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Publicada em 28 de Março de 2025 às 13:48

Morre Heloísa Teixeira, que mudou rumos do feminismo e da crítica cultural no Brasil

Heloísa Teixeira

Heloísa Teixeira

FERNANDO FRAZÃO/ABR/JC
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Agências
Morreu nesta sexta-feira (28) a crítica literária Heloísa Teixeira, aos 85 anos, no Rio de Janeiro. Ela estava internada por causa de uma pneumonia dupla, segundo informações da Academia Brasileira de Letras.Uma das maiores intelectuais do país durante décadas, ela já passava dos 80 anos quando anunciou que gostaria de mudar o nome pelo qual era conhecida.
Morreu nesta sexta-feira (28) a crítica literária Heloísa Teixeira, aos 85 anos, no Rio de Janeiro. Ela estava internada por causa de uma pneumonia dupla, segundo informações da Academia Brasileira de Letras.
Uma das maiores intelectuais do país durante décadas, ela já passava dos 80 anos quando anunciou que gostaria de mudar o nome pelo qual era conhecida.
Professora emérita da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras desde 2023, Heloísa Buarque de Hollanda foi responsável pela publicação de dezenas de livros como autora ou organizadora. Mas, em 2024, decidiu assinar "Rebeldes e Marginais: Cultura nos Anos de Chumbo (1960-1970)" como Heloísa Teixeira.
O gesto teve força simbólica, já que tirou de cena o sobrenome do primeiro marido, de quem havia se separado no fim dos anos 1960, e fez surgir o da mãe, figura pouco lembrada nas narrativas que refazem o percurso intelectual e profissional da filha.
Nascida em Ribeirão Preto (SP), teve trajetória de grande influência masculina -como do pai, professor de medicina, de Afrânio Coutinho, professor do curso de letras de quem foi assistente no início da carreira, e do sociólogo Darcy Ribeiro, vice-governador do Rio de Janeiro que a nomeou diretora do Museu da Imagem e do Som na década de 1980.
As mulheres, porém, motivaram suas mais decisivas escolhas intelectuais, a ponto de a professora de literatura brasileira, formada em letras clássicas pela PUC do Rio de Janeiro em 1961, ter se tornado expoente feminista da crítica cultural no país -e, mais recentemente, principal interlocutora universitária de artistas e escritoras provenientes da periferia.
Em seus dois trabalhos autobiográficos -o volume intitulado "Escolhas", de 2009, e a coletânea "Onde É que Eu Estou?", de 2019 -, Heloísa relatou a definição progressiva de seu campo de atuação como pesquisadora.
Descobriu o próprio país durante uma temporada nos Estados Unidos, quando, acompanhando o primeiro marido, Luiz Buarque de Hollanda, atuou como assistente de pesquisa no Instituto de Estudos da América Latina na Universidade Harvard.
Na volta, em 1964, após aproximar-se de Coutinho, ingressou como docente na UFRJ, ministrando cursos principalmente sobre José de Alencar, Lima Barreto e Mário de Andrade -este, tema de sua pesquisa de mestrado, que resultou na publicação de "Macunaíma: Da Literatura ao Cinema" alguns anos depois, em 1978.
Até a promulgação do AI-5, em dezembro de 1968, viveu a efervescência no ambiente urbano e universitário do Rio de Janeiro, o que permitiu a construção de sua identidade profissional e de gênero como uma "experiência feminina fundamentalmente coletiva".
No contexto das mudanças comportamentais e políticas de sua geração, em oposição ao regime militar, as mulheres encontravam, sob estímulo do feminismo, um ambiente favorável à entrada na vida pública.
Pessoalmente, as novidades se refletiram no divórcio de Heloísa e Luiz, já pais de três filhos, após uma festa de Réveillon em sua casa que ocasionou outras 17 separações, como relatou o amigo Zuenir Ventura em "1968: O Ano que Não Terminou".
Profissionalmente, a atuação na Faculdade de Letras da UFRJ, então improvisada em um galpão, forjou uma maneira de olhar para a produção cultural do presente. "Eu fui tirando tudo quanto é parede para o resto da vida", apontou ela.
Diante do vazio cultural posterior a 1968, realizou dois movimentos importantes. Experimentou uma "euforia criativa" decorrente de seu interesse pelo audiovisual, dirigindo documentários, atuando como cenógrafa e realizando programas de rádio e vídeos. Nessa época, casou-se com o segundo marido, o fotógrafo João Carlos Horta, com quem permaneceu até a morte dele, em 2020.
Além disso, passou a acompanhar a produção poética contemporânea, que parecia buscar formas de resistir ao contexto político, social e cultural da época.
Daí surgiu o primeiro trabalho a tornar seu nome conhecido: a antologia "26 Poetas Hoje", de 1976, reunindo jovens da geração que ficaria conhecida como mimeógrafo ou marginal -autores que produziam seus livros artesanalmente, fora do circuito editorial, e que atuavam na contracultura, como Ana Cristina Cesar, Torquato Neto e Roberto Piva.
A barulhenta reação à publicação, acusada de carecer de valores literários, motivou a formação de um grupo de estudos em que Heloísa, ao lado do poeta e amigo Antonio Carlos de Brito, o Cacaso, buscou "fundamentos mais científicos para nossa atração fatal pela geração mimeógrafo", como afirmou a pesquisadora em entrevista.
Essa mesma poesia seria objeto de sua tese de doutorado, defendida em 1979 e publicada como livro em 1980, com o título "Impressões de Viagem: CPC, Vanguarda e Desbunde (1960/1970)". Já as reflexões sobre a literatura realizadas à altura a levaram a expandir os fundamentos de sua atuação.
De seu "BBB teórico inicial", isto é, Walter Benjamin, Roland Barthes e Mikhail Bakhtin, se voltou a problematizar a produção artística e literária. Em 1980, publicou "Cultura e Participação nos Anos 60" ao lado do jornalista Marcos Augusto Gonçalves.
A ampliação do repertório aconteceria na década seguinte, em uma nova temporada nos Estados Unidos. Durante o pós-doutorado em sociologia da literatura na Universidade Columbia e a atuação como professora visitante de cultura brasileira em Stanford, se aprofundou nos estudos culturais, em especial no pensamento teórico feminista que então se desenvolvia na universidade.
Elaine Showalter, Jean Franco, Gayatri Spivak e Donna Haraway foram algumas autoras que estiveram em uma antologia preparada por ela em 1994: "Tendências e Impasses - O Feminismo como Crítica de Cultura".
No ambiente universitário, sua atuação "sem paredes" se caracterizou pela recusa em ocupar o lugar da professora transmissora de conhecimentos. Para além de adotar o formato de seminário em seus cursos e de realizar encontros em sua própria casa, investiu na interdisciplinaridade e na extensão.
Na Escola de Comunicação da UFRJ, fundou, em 1986, o Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos e, em 1994, o Programa Avançado de Cultura Contemporânea.
A partir deste, deu início 15 anos depois àquele que considerou o projeto mais importante de sua vida, a Universidade das Quebradas, laboratório que propõe o encontro entre estudiosos e produtores de cultura da universidade e da periferia.
Mesmo aí, continuou voltada às mulheres, como mostra a série "Pensamento Feminista", que organizou para a editora Bazar do Tempo entre 2019 e 2020, e a antologia "As 29 Poetas Hoje", de 2021, em que revisitava por outra ótica e temporalidade a proposta de sua coletânea já referencial dos anos 1970.
"O feminismo é uma lente que altera sua visão de mundo. E quando essa lente fica subcutânea, ferrou", afirmou certa vez. A fala é reveladora não só pelo conteúdo, mas também porque traz, mesmo transcrita, a combinação entre desembaraço e elaboração intelectual característica da pesquisadora.
Descrita por amigos, companheiros de trabalho e orientandos como generosa, antenada e antecipadora de tendências, Heloísa foi definida pelo romancista Luiz Ruffato como "contemporânea da contemporaneidade" e por Zuenir Ventura como uma pessoa capaz de enxergar, na aparente calmaria do oceano, a onda ainda começando a se formar.
Já Cacaso dedicou à amiga o poema "Relógio Quebrado", que ela mesma identificou como o seu melhor retrato: "Não sei parar na hora/ Certa".
Deixa os filhos André, Pedro e Luiz, conhecido como Lula.

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