Durante os meus primeiros 11 anos de idade, morei em um condomínio grande, com vários blocos e mais de uma centena de apartamentos. Ali, fiz diversos amigos, muitos mesmo, e boa parte deles, os que eram da minha idade, cursaram comigo todo o Ensino Fundamental. Éramos uma turma muito unida, frequentávamos as casas uns dos outros, chamávamos as mães de tia, ficávamos até tarde da noite na rua aprontando. Naquela época, fim dos anos 1980 e anos 1990, não existia celular nem internet e só os mais “riquinhos” tinha um videogame em casa. A rua, assim, era muito mais atraente do que uma tela qualquer.
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Estávamos sempre juntos e juntos crescemos e nos tornamos adolescentes. Foi aí que a inevitabilidade do tempo nos afastou. Chegamos ao Ensino Médio e cada um foi para um lado. Eu me mudei e fui morar longe. Uma etapa incrível da vida havia acabado.
Falei sobre tudo isso porque agora eu estou, novamente, morando no mesmo condomínio onde cresci. As coisas estão bem diferentes lá, há menos vida, menos agitação, menos gente na rua. Mas o que me impactou mesmo foi outra coisa. Nesse condomínio ainda mora uma daquelas minhas amigas e colegas de infância. Dia desses, quando eu estava saindo para ir ao mercado, nos cruzamos. Ela me olhou no rosto e disse um singelo “obrigada” por eu ter segurado o portão para ela passar. Apenas isso. Um “obrigada” comum. Sequer um sorrisinho simpático veio junto. “Obrigada.”
Durante todo o caminho até o mercado, fui pensando em como ela não me reconheceu. Eu não mudei tanto assim e ela segue com as mesmas sobrancelhas permanentemente arqueadas. Eu a reconheceria na Rua da Praia em uma véspera de Natal, mas ela não me reconheceu a meio metro de distância.
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Passei os últimos dias rememorando isso e pensando em como o esquecimento molda a nossa vida e traça o roteiro do nosso caminho. Esquecemos de tudo. Agora, por exemplo, já não lembro com qual palavra comecei o parágrafo anterior. Preciso passar os olhos no texto para lê-la novamente.
Eu lembro muito bem de todos aqueles meus amigos de infância – recordo até os sobrenomes deles. Aqueles anos foram deveras importantes para mim. Fui feliz e isso marca para sempre a vida de uma pessoa. E, por isso, me dar conta de que um deles – e, quem sabe, muitos deles – não lembra mais de mim, me tocou sobremaneira.
Em um primeiro momento, aquilo me chateou. Me chateou mesmo. Entretanto, agora, passadas algumas semanas, passei a sentir uma espécie de inveja daquele esquecimento. Afinal de contas, aquela minha amiga de infância deve ter vivido coisas incríveis, conhecido pessoas marcantes, visitado lugares belíssimos, e tudo isso ocupou espaços em sua memória que, antes, eram preenchidos pelas vivências da infância.
Há mais de 10 anos, o saudoso neurocientista Iván Izquierdo me falou em uma entrevista sobre a importância do esquecimento e sobre como a nossa vida seria uma loucura se não esquecêssemos da maior parte das coisas que acontecem no dia.
Entre esquecimentos e lembranças, pessoas vão e pessoas vêm, o novo substitui o velho e os rostos que ontem eram familiares, hoje são desconhecidos. Como cantou Cartola, o mundo é um moinho, e esquecer é uma dádiva daqueles que vivem o novo e cultivam a vida que se renova a cada amanhecer.