Na esquina da rua da minha casa tem um buteco. Um buteco de verdade, BUteco, com “u”, não BOteco. Daqueles pé sujo mesmo, vidro com ovos de codorna em conserva sobre o balcão, prateleiras repletas de garrafas de cachaça das mais variadas marcas, baleiro giratório para quem quiser adoçar a boca entre um gole ou outro, torresmo frito na medida, cigarros, isqueiros, copinhos de martelinho lavados e pendurados de cabeça para baixo. Coisa fina.
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O buteco hoje não tem mais nome. Antigamente, quando eu era criança, se chamava Armazém Sedemar. O Sedemar era o dono e a falta de criatividade na escolha do nome do estabelecimento era compensada com muito carisma por parte do proprietário que misturava simpatia com ranzinice, criando, assim, um personagem deveras autêntico e magnético.
Ainda recordo bem, quando, na casa dos meus 8 ou 9 anos, corria faceiro no Sedemar para comprar balas com moedinhas que minha mãe tinha me dado. Hoje eu já não vejo mais tantas crianças frequentando o bar – acho, inclusive, que nem é mais um lugar aprazível para a convivência infantil (não que, naquela época, o fosse).
O fantástico do buteco é a magia que envolve o lugar. Não importa o dia da semana, toda vez que passo em frente ao estabelecimento, tem de duas a cinco pessoas – predominantemente homens, mas também mulheres de vez em quando – sentadas nas cadeiras de praia bebericando sua cerveja, ou sua cachaça ou o seu aperitivo de preferência, ouvindo uma música aleatória qualquer, tagarelando alto e dando risadas histriônicas. O silêncio só se faz presente naquele lugar nas primeiras horas da manhã, quando o espaço fica vazio, esperando ansiosamente o correr do relógio para receber seus ilustres frequentadores.
Do lado de dentro, uma mesa de sinuca surrada, com o forro verde puído, os tacos ensebados e as redes dos buracos remendadas, sedia épicos confrontos sendo a tradicional disputa dos sábados entre os sóbrios e os ébrios o mais clássico e melhor deles.
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Nunca presenciei uma briga ali, com troca de socos e tal. No máximo, alguns xingamentos e dedos em riste que foram rapidamente abafados quando a música começou a tocar no talo. Essa é uma das estratégias do dono atual do buteco. Quando começa uma discussão mais ríspida que pode descambar para um catiripapo que outro, ele pega o controle remoto e joga lá no alto o volume do som. A partir daí, ninguém mais se escuta e os ânimos se arrefecem.
A questão da música ambiente, aliás, merece um parágrafo à parte. O buteco tem uma jukebox do lado de fora. Uma jukebox, sabe, dessas que a gente coloca uma moeda e escolhe a música que vai tocar. Só sonzeira de qualidade, daquelas que, ao soar dos primeiros acordes, um arrepio percorre a espinha de cima abaixo e se torna praticamente impossível ficar parado.
Um detalhe importante que precisa ser salientado: não ouse perguntar se tem wi-fi no estabelecimento sob risco de ser sumariamente enxotado e se tornar persona non grata. Aquele local é para conversas, risadas, olho nos olhos e não nas telas, mãos nos copos e mãos nas mãos para dançar e não nos smartphones.
Aquele buteco resiste. Resiste à modernidade, resiste à tecnologia, resiste ao avanço imobiliário, resiste ao tempo. E como é difícil resistir ao tempo, esse implacável que nos atropela, nos tira o viço, nos cobra caro e nos empurra para o ocaso final. Um passo de dança, um brinde aos amigos, uma bola 8 encaçapada perfeitamente, uma conversa despreocupada em um entardecer de verão. Resistir é possível. Resistir é preciso.