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Publicada em 26 de Novembro de 2024 às 12:57

O que há de humano sobre o asfalto

Ambos, o morto e o vivo, colocaram um pouco de humanidade no asfalto degradado da Assis Brasil

Ambos, o morto e o vivo, colocaram um pouco de humanidade no asfalto degradado da Assis Brasil

Freepick/JC
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Igor Natusch
Igor Natusch Editor de Cultura
A cena aconteceu na avenida Assis Brasil, uma das mais movimentadas de Porto Alegre. Lugar onde a grande cidade assumiu um ar degradado, de prédios feios e depósitos fechados, de muito asfalto e pouca escapatória. Mas de gente, apesar de tudo. Um homem saiu de um bar, já meio tarde da noite. Há uma série de bares pontuando as esquinas da Assis Brasil: quase sempre botecos em mau estado, sujos e malcheirosos, mas com cerveja mais barata que a média. Não sei quem era esse homem, e jamais saberei: o quase nada que li no noticiário a seu respeito não revela seu nome, sua idade, sua situação financeira, a cor de sua pele. Deduzo que era um morador das redondezas, que rumava a pé para sua casa depois de tomar uns tragos. Talvez um alcoólatra, talvez alguém de coração partido, talvez apenas um bebedor eventual. Uma alma que vivia e, quem sabe, sofria, andando sozinha em uma noite quente de sexta-feira.
A cena aconteceu na avenida Assis Brasil, uma das mais movimentadas de Porto Alegre. Lugar onde a grande cidade assumiu um ar degradado, de prédios feios e depósitos fechados, de muito asfalto e pouca escapatória. Mas de gente, apesar de tudo.

Um homem saiu de um bar, já meio tarde da noite. Há uma série de bares pontuando as esquinas da Assis Brasil: quase sempre botecos em mau estado, sujos e malcheirosos, mas com cerveja mais barata que a média. Não sei quem era esse homem, e jamais saberei: o quase nada que li no noticiário a seu respeito não revela seu nome, sua idade, sua situação financeira, a cor de sua pele. Deduzo que era um morador das redondezas, que rumava a pé para sua casa depois de tomar uns tragos. Talvez um alcoólatra, talvez alguém de coração partido, talvez apenas um bebedor eventual. Uma alma que vivia e, quem sabe, sofria, andando sozinha em uma noite quente de sexta-feira.
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Não chegou em casa: foi atropelado por uma moto e morreu ali mesmo, no asfalto, antes que chegasse algum socorro.

No asfalto morreu e, durante um bom tempo, no asfalto ficou. Enquanto viaturas da polícia e da empresa de trânsito tomavam as providências de praxe, o corpo ficou lá, estendido, como algo que simplesmente caiu pelo caminho. Não se pode nem apelar ao cancioneiro e dizer que morreu na contramão, pois tráfego quase não havia, e poucos olhares testemunhavam a trágica inconveniência daquele cadáver, exposto sem cuidado ao começo de madrugada.

Olhares poucos, sim, mas não alheios. Um morador de rua surgiu: seria bonito dizer que ele se destacou na multidão, mas, como dissemos, não havia multidão alguma da qual ele pudesse ter saído. Talvez se possa dizer que surgiu em meio às sombras, o que seria mais adequado ao cenário, mas também não me parece que tenha sido exatamente isso: ele apenas estava lá, como os moradores de rua de todos lugares sempre estão, existindo nas praças e calçadas com a certeza suave daqueles que não têm para onde ir.
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Fez-se visível, então, o morador de rua. Andou até uma viela ao lado, foi até uma árvore, de lá tirou alguma coisa. Um lençol. Moradores de rua, como sabemos, não costumam ser pessoas de muitas posses; mesmo que lençóis sejam mais ou menos simples de obter, imagino que o item lhe era de certa importância, ou então não o manteria guardado em seu improvisado guarda-roupa ao ar livre. Seja como for, abriu mão dele: foi até os agentes, estendeu o lençol a um policial civil e pediu que o usassem para cobrir o corpo morto no asfalto.

É ruim deixar o corpo ali, disse a um dos poucos repórteres (talvez o único) que acompanhava a cena. É ruim que fique desse jeito, para todo mundo ver. Não tem problema, eu ainda tenho uma coberta. Não sou nada dele, nem sei quem é, mas dói na gente ver o corpo ali, né? Largado, de qualquer jeito.

Voltou para a sombra. Não saberemos quase nada desse homem que mora na rua, assim como nada sabemos do homem que bebeu umas cervejas antes de morrer: para nós, são pessoas que existem pelo intervalo de um instante, que surgem em um pequeno recorte de realidade e então desaparecem, de volta para a calçada ou rumo ao repouso eterno. O ponto importante, contudo, não é a duração: é a existência. Existiram, um morto, outro vivo. E juntos protagonizaram uma cena de profunda dignidade, de respeito pelo que existe e pelo que existiu. Colocaram um pouco de humanidade no asfalto degradado da Assis Brasil, no céu cinza escuro da madrugada porto-alegrense.

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