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Serra gaúcha consolida novo roteiro enoturístico em Flores da Cunha
Patrícia Lima, especial para o JC *
A estrada sinuosa e estreita, cercada por árvores, parreirais, cítricos e pequenas casas, tem pouco mais de cinco quilômetros de extensão. Mesmo assim, guarda em seu trajeto possibilidades que podem assegurar um futuro economicamente sustentável para a comunidade que vive no percurso.
A recém-inaugurada rota turística dos Caminhos do Alfredo, no interior de Flores da Cunha, é mais um passo na direção de consolidar o Rio Grande do Sul como principal destino enoturístico do País. Com um investimento de mais de R$ 40 milhões em infraestrutura receptiva, feito pelos empreendedores e pelo poder público, o novo roteiro já impacta o setor na região.
Passagem de tropeiros e de caixeiros viajantes desde meados do século 19, o Travessão Alfredo Chaves já foi mais movimentado e agitado do que a própria cidade de Flores da Cunha. Comércio, estalagens e restaurantes fervilhavam na trilha de quem transportava mercadorias e tropas até o interior de São Paulo. A abertura de estradas e a consolidação do modal rodoviário transferiu para o centro da cidade as atividades econômicas e as rotas de passagem.
A pequena comunidade do Alfredo, como é carinhosamente chamada pelos moradores, ficou quase parada no tempo por décadas. Nas propriedades, os herdeiros dos imigrantes italianos seguiam plantando uva, fazendo vinho e assistindo à lenta debandada dos jovens das famílias, que não encontravam alternativas que os entusiasmassem a permanecer no Interior.
Até que, em 2018, essa nova geração se encontrou em torno da ideia de transformar em atrativo turístico o local das suas raízes. Representantes de 18 famílias começaram a discutir a viabilidade de uma rota turística que oferecesse ao público o que os moradores do Alfredo tinham de sobra: vinhos, boa comida, paisagens naturais e história.
Era o começo do projeto dos Caminhos do Alfredo, que hoje conta com 11 atrativos e se prepara para incorporar pelo menos outros cinco até 2023. Com o apoio técnico do Sebrae e do Sicredi, a rota foi aos poucos ganhando forma. A inauguração, que ocorreria em 2021, acabou adiada algumas vezes em função da pandemia. Em janeiro de 2022, a pequena praça da comunidade serviu de palco para o evento oficial de abertura. Desde então, mais e mais visitantes buscam o roteiro - são cerca de 500 turistas na cidade a cada semana, de acordo com a Secretaria de Turismo local.
A presença dos turistas nos empreendimentos que compõem os Caminhos do Alfredo é parte da consolidação do Rio Grande do Sul como principal polo enoturístico do País - movimento que ganhou força a partir de 2020. As restrições impostas pela pandemia, que impediram as viagens internacionais, estimularam o turismo para destinos menos badalados e com opções ao ar livre, sem aglomeração.
A procura pelas vinícolas, que oferecem roteiros com poucas pessoas e muito ar puro entre os vinhedos, explodiu e mostrou ao turista de maior poder aquisitivo, acostumado a frequentar destinos tradicionais para os amantes do vinho, como Europa, Argentina e Chile, que o Brasil dá conta desse recado com louvor.
"O enoturismo é a melhor forma de consolidar o Rio Grande do Sul como destino de interesse nacional. E o projeto dos Caminhos do Alfredo prova que o universo do vinho é o principal atrativo gaúcho", destaca a consultora de enoturismo Ivane Fávero, que participou da elaboração do roteiro e da qualificação dos empreendimentos.
Entusiasmo é a palavra de ordem quando o assunto é o novo roteiro. Enquanto a reportagem do Jornal do Comércio andava pelo bucólico trajeto em busca dos protagonistas do Alfredo, a prefeitura de Flores da Cunha ignorava os dias de chuva e trabalhava a todo vapor para entregar as últimas parcelas do asfalto que ainda não haviam sido concluídas.
Para o secretário de Turismo do município, Tiago Mignoni, a cidade quer aproveitar a vocação turística e se destacar. "As empresas, a prefeitura e as entidades da sociedade civil estão trabalhando juntas para a promoção de Flores da Cunha como destino turístico. Ganhamos esse impulso com a pandemia e vamos construir um projeto turístico de longo prazo", garante.
Antigos encantos são redescobertos pela nova geração
Enquanto viveram, Domingos Caldart e a esposa, Giacomina, tiveram o hábito de recepcionar calorosamente os familiares, amigos ou mesmo viajantes que chegavam à porta da propriedade em busca de uma prosa, uma informação ou um gole da bebida que estivesse saindo da pipa naquele momento. Produtores de vinho de mesa desde a chegada do patriarca da família ao Alfredo, no século 19, os Caldart se especializaram também em um subproduto do bagaço da uva, a graspa.
Aguardente preparada com o que sobra da fabricação do vinho, a "graspinha" vai bem pura, para esquentar, ou misturada ao café preto. Sabendo que sua bebida era o acompanhamento perfeito para uma conversa, o nono Domingos logo preparava uma mesa com salame, queijo e pão ao primeiro sinal de um visitante. Ninguém deixava a propriedade sem a garganta aquecida por um gole de graspa e o coração acolhido pelo tanto de histórias que o casal gostava de contar.
Foi com saudade dos nonos que já partiram que a nova geração da família assumiu o desafio de transformar em negócio toda a magia que haviam vivido na infância ao lado dos avós, no ponto de partida dos Caminhos do Alfredo.
Os irmãos Mônica e Tiago Caldart ficaram animados ao saber do projeto de criar uma rota turística que passasse por ali. Era a chance de requalificar a vinícola da família, gerando renda e, ao mesmo tempo, preservando a herança dos avós e bisavós imigrantes.
"Modernizamos a produção da graspa, que ainda é artesanal, mas com processos mais eficientes. Também investimos em estrutura receptiva para que as pessoas se sintam bem ao nos visitar e possam conhecer melhor a história dos nossos antepassados", comenta uma das diretoras do empreendimento, neta do nono Domingos e bisneta do fundador, Mônica Caldart.
Assim como os jovens da família Caldart, outros herdeiros também aderiram à ideia dos Caminhos do Alfredo, tornando a presença da nova geração uma tendência no projeto. É o que aponta o presidente da Rota, o enólogo Edegar Scortegagna, ele também um empreendedor cuja família ainda vive no Alfredo.
"Quase nenhum dos atrativos tinha estrutura para receber turistas no começo do projeto. Mas a ideia foi abraçada pelos jovens das famílias, que viram o potencial da rota e trabalharam para adequar suas estruturas, com espírito empreendedor e moderno. Assim conseguimos aliar a nossa história, que é genuína e verdadeira, às exigências do enoturismo", destaca.
Projetos originais impulsionam enoturismo de alto padrão
Na fileira de taças, uma explosão de cores, aromas e sabores dá o tom de uma degustação de vinhos cuja proposta é curiosa: bebidas elaboradas com as mesmas uvas, da mesma safra, porém envelhecidas em diferentes tipos de barrica.
Para combinar com os vinhos, uma brusqueta em que o creme de queijo e os figos fazem o cenário perfeito para que a estrela principal do prato possa brilhar: um presunto cru de altíssima qualidade, maturado por 12 meses.
O que os dois protagonistas desse momento têm em comum? São elaborados a pouco mais de um quilômetro de distância um do outro. Na recém-inaugurada sala de degustação da vinícola Família Bebber, os vinhos feitos no Travessão Alfredo Chaves harmonizam com o presunto cru da vizinha Gran Nero. Com produtos premium elaborados na rota, os Caminhos do Alfredo se inscrevem na seleta lista de destinos capazes de atender as exigências de quem busca o enoturismo de excelência.
Produtor de vinhos desde 2015, o enólogo Felipe Bebber acalentou, junto com o pai e o irmão, o sonho de construir a estrutura da vinícola na propriedade da família, no Travessão Alfredo Chaves. Antes mesmo de lançar os primeiros rótulos, Bebber já sabia a identidade que queria imprimir em sua marca: vinhos equilibrados e elegantes que conquistem o consumidor brasileiro pela leveza.
Para isso, busca a matéria-prima em vinhedos de variadas regiões produtoras do Rio Grande do Sul, desde a serra gaúcha até a Campanha, passando pela Serra do Sudeste. No começo, vinificou seus produtos em estruturas arrendadas em outras vinícolas, até que a cantina da Família Bebber ficou pronta.
Agora, os visitantes podem provar as criações de Felipe ao lado das barricas de carvalho e das esferas de concreto onde os vinhos mais estruturados envelhecem. Idealizada para agregar o enoturismo ao negócio, a sede da vinícola tem uma sala de degustação moderna ao lado de um wine bar aconchegante, construído na velha casa da família, que foi adaptada para abrigar o varejo.
Mesmo antes da inauguração oficial dos Caminhos do Alfredo, era difícil encontrar vaga de última hora para as degustações e sempre tinha fila de espera para bebericar no wine bar aos finais de semana. Segundo Bebber, o receptivo já emprega mais pessoas do que a própria vinícola e a tendência é atrair ainda mais visitantes, agora que o roteiro está consolidado.
Além de rentabilizar os empreendimentos e gerar mais empregos, o enoturismo ainda ajuda a construir a reputação do vinho brasileiro junto aos consumidores, dissipando preconceitos e consolidando o gosto pela bebida nacional.
"Quando as pessoas vêm nos conhecer e provar os vinhos, vivem uma experiência enogastronômica. Ao voltarem para casa, vão procurar os produtos para recompra, pois terão criado uma relação emocional com a marca. Assim vamos mudar a cultura, incentivar o consumo de vinho brasileiro e fortalecer a marca", destaca Bebber.
A mesma ideia tem o enólogo Edegar Scortegagna, que em 2021 concretizou um sonho que já tinha pelo menos 20 anos. Depois longa pesquisa junto à Embrapa até encontrar a raça de porco certa e a alimentação ideal para os animais, ele inaugurou em 2021 a Gran Nero Presunto Cru. Na unidade, cerca de cinco toneladas de pernil de porco se transformam em 2,5 mil quilos de presunto todos os meses.
Fatiados ou inteiros, os pernis seguem para lojas especializadas e restaurantes de todo o País - inclusive para o wine bar da Família Bebber, quase ao lado, onde vira ingrediente principal da brusqueta mais pedida do cardápio. Ainda no primeiro semestre, deve ficar pronta a sala de degustação de presunto na Gran Nero, com o objetivo de receber os turistas interessados em conhecer mais sobre a charcutaria local.
"Queremos desenvolver a cultura de comer presunto de qualidade. No espaço que estamos construindo haverá cursos, eventos e degustações, tudo para oferecer uma experiência aos turistas. Depois, de volta em suas cidades de origem, eles irão procurar o presunto Gran Nero para recompra", aponta Scortegagna.
A fábrica, que fica ao lado da propriedade dos pais do enólogo, no Travessão Alfredo Chaves, segue os rigores da produção dos melhores presuntos europeus, como os italianos e espanhóis.
A matéria-prima, porém, é bem brasileira. Os animais, também criados nas redondezas, são de uma raça derivada do porco moura, um animal que se formou a partir de cruzamentos com os porcos pretos trazidos da Europa na época da colonização. Com a alimentação adequada, o pernil tem o marmoreio de gordura necessário para transformar-se em um presunto cru de grande qualidade.
Oportunidades para toda a família
Uma das preocupações dos organizadores da rota turística foi a atratividade de um público variado, que já conhece os principais pontos da Serra gaúcha e deseja se aventurar em novas experiências. Muitas famílias, porém, buscam alternativas que possam agradar as crianças e as pessoas que eventualmente não bebam vinho.
Foi aí que empresas tradicionais viram a oportunidade de se reinventar por meio do turismo. É o caso da vinícola Malacarne, produtora de vinhos de mesa e sucos há 35 anos, que inaugurou o seu Paradouro do Suco para integrar o roteiro dos Caminhos do Alfredo.
No alto de uma colina, no coração do Travessão Alfredo Chaves, uma torre de 875 metros, em cujo topo se chega por um elevador panorâmico, mostra a imensidão de parreirais que cercam a região. Nos dias de céu mais azul, é possível avistar sete cidades lá de cima.
O atrativo principal do Paradouro, porém, não está na torre, mas no suco que batiza o empreendimento. Em um espaço agradável e enquanto um DJ embala o momento do pôr do sol, os visitantes degustam as variações branca e tinta de um dos melhores sucos de uva da América Latina, um dos poucos que podem ser chamados de puros, por não conter qualquer adição de água ou açúcar.
O produto já existia muito antes do projeto turístico. A Malacarne processa aproximadamente 10 milhões de quilos de uva por ano, fornecidos por 200 famílias dos arredores, produzindo nove milhões de litros de vinho e quatro milhões de litros de suco de uva.
Com o projeto turístico voltado para toda a família, a empresa pretende divulgar não somente a marca, mas o conceito de suco puro, que é um pouco diferente do suco de uva integral, que pela legislação pode ter adição mínima de açúcar e água na fabricação.
A aceitação foi tão grande que surpreendeu os proprietários, que já planejam novos investimentos para o verão. “Vamos expandir as operações para receber mais visitantes, com opções de lanches e piqueniques ao redor da torre. Tudo para combinar com o suco puro, que as pessoas estão conhecendo graças ao turismo”, relata a diretora de Marketing, Isadora Malacarne.
Famílias colhem os resultados e comemoram diversificação das fontes de renda
Cinco meses depois da inauguração oficial do roteiro, os resultados já aparecem para as famílias. Calcula-se que entre 60% e 70% dos trabalhadores que atuam nos empreendimentos sejam moradores da localidade.
O turismo também garante diversificação de renda para as empresas que, até pouco tempo atrás, se dedicavam a uma única atividade, normalmente o cultivo de uvas ou a fabricação de vinho.
É o caso da família Gelain, no ramo vitivinícola desde os anos 1990 e que, há três anos, experimentou abrir um restaurante dentro da vinícola. Impulsionado pelo crescimento do enoturismo e pela inauguração da rota, o restaurante Nona Adelaide, anexo ao varejo, abre somente aos domingos, sempre com lotação máxima.
O enólogo Júlio Gelain, filho do fundador e que hoje toca a cantina, assinala que está nos planos, para os próximos meses, a abertura do restaurante também aos sábados, devido à crescente procura. E, para os próximos anos, já estão planejados mais investimentos, todos na área de turismo.
O principal deles, que deve estar pronto até o verão, é o Mirante Gelain, um espaço aberto no topo de uma montanha onde se chega por uma boa estrada, com ampla vista para o vale do Rio das Antas, onde a vinícola deve montar um wine bar para servir vinhos e petiscos aos visitantes. Uma pousada de alto padrão, em meio aos vinhedos da propriedade, também deve inaugurar em três anos.
As matriarcas da Cantina, que ainda atendem no varejo e no restaurante, garantem que o sabor da colônia é o segredo do cardápio. Na propriedade da família Caldart, os goles de graspa acompanham um passeio por um minimuseu que conta a história da imigração italiana na região, com objetos originais, reunidos pelo nono Domingos.
"Mostrar isso aos turistas é como homenagear os nossos antepassados, manter viva a memória daqueles que amamos", diz Fátima Galiotto, 64 anos, tia do Tiago e da Mônica e que conduz os grupos de turistas por entre os vinhedos de 140 anos que ainda produzem uva, vinho e memórias.
Desafios para consolidar o Estado como case de enoturismo no Brasil
A presença dos turistas nas vinícolas e nos demais atrativos relacionados ao vinho serve para consolidar a imagem da bebida brasileira junto ao consumidor, mudando aos poucos os hábitos de consumo da sociedade.
Mas o enoturismo não é só isso. Em muitos casos, o aumento de turistas nas cantinas representa incremento direto nas vendas do produtor. É o caso da vinícola Terrasul, cuja sede fica bem no centro do Travessão Alfredo Chaves, ponto central do roteiro turístico. Fabricante de vinhos de mesa desde 1996, a marca começou a produzir vinhos finos em 2002, no prédio histórico que foi uma das unidades da antiga Sociedade Vinícola Riograndense.
Hoje, o foco ainda são os vinhos de mesa, mas já saem dos tanques da Terrasul cerca de 30 mil garrafas de vinho fino por ano - desse total, cerca de 50% são vendidos no varejo da própria vinícola. Percebendo o aumento no fluxo de turistas, o enólogo Augusto Salvador já planeja o aumento na produção, que deve chegar às 100 mil garrafas em 10 anos.
Essa projeção de crescimento depende diretamente da presença dos visitantes. Sabendo disso, o prédio histórico da década de 1940 foi reformado para abrigar a sala de degustações e um wine bar. "Queremos atrair os jovens que buscam um turismo mais exclusivo e que estão descobrindo o mundo do vinho. Nossa estratégia de crescimento está diretamente ligada ao enoturismo", aponta Salvador.
Para que esses planos se concretizem, o Rio Grande do Sul precisa se afirmar como principal destino de enoturismo do Brasil. O impulso para o setor ocorreu durante a pandemia, que fez explodir regiões como o Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves.
É preciso, porém, que o Estado trabalhe em outras frentes para se consolidar como polo de vinhos no País. Salvaguardar, por meio de leis, as áreas enoturísticas, protegendo vinhedos e a produção familiar da especulação, é uma das medidas urgentes, segundo a consultora Ivane Fávero.
"Um destino enoturístico não se faz só com hotéis, vinícolas e condomínios. Precisa de vinhedos, de cultura local, de pequenas empresas familiares. Tudo isso constrói e preserva a identidade, que é o que os turistas buscam em qualquer viagem pelo mundo", alerta Ivane. Segundo ela, algumas áreas de grande relevância enoturística já estão ameaçadas no Rio Grande do Sul. O Vale dos Vinhedos, pela especulação imobiliária, e a Campanha, pelo avanço do cultivo de soja, são dois exemplos.
A consultora aponta ainda para a importância de um esforço conjunto de marketing para divulgar o Rio Grande do Sul como o principal produto enoturístico do País. Ao consolidar essa imagem, o Estado como um todo ganha. "O enoturismo eleva a imagem do País e do Estado, pois agrega valor a tudo o que é produzido no local. O imaginário importa. Por isso o Rio Grande do Sul não pode perder mais tempo", completa.
* Patrícia Lima é jornalista formada pela Universidade Católica de Pelotas, especialista em Estudos de Jornalismo pela UFSC e mestre em Literatura Brasileira pela Ufrgs. Há 22 anos dedica-se à reportagem.