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Publicada em 27 de Março de 2025 às 13:47

Porto Alegre continua tua, Elis

Uma noite inebriada pela luz azul e vermelha, típica dos filmes de David Lynch

Uma noite inebriada pela luz azul e vermelha, típica dos filmes de David Lynch

Amanda Flora / Especial / JC
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Amanda Flora
Amanda Flora
Um final de tarde de segunda. 17° dia do mês de março de 2025. Passeávamos pela Capital, que, convenhamos, tem um charme que só quem é daqui consegue entender. Elis era daqui.Estava junto de uma amiga, que lamuriava sua breve estadia no interior do estado subsequente a uma visita a São Paulo — dois extremos no quesito urbano. Ela falava da falta que sentiu de se estar em um lugar conhecido, de saber onde fica uma esquina específica ou qual é a rua "tal". Na hora, foi impossível não lembrar de Milton Santos, que acreditava que o lugar também se constituía por sentimentos. Para ele, “cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente”. Milton foi o geógrafo que desburocratizou algo que sempre foi carregado de afeto: a nossa relação com os lugares.Era isso, também, que minha amiga queria falar. Ela queria andar pela própria cidade, aquela que ela conhece as ruas e os bares, as pessoas e os perigos, as histórias e os lugares.

Um final de tarde de segunda. 17° dia do mês de março de 2025. Passeávamos pela Capital, que, convenhamos, tem um charme que só quem é daqui consegue entender. Elis era daqui.

Estava junto de uma amiga, que lamuriava sua breve estadia no interior do estado subsequente a uma visita a São Paulo — dois extremos no quesito urbano. Ela falava da falta que sentiu de se estar em um lugar conhecido, de saber onde fica uma esquina específica ou qual é a rua "tal".

Na hora, foi impossível não lembrar de Milton Santos, que acreditava que o lugar também se constituía por sentimentos. Para ele, “cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente”. Milton foi o geógrafo que desburocratizou algo que sempre foi carregado de afeto: a nossa relação com os lugares.

Era isso, também, que minha amiga queria falar. Ela queria andar pela própria cidade, aquela que ela conhece as ruas e os bares, as pessoas e os perigos, as histórias e os lugares.

Caminhávamos pela Andradas, muito firmes de onde queríamos chegar, afinal, sabíamos muito bem andar naquele lugar — o nosso lugar.

Nesse dia, teria um tributo a Elis Regina, aniversariante do dia, inclusive. Curioso ela fazer aniversário no mesmo mês que Porto Alegre. Se viva, seriam oito décadas da Pimentinha. A Capital, 253 anos.

Quando chegamos à Casa de Cultura Mario Quintana estava naquele momento entediante, mas necessário dos agradecimentos. Fomos buscar uma cerveja. Nesse trajeto, pensei: "quantas vezes Elis andou por aqui? Quantas vezes reclamou da cidade, como eu reclamo ou como minha amiga reclama? Qual seria sua relação com esse lugar?"

Laila Garin, atriz que interpreta a Pimentinha no teatro há mais de 10 anos, recebeu a tarefa de cantar na casa de nascença de Elis, aos conterrâneos dela. Penso na responsabilidade de um artista quando esses momentos carregados de simbolismo acontecem.

Ao abrir a boca e entoar a voz, Laila deixou eu, minha amiga e as centenas de pessoas presentes na apresentação, completamente inebriadas pela interpretação de Elis por Laila — e pela luz azul e vermelha, típica dos filmes de David Lynch, que quem estava atrás do palco, como eu, observava através do contorno da silhueta da intérprete. Cada música parecia uma declaração de amor à Porto Alegre, à Elis Regina e ao público.

Cada estrofe cantada pela plateia — que nesse ponto já ocupava outros espaços para além da Casa de Quintana — fazia com que todos sentissem um orgulho inexplicável. Nós não temos mais a Elis, é verdade, mas ela estava ali presente no orgulho de cada um em pertencer ao mesmo lugar que ela. Àquele lugar que aprendemos com Milton Santos. O lugar que é Porto Alegre.

O momento de sintonia era tamanho que uma pessoa da plateia gritou "Toca Madalena!" e no segundo seguinte a banda deu as primeiras notas de Mada. Laila podia brincar com o público. Afinal, ela representava tudo o que a nossa cidade, carente de Elis, precisava.

A cada música era nítida a sensação de pertencimento do porto-alegrense com a própria cidade, ao mesmo tempo que existia uma revolta latente.

Juarez Fonseca, jornalista cultural e amigo pessoal de Elis, foi de uma generosidade IMENSA — em caixa alta mesmo! — ao dividir com os leitores do Jornal do Comércio suas entrevistas e encontros com Elis no caderno Viver do dia 13 de março.

Na reportagem cultural, que mais parece uma declaração fraterna de amor, Juarez falou sobre sua relação com Elis, recheada de encontros, conversas e tentativas insistentes de uma troca de cartas. Tudo carregado de uma camaradagem típica daquela que cantou para os operários do ABC paulista. No fim, o jornalista virou personagem do seu próprio texto. Obrigada, Juarez.

Ainda nas palavras do jornalista, em 1977 a Elis “ficou duas semanas em cartaz [na capital] e fez as pazes definitivas com a cidade: frequentou restaurantes, foi a festas, passeou, deu muitas entrevistas”. A leitura desse trecho também nos mostra a relação dual que podemos ter com os lugares.

Às vezes sentimos vontade de ir embora e nunca mais voltar a Porto Alegre. Elis teve isso, mas garanto que se fosse viva, haveria de entender a capital gaúcha como o seu lugar — ou pelo menos um deles.

Se Porto Alegre tivesse uma música de fundo, de trilha sonora mesmo, seria O Bêbado e a Equilibrista. Uma canção que canta a lua, a arte e a liberdade de verdade. Nada mais do que aquela Porto Alegre que vivemos memorando — a do Fórum Social Mundial. Que canta a revolta de um mundo cerceado e narra, com detalhes os lugares, aqueles que Milton Santos nos ensinou.

Nós pisamos nos bares, festas e restaurantes que Elis pisou, os lugares de Elis também são os nossos lugares. A Casa de Cultura, que homenageava Elis naquele dia, também é um lugar nosso em Porto Alegre.

A revolta do público carente de Elis que assistia ao show de Garin era tamanha, que todos cantavam afinados em uníssono. E nada mais Elis do que revolta e afinação.

Quando a canção da cidade (O Bêbado e a Equilibrista) ressoou na acústica Travessa dos Cataventos, o coro da plateia era o coro da cidade. Nosso lugar é essa Porto Alegre.

Sobre a carência da Cantora, teremos que lidar. Mas noites como essas nos fazem estar em alguma bodega que Elis frequentou durante as noites boemias da Capital de 1977. Feliz aniversário ao nosso lugar.

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