pasinato
Em entrevista exclusiva ao Jornal do Comércio durante sua participação no Fórum da Liberdade deste ano, um dos mentores do Plano Real, o ex-presidente do Banco Central e sócio fundador da Rio Bravo Investimentos, Gustavo Franco, fez uma reflexão sobre os 30 anos da moeda brasileira. Para o economista, o grande diferencial do plano foi ter feito, à época, o correto diagnóstico do problema inflacionário do Brasil e, a partir disso, ter colocado em prática ações para a “cura da doença” ao invés de agir apenas sobre os seus sintomas. "O Real veio com a ideia de trazer o ‘antibiótico’ aliada a ações que tratariam os sintomas. Tudo isso ao mesmo tempo e de uma forma transparente", disse. A entrevista integra a série de reportagens sobre os 30 anos do Plano Real, que se estende até esta sexta-feira. 
Em entrevista exclusiva ao Jornal do Comércio durante sua participação no Fórum da Liberdade deste ano, um dos mentores do Plano Real, o ex-presidente do Banco Central e sócio fundador da Rio Bravo Investimentos, Gustavo Franco, fez uma reflexão sobre os 30 anos da moeda brasileira. Para o economista, o grande diferencial do plano foi ter feito, à época, o correto diagnóstico do problema inflacionário do Brasil e, a partir disso, ter colocado em prática ações para a “cura da doença” ao invés de agir apenas sobre os seus sintomas. "O Real veio com a ideia de trazer o ‘antibiótico’ aliada a ações que tratariam os sintomas. Tudo isso ao mesmo tempo e de uma forma transparente", disse. A entrevista integra a série de reportagens sobre os 30 anos do Plano Real, que se estende até esta sexta-feira. 
Jornal do Comércio - Como se deram as ideias iniciais que originaram o Plano Real?

Gustavo Franco - A origem do Plano Real é uma longa história e uma mistura de muitas coisas. A experiência do modelo alemão (para combater a hiperinflação do país germânico) nos anos 1920 é uma delas. Porém, mais importante foi a reflexão anterior ao plano, feita aqui mesmo no Brasil, sobre possibilidades de estabilização com ou sem moeda indexada. Já tínhamos tido cinco congelamentos e choques heterodoxos em sequência. E havia estudiosos que escreveram tanto sobre os choque heterodoxos quanto sobre moeda indexada. André Lara Rezende, Pérsio Arida e Chico (Francisco Lafaiete) Lopes e outros estudiosos da PUC (RJ) eram parte de um grupo que estudou a inflação alta no Brasil, com a análise sobre os planos que fracassaram e suas respectivas lições. Quando começamos a fazer o Real, todas essas influências estavam sobre a mesa. Este foi o começo. Passado o momento inicial, é natural aparecer novos problemas de tal forma que a formulação do plano seguiu durante e depois da sua implementação. Reformulamos muita coisa que precisava ser consertada durante o ‘voo’. Tínhamos uma equipe numerosa, com muita experiência e as coisas correram bem. Conseguimos desviar os obstáculos e as dificuldades até chegarmos aqui. Nestes 30 anos.

JC - Qual o principal legado do plano para a economia brasileira?

Franco - A inflação era uma coisa tão aflitiva, era uma dor tão grande, uma espécie de tortura cotidiana, que todo mundo que viveu nunca vai esquecer. Mas todo mundo já sentiu dor e quando se sente dor, você não consegue pensar nem fazer outra coisa que não seja fazer parar essa dor. O Real foi o responsável por parar aquela dor. A partir daí, abre-se muitos horizontes. Descobrimos problemas e ambições no Brasil, que, antes, não podiam sequer serem pensados. O Real não era para resolver todos os problemas. Era para resolver aquela dor, que era a maior de todas naquele momento.

JC - O que foi preponderante para que o Plano Real obtivesse sucesso no controle da inflação após uma sequência de tentativas fracassadas?

Franco - Foram várias coisas. A primeira está relacionada ao diagnóstico que foi feito. De que a inflação não era um acidente, não era um assunto fácil, algo a ser resolvido com mecânicas de correção monetária, o que tinha se tornado habitual no Brasil. O diagnóstico correto nos levava ao assunto das reformas e a começar a colocá-las em prática. Demonstrar a real intenção de levá-las adiante, portanto, tratar a doença. Assim, qualquer remédio dirigido aos sintomas iria funcionar. Os congelamentos (de preços) nos planos anteriores trouxeram essa sensação de que as autoridades estavam tratando a ‘febre’ com ‘banho frio’. Já o Real veio com a ideia de trazer o ‘antibiótico’ aliada a ações que combateriam os sintomas. Tudo isso ao mesmo tempo e de uma forma transparente. Outra novidade importante foi o estilo, a fórmula de explicar, de se comunicar e responder as críticas, mesmo quando infundadas, pois criticar e responder a crítica fazem parte da democracia. É do jogo. E fizemos isso da forma correta.

JC - Entre os desafios no momento da implementação do Real, qual o sr. destacaria?

Franco - Um grande desafio que tivemos naquele momento foi o de explicar coisas que pareciam complicadas para o País. Mas essa parte acabou sendo muito mais fácil do que imaginávamos, porque conceitos como o da URV (Unidade Real de Valor) explicados hoje podem parecer complexos, mas para as donas de casa daquele momento, não era complicado explicar o valor real das coisas. Todo mundo sabia. A inflação acabou sendo uma ferramenta de educação financeira, porque você era obrigado a aprender em meio aquele momento tão difícil. Avalio que soubemos tirar proveito dessa sabedoria.

JC - Os mais jovens têm consciência do ganho que o País teve com o fim da hiperinflação?

Franco - Muita gente neste congresso (Fórum da Liberdade) não era nem nascido quando tudo isso aconteceu. É muito difícil transmitir o que foi o caos vivido naquele período. Também não faz sentido pensar que precisamos viver isso de novo para os mais jovens aprenderem e, então, ficarem com medo. Devemos seguir prevenindo a ‘doença’. O convencimento com os mais jovens deve ser o de ‘tomar a vacina’ para não ter a ‘doença’. A vacina é a organização institucional da moeda que a protege de ambições irresponsáveis, sobretudo, de políticos. Essa vacina institucional está bem estabelecida e forte. Já durou 30 anos e vai durar outros 30, tranquilamente. 
Em abril, o economista Gustavo Franco participou de painel no Fórum da Liberdade e lembrou dos 30 anos do Plano Real 
Em abril, o economista Gustavo Franco participou de painel no Fórum da Liberdade e lembrou dos 30 anos do Plano Real  FERNANDA FELTES/JC


JC - Na época da implementação e mesmo depois, o plano real foi alvo de críticas. Como o sr. lidou ou lida com isso?

Franco - Críticas ao Plano Real ficaram para trás. Quando as ouço hoje em dia a minha dúvida é a seguinte: como poderíamos ter feito diferente e termos colhido os mesmos resultados? Não vale dizer que deveríamos também ter resolvido o problema da pobreza ou do meio ambiente. Isso é ‘história da carochinha’. Fizemos algumas coisas mais polêmicas, mas que ficaram para trás. Foram todas resolvidas. Está tudo estabelecido. Passaram-se 30 anos e deu certo. Quem acha que estava errado, por favor, diga como poderia ter sido melhor. 

JC - A condução da política monetária no Brasil de hoje, conduzida pelo Banco Central,  também costuma ser alvo de críticas. Qual a sua avaliação?

Franco - As autoridades de hoje tomam decisões sobre política monetária que vejo como muito bem fundamentadas. São decisões tomadas sobre incertezas. Sempre vai aparecer um 'sabichão' para dizer que a decisão foi errada por um lado ou pelo outro, com o benefício de saber o que aconteceu depois. Aí não vale. É uma falsa sabedoria. Estou muito satisfeito com a atuação do nosso Banco Central. É um BC e uma política monetária de primeiro mundo. É (a instituição) que nos defende do retorno daquela doença. É a ‘vacina’ que está funcionando.

JC - No painel que participou durante o Fórum da Liberdade, o sr. comentou que o Plano Real foi ‘a reforma das reformas’. O que deveríamos priorizar no momento atual?

Franco - Não acho que tenha uma reforma necessária hoje, mas um cardápio de reformas. Basta observar o que as agências internacionais de risco soberano olham quando atribuem ao Brasil uma nota de crédito hoje. Temos uma nota baixa. O pessoal de Brasília precisa olhar para isso e tratar de endereçar todos esses temas, ver onde precisamos melhorar. É simples assim.

JC - É possível fazer um paralelo daquele período do Plano Real para o momento que a Argentina vive hoje?

Franco - Acho que sim, existe um paralelo. Aqui, nós acertamos na sexta tentativa. Eles já fizeram várias tentativas. Não saberia dizer quantas, mas estão prestes a deslanchar mais uma, que também deve ser criativa. Provavelmente, tentarão aproveitar as lições dos fracassos anteriores e, até mesmo, observar o que fizemos aqui. Parece que estão olhando a experiência do Equador e dos países da Europa e vai vir uma novidade. Vamos aguardar. Tomara que dê certo. 

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