Proprietários de restaurantes e bares de Porto Alegre localizados em áreas atingidas pela cheia do Guaíba aguardam a água baixar para terem uma noção dos prejuízos. A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) do Rio Grande do Sul ainda não tem como fazer projeções do impacto da enchente sobre o setor, mas a certeza é que muitos empreendedores perderam todo o mobiliário, equipamento e alimentos armazenados. Os que não foram atingidos pelo avanço das águas do Guaíba enfrentam a escassez de insumos - água, luz, alimentos -, falta de funcionários e do próprio público, que evita sair em meio à maior tragédia climática do Rio Grande do Sul.
O Quarto Distrito, conhecido por reunir na região diversos bares e restaurantes, é uma das áreas da Capital que ficou embaixo d´água. No Gravador Pub, localizado na rua Conde de Porto Alegre, a água subiu cerca de 1,20cm no espaço do bar e 1,70cm na parte da cozinha onde são produzidas as pizzas, que fica separada. Gabriel Vieira Lopes Salomão, sócio proprietário do empreendimento, avalia que a perda é total. “Fomos de caiaque, não tem como carregar muita coisa. Fomos até a cozinha pra tentar pegar algumas coisas mas não conseguimos chegar, era muita água”, descreve.
O empreendedor conta que tentou retirar alguns alimentos que não haviam sido atingidos pela água e entregar para pessoas que estavam nos arredores do pub. Um botijão de gás foi levado de barco e dado para um morador que não tinha mais para cozinhar. “Está tudo boiando dentro do bar, freezer, geladeira, comida contaminada pela água. Não teve como salvar nada. Só de comida foi uns R$ 20 mil pro lixo”, avalia. Quando a água baixar, o cenário projetado por ele é de muito estrago nos equipamentos, sujeira, canos entupidos e fiação elétrica danificada.
Segundo Gabriel, normalmente o bar é um dos últimos lugares do Quarto Distrito a alagar. Funcionando há oito anos na região, ele viu a rua ficar coberta por água duas vezes. “Em 15 minutos de chuva ali na Polônia fica alagado, mas aqui é muito difícil entrar água. Dessa vez foi demais”, afirma.
O Gravador Pub é administrado por Gabriel e pela esposa Cristina Salomão, também sócia. Além deles, outras cinco pessoas trabalham no bar, com reforço na equipe quando é necessário. Para retomar a operação quando as águas baixarem, o Gravador Pub está organizando uma campanha de arrecadação de recursos pela chave Pix [email protected].
O 4Beer, que tem oito unidades espalhadas por Porto Alegre, vive situações diversas, mas em todos os bares da rede há reflexos da cheia. A matriz no 4º Distrito, na Avenida Polônia, ficou inundada. Em outros pontos da 4Beer, o problema é a falta de água e de alimentos.
O sócio Caio De Santi não conseguiu voltar ao bar do Quarto Distrito ainda para verificar as perdas. Na manhã de sexta-feira (3), alguns itens foram levados para o segundo andar do prédio, mas a partir do momento em que rompeu a Comporta 14, inundando a região, ele não tem ideia da altura em que a água chegou. “Hoje deve ter 1 metro e meio de água lá dentro. Toda a região está completamente alagada, até chegar na Benjamin Constant”, diz.
Sem luz na região desde sábado (4), os insumos que estavam armazenados serão perdidos. Outro problema em decorrência da falta de energia são os saques que estão ocorrendo. Os relatos chegam à Associação das Empresas dos bairros Humaitá-Navegantes (AEHN), da qual Caio faz parte. Segundo ele, a Brigada Militar não tem barcos para fazer a ronda na área. Os empresários estão se mobilizando para conseguir barcos e disponibilizar aos policiais.
Nas unidades da 4Beer do Moinhos de Ventos e na da Zona Sul falta água, e na da Bela Vista o abastecimento ainda ocorre com o que tem na caixa. “Os fornecedores, a Ceasa está embaixo d´água, então não tem hortifrúti. E os de carne, como o frigorífico Silva, que é de Santa Maria, não consegue chegar aqui. Vai começar a ter desabastecimento também”, lamenta. A rede tem 80 funcionários ao todo, 20 deles na do Quarto Distrito. Nos bares que estão fechados, será dado férias coletivas por no mínimo uma semana, já que não é possível abrir.
Com 134 anos, o Gambrinus, mais antigo restaurante em operação na capital gaúcha, passou pela cheia de 1941, pelo incêndio no Mercado Público em 2013 e agora sofre com mais uma enchente. O restaurante está tomado pelas águas do Guaíba que avançaram pelo Centro Histórico.
O centenário Gambrinus, no Mercado Público, enfrenta mais uma cheia do Guaíba. Foto: Evandro Oliveira/JC
João Melo, proprietário e presidente da Abrasel, não consegue dimensionar ainda a destruição no local. “Não tem como entrar lá, ainda tem água, precisa esperar baixar. A reconstrução é de uma casa inteira, são máquinas, equipamentos, computadores, móveis”.
Melo diz que todo o setor de restaurantes está sendo afetado de alguma forma e acredita que o governo lançará medidas de auxílio, como linhas de crédito, parcelamento ou cancelamento de impostos para empresas afetadas.
“Será uma reconstrução muito difícil, vamos precisar de algum plano de ajuda financeira para todo mundo, dinheiro a fundo perdido. Hoje tem que pagar a folha mas estamos desde metade da semana passada com restrições de operação. Os danos são muito extensos”, complementa Caio, do 4Beer.
Apesar de todas dificuldades, o proprietário do Gambrinus diz que é preciso esperar normalizar a situação. “Tem um período de crise que precisamos enfrentar e mitigar, mas volta ao normal. Quanto tempo leva, a gente não sabe ainda. É preciso manter todo mundo tranquilo e seguro. Quem não puder ajudar fique seguro e não se arrisque”, aconselha Melo.
Espaço da cultura francesa em casarão centenário é atingido pela cheia do Guaíba
O L'Atelier Des Mots, que une cultura, língua, arte e gastronomia francesa no Centro Histórico de Porto Alegre, também foi severamente afetado pela cheia. Jair Dupont, sócio do empreendimento junto com a esposa, a francesa Mathilde Le Tourneur Du Breuil, não conseguiu levantar todos os eletrodomésticos antes que a água entrasse no prédio, um casarão de dois andares com mais de 100 anos na rua General Salustiano nº 290.
“A situação está bastante difícil. Nós estivemos no ateliê sábado e a água estava em torno de 50 centímetros dentro da parte do térreo e tentamos levar o máximo de coisas para o primeiro andar, mas muita coisa ficou, como balcões fixos, freezer e uma geladeira. Agora passamos lá e não conseguimos nem chegar na frente do ateliê, a água subiu bastante, está em torno de 1 metro no mínimo, não conseguimos nem fazer a volta na esquina entre a Riachuelo e a General Salustiano”, pontua Dupont.
Alguns cursos online programados para esta semana foram mantidos, mas as demais atividades, como eventos culturais e de culinária francesa no bistrô e os almoços de sábado foram suspensos.
Ele estima que os prejuízos serão grandes sobretudo na estrutura da parte térrea, que é de parquê e com a água foi possível ver que já estava começando a soltar. “Vamos ter muitas perdas e coisas a serem refeitas, estamos preparando já o espírito para o choque no momento em que pudermos abrir a porta nos próximos dias. Esperamos que a água baixe para começarmos essa atividade de organizar para reativar o ateliê”, ressalta.
O L'Atelier Des Mots é formado por dois professores de francês e outros dois funcionários, além de parceiros em algumas atividades realizadas no local.