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Publicada em 24 de Outubro de 2024 às 19:16

Ex-vocalista do Iron Maiden, Paul Di'Anno teve uma vida cheia de conexões com o Brasil

Falecido nesta semana, cantor fez mais de uma centena de shows no País, tocou com bandas 100% brasileiras e chegou a ser integrante de torcida organizada do Corinthians

Falecido nesta semana, cantor fez mais de uma centena de shows no País, tocou com bandas 100% brasileiras e chegou a ser integrante de torcida organizada do Corinthians

SILVIO TANAKA FONSECA/DIVULGAÇÃO/JC
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Igor Natusch
Igor Natusch Editor de Cultura
Famoso por ter emprestado a voz aos dois primeiros discos do Iron Maiden, um dos gigantes do heavy metal mundial, o vocalista inglês Paul Di'anno, falecido no começo desta semana aos 66 anos, era profundamente conectado ao Brasil. Não apenas por laços de sangue (afinal, segundo alegações do próprio, seu pai era brasileiro e ele tinha dupla cidadania), mas por longos períodos circulando pelo País - que renderam disco de estúdio, dois filhos, a admiração da torcida do Corinthians e a maior turnê de um artista estrangeiro em solo brasileiro, entre outras marcas memoráveis e curiosas.
Famoso por ter emprestado a voz aos dois primeiros discos do Iron Maiden, um dos gigantes do heavy metal mundial, o vocalista inglês Paul Di'annofalecido no começo desta semana aos 66 anos, era profundamente conectado ao Brasil. Não apenas por laços de sangue (afinal, segundo alegações do próprio, seu pai era brasileiro e ele tinha dupla cidadania), mas por longos períodos circulando pelo País - que renderam disco de estúdio, dois filhos, a admiração da torcida do Corinthians e a maior turnê de um artista estrangeiro em solo brasileiro, entre outras marcas memoráveis e curiosas.
Na verdade, são tantos shows no Brasil que é até difícil fazer a conta. Segundo o site setlist.fm, que agrega informações sobre shows ao vivo e turnês de artistas internacionais, Paul Di'Anno teria feito 115 apresentações no Brasil, mas algumas menções são confusas, há datas que parecem estar faltando e é possível que a conta seja ainda maior. Só em Porto Alegre, foram cinco shows - o primeiro no distante 1997, no há muito fechado Estação Zero; o mais recente, em fevereiro do ano passado, em um Teatro do Ciee surpreendentemente cheio, em uma turnê interminável pelo Brasil da qual falaremos em seguida.
As primeiras apresentações, aliás, nem mesmo aconteceram de verdade. Quem é versado nos caminhos do heavy metal já terá ouvido falar de South American Assault Live, álbum de estreia do projeto Killers que teria supostamente sido gravado ao vivo durante uma turnê por Brasil, Argentina e Venezuela. A verdade, porém, é que o citado giro nunca aconteceu: as gravações foram feitas em Nova York, com um estúdio móvel, financiadas por um empresário que queria promover shows da banda por aqui e, depois, desistiu do investimento. Sons de plateia tirados de discos de sonoplastia foram adicionados ao material e aí está, um disco ao vivo registrando shows que nunca aconteceram. Um dos muitos aspectos da vida de Paul Di'Anno que não são bem o que parecem - algo, na verdade, bastante comum na vida do músico britânico.
É sabido, por exemplo, que o vocalista nasceu em Chingford, perto de Londres, em 17 de maio de 1958, com o nome Paul Andrews. O Di'Anno surgiu depois, mais ou menos na época em que ele entrou para o Iron Maiden - um nome artístico que, curiosamente, o artista vendeu durante muito tempo como seu nome de fato, ao ponto de tentar usá-lo para declarar-se descendente de italianos. Um ponto de incerteza, entre vários, é em quais bandas o cantor esteve antes do Iron Maiden: durante muitos anos, por exemplo, falou-se que ele cantou em um conjunto chamado Bird of Prey, até que o próprio viesse a desmentir tudo em entrevistas.
O que se sabe é que, no Iron Maiden, sua carreira disparou. Gravou dois álbuns que revolucionaram o metal (Iron Maiden, de 1980, e Killers, lançado no ano seguinte), com uma voz que unia a potência típica do estilo a uma rispidez típica de suas origens punk. No palco, sua presença também marcou época: sem o cabelão comprido dos vocalistas de metal da época, Paul Di'Anno tinha uma postura genuinamente agressiva, evocando uma masculinidade rude e debochada que adicionava ao som pesado uma honestidade poucas vezes vista até então. Paul era uma figura que você poderia encontrar no pub mais próximo, enchendo a cara e fazendo arruaça - e não é por acaso que o músico esteve repetidas vezes atrás das grades, o que inspirou músicas como Running Free (grande sucesso do Iron Maiden), mas também levou à sua saída da banda, em setembro de 1981. Era tanta autenticidade que a vida sem regras de Paul tornou-se incompatível com o comprometimento de uma banda que, com o novo vocalista Bruce Dickinson, se tornaria uma das maiores do metal em todos os tempos.
Depois do Maiden, Paul Di'Anno fez tanta coisa que dá uma trabalheira fazer a lista. Gravou com as bandas Battlezone e Killers, além de vários trabalhos solo - alguns deles arranjados por empresários e nos quais o único envolvimento do músico foi gravar as vozes. Fez uma dupla com o também ex-Iron Maiden Dennis Stratton (guitarra) na qual os dois músicos não se encontraram em estúdio uma vez sequer, e excursionou por anos a fio com repertórios que, basicamente, repetiam as mesmas músicas dos dois álbuns que marcaram sua carreira. Tudo isso enquanto (dizia ele) se envolvia com gangues em Los Angeles e ficava entrando e saindo da cadeia - uma dessas passagens após fraudar a seguridade social da Inglaterra, fingindo uma lesão nas costas para ganhar aposentadoria por invalidez, tudo isso enquanto seguia fazendo shows por aí. 
Em uma dessas turnês, em 2007, teve como banda de apoio os gaúchos da Scelerata, que hoje atendem pelo nome Rage in My Eyes e giraram o Brasil ao lado do cantor. Antes disso, gravou com uma banda 100% brasileira o álbum Nomad (2000) - um bom disco de heavy metal que, durante muitos anos, só se podia comprar aqui na América do Sul, único território no qual tinha sido lançado. Em 2008, na que foi sua mais extensa estada no País, montou o projeto Rockfellas com Marcão (guitarra, ex-Charlie Brown Jr.), Canisso (baixista dos Raimundos) e Jean Dolabella (baterista, então no Sepultura), com o qual excursionou pelo Brasil tocando covers.
Que o cantor britânico gostava daqui, era bem óbvio. Teve duas filhas em solo brasileiro, e chegou a virar torcedor do Corinthians - clube que, quando da morte do músico, prestou homenagem a ele em suas redes sociais. Tinha até carteirinha da Gaviões da Fiel, dizem. Durante muitos anos, circulou o boato de que Paul Di'Anno morava no Brás, em São Paulo - e é quase uma pena que não seja verdade, já que ele sempre teve residência na Inglaterra. 
Outra coisa que ninguém sabe exatamente como se deu foi a terrível lesão nos joelhos, que o deixou preso a uma cadeira de rodas nos últimos anos de vida. Há quem diga que ele foi baleado em uma escaramuça com a polícia dos EUA; outros falam em consequência de suas supostas brigas com gangues. Há quem diga que tudo se deu após uma queda de moto. O mais provável, porém, é que a deterioração dos joelhos tenha origens congênitas, agravadas pelo lifestyle pouco saudável de uma vida inteira. Nos últimos anos, auxiliado por Stjepan Juras,  empresário e biógrafo do Iron Maiden, conseguiu fazer cirurgia e tratamento na Croácia, e havia esperanças de que voltasse a andar. Para financiar o tratamento, Paul fez o que melhor sabia fazer: caiu na estrada - com direito a nada menos que 31 shows consecutivos no Brasil, incluindo Porto Alegre.
Ninguém esperava, mas foram os últimos. Ele faria uma série de shows ainda maior no Brasil em 2024, com 40 shows em cidades brasileiras. No entanto, as apresentações tiveram de ser remarcadas diversas vezes por motivos de saúde - a última previsão, um pouco vaga, era de que acontecessem na metade do ano que vem. Não deu tempo. Seja como for, e ainda que não tenha ocorrido uma despedida de fato, o cenário do rock no Brasil vai sempre carregar um bocado de Paul Di'Anno dentro de si - uma paixão recíproca que uniu influência, lenda e episódios pitorescos como poucas vezes se terá visto por aí. 
 

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