Convivi com o João Batista por cerca de 20 anos. Mas só no dia do sepultamento fui saber seu nome completo: João Batista Souza Abreu, 60 anos.
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Ele era um sem-teto. Vivia pelas ruas do Menino Deus há cerca de quatro décadas, dizem. Desenvolveu o hábito do consumo de álcool. E, por conta disso, seu humor oscilava. Quando bebia, melhor nem passar perto.
Mas sóbrio, afloravam uma doçura e uma pureza comoventes. Mesmo me reconhecendo e puxando conversa, não guardava nomes. E perguntava – sempre - assim: qual é mesmo a sua graça?
Certa vez, ele me parou na rua. Tinha em mãos uma caixinha de papel que guardava uma bolinha de ervas. Ele havia ganhado de uma moradora do bairro e queria saber o que era. A embalagem tinha dizeres em mandarim. Ele lembrava que minha mulher tem traços orientais – mas ela é japonesa.
Lancei mão de um tradutor no celular e dei a grande notícia: “É um chá da fortuna, João Batista!”, falei, entusiasmado. Ao que ele retrucou: “Ah, fortuna? Mas pra quê?”
Só eu, mesmo, pra imaginar um sujeito que dormia dentro de um carrinho de supermercado adaptado interessado em fazer fortuna. Ele queria mesmo o suficiente pra seguir a vida. E, assim, alguns vizinhos ajudavam.
João Batista também tinha uma paixão. Uma jovem moradora de rua. Que se aproveitava da sua bondade. Ele deu muito do que ganhava pra ela. Daria tudo. Ou melhor, quase tudo.
Há alguns anos, passou a conviver com um cão. Vitório chegou bebezinho, felpudinho. E foi ficando. O João adorava aquele cusquinho. Cuidava mais do Vitório do que de si próprio.
Vitório cresceu. E andava junto do João. Reconhecia e era amistoso com quem o João se relacionava. Mas também protegia o tutor. Ganhou uma casinha, já que não cabia mais no protetor de ar-condicionado onde seus panos eram acomodados.
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João Batista tinha saúde debilitada. Por causa da bebida. E quando sua condição piorou, no começo deste ano, precisou ser internado. Antes, porém, pediu a outra moradora do bairro que cuidasse do Vitório. “Não deixa com a fulana”, implorou, referindo-se à jovem por quem ele tinha tanto afeto.
No hospital, ele acabou tendo complicações e nunca mais voltou. No dia do velório, em março, no Campo Santo do Cemitério da Santa Casa de Misericórdia, poucas pessoas compareceram. Alguns vizinhos do bairro, a jovem paixão e um “irmão das ruas”. Conversamos sobre ele em volta do caixão. Rimos das suas histórias. Fizemos uma prece, alguns instantes em silêncio e respeito. E acompanhamos o enterro, em uma cova rasa.
João Batista Souza Abreu teve uma despedida menor do que mereceria. E nós, que lá estivemos, levamos um banho de realidade.
O bairro ficou até um tanto vazio. Preenchido, de certa forma, quando passo em frente à nova casa do Vitório.
Preconceitos e segregação social também matam. E Porto Alegre morre um pouco a cada João Batista que se vai.