Referência na cultura afro-gaúcha, a bailarina, coreógrafa, produtora, diretora artística, assistente social, professora e ativista Iara Deodoro – falecida na última sexta-feira (27), aos 68 anos – deixou como legado a valorização da arte como instrumento de transformação social. Ao longo de 50 anos, ela dirigiu e coreografou mais de 30 espetáculos, além de atuar no carnaval como porta-bandeira, entre outras funções de bastidores. Ao lado do marido, o cantor e instrumentista Paulo Romeu Deodoro, Iara esteve à frente do Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomodê desde sua fundação, em 1974.
Foi na Instituição (que funciona como movimento de luta e valorização da cultura negra e do direito à livre expressão) que ela deu visibilidade e consolidou a dança afro-gaúcha, com o Grupo de Dança Afro-Sul. Ali, também desenvolveu projetos educacionais e artísticos em música, moda e gastronomia com base na cultura e na história africana e afro-brasileira. Mestra griô, transmitiu ensinamentos que são reconhecidos não somente por seus alunos e alunas (incluindo as turmas do curso de metodologias da dança, do qual era coordenadora no Instituto Odomodê), mas também pela Academia.
Dona de uma sistematização de "respeito, carinho e amor pela individualidade dos corpos e das pessoas", como define a bailarina e coreógrafa Taila Santos de Souza, Iara teve seus movimentos em dança registrados em um projeto de pesquisa e extensão da Ufrgs, coordenado pela professora Mônica Dantas. Desenvolvida em 2022, a iniciativa denominada Carne Digital criou um acervo eletrônico que documenta os fundamentos das técnicas desenvolvidas por Mestra Iara Deodoro (o mesmo que foi feito com a metodologia da bailarina e coreógrafa gaúcha Eva Schul).
Segundo Taila (que é integrante do Afro-Sul desde os cinco anos de idade; e a quem Iara passou o bastão da produção, coreografia e direção artística do grupo em 2023), a metodologia de sua educadora em dança sempre foi muito intuitiva. "Nasceu de uma inquietação que ela tinha, e é baseada na contração que vem do ventre e vai para as extremidades, permitindo que se expresse no palco os sentimentos internos. Faz também uma menção ao forte-suave, que traz leveza à resistência, dá suavidade à força", explica. "Outra coisa fundamental da metodologia da Mestra Iara é o contratempo enfatizado nos passos, que fala de um 'outro' tempo – que não é esse das coisas acontecendo de forma frenética –, que acalenta o coração, que nos faz entender que tudo é meio ancestral."
A forma como Iara Deodoro encontrou de falar de temas difíceis sempre foi através da beleza, sem romantizar as dificuldades, mas evitando o lamento, destaca Taila. "Ela era a representação do colo, do acolhimento para todos nós do Afro-Sul", emenda a bailarina. O sentimento de pertencimento que o trabalho de Iara no Instituto Odomodê gerava em seus integrantes é uma das características de sua atuação também na vida.
"Ela não teve formação acadêmica em Dança, seu bacharelado foi em Assistência Social, e era pós-graduada em Educação Popular", observa o artista plástico, aderecista, figurinista e cenógrafo carnavalesco Luiz Augusto Lacerda (Gugu Lacerda). "Conheci a tia Iara quando eu era bem pequeno, pois ficava na creche dela enquanto meus pais iam trabalhar. Cresci e continuei visitando ela, que na minha adolescência me convidou para dançar no grupo Afro-Sul, e dali a gente ficou ainda mais próximo; mais tarde ela me ensinou a escrever enredo de escola de samba", comenta. "Ela era uma pessoa sempre muito presente nas nossas vidas, em todos os momentos, principalmente nos ruins. Além de suas três filhas biológicas (Paola, Edjana e Khadija), ela agregou muitos filhos, netos e bisnetos dos integrantes do Afro-Sul, com seu jeito afetuoso de ser."
Lacerda pontua que Iara Deodoro atuou intensamente, desde a década de 1980, no Carnaval de Porto Alegre, onde foi porta-bandeira e coreógrafa de alas e comissões de frente, chegando a trabalhar em 17 escolas diferentes em um mesmo ano. Também foi fundadora e diretora da extinta Escola de Samba Garotos da Orgia. "No último espetáculo de dança que ela dirigiu, intitulado Reminiscências – Memórias do Nosso Carnaval e que estreou em 2019, a tia Iara realizou uma releitura das participações do Afro-Sul na festa popular desde os desfiles na Avenida Carlos Alberto Barcellos aos que ocorreram no Complexo Cultural do Porto Seco. Ela era apaixonada pelo carnaval".
O figurinista e cenógrafo ainda descreve Mestre Iara como "mãe incansável, esposa companheira, avó acolhedora com os netos biológicos e também com os da legião de filhos que ela criou entre os integrantes do grupo Afro-Sul". Ele destaca que no período que ela exerceu o Serviço Social no Instituto Odomodê, ainda "foi cozinheira, costureira, amiga" e atenta a tudo que aconteceu ao seu redor e na comunidade em que atuava. "Ela era artista por vocação, não por dinheiro. Escolheu fazer arte pelo social", completa.
Batizada como Maria Iara Santos Deodoro, a multiartista e "dama da dança afro-gaúcha" nasceu em 25 de setembro de 1955, filha de Verônica da Silva Santos (conhecida como Tia Lili) e de Vilson Santos. Cresceu no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, rodeada pelas duas irmãs biológicas e um irmão adotivo. Aos quatro anos de idade, ficou órfã do pai. Contemplada com uma bolsa de estudos no Colégio Santa Inês, por volta de 1963 e 1964, aos oito anos de idade, Iara teve seus primeiros contatos com a dança na escola, por meio de práticas corporais da Ginástica Artística, que na época era chamada de Ginástica Educacional Feminina Moderna, ministrada por Nilva Therezinha Dutra Pinto (1934-2020), professora de Educação Física e Dança. "A professora Nilva Pinto, como era conhecida, foi a responsável por toda sua formação de artista da dança, que aconteceu durante sua formação no Ensino Fundamental", conta Lacerda. Mais tarde, a própria Iara partiu para uma pesquisa pessoal e, ainda adolescente, teve seu primeiro contato com a dança afro da forma como ela 'sentia' intuitivamente (contrária aos estereótipos da época), ao assistir uma apresentação de ballet folclórico do Senegal, no Theatro São Pedro.
Atualmente, Mestra Iara era coordenadora pedagógica do grupo de Escolas Preparatórias de Dança (EPDs) e coreógrafa da Companhia Municipal de Dança de Porto Alegre. "Ela foi um patrimônio vivo da dança afro na cidade, tanto por iniciar toda uma pesquisa de dança, como por difundir e socializar o conhecimento que foi reunindo. Foi uma grande pesquisadora e sistematizadora do modo afro-gaúcho, inclusive ganhando reconhecimentos, como o Prêmio Joaquim Felizardo e o Premio Açorianos de Dança", destaca o jornalista, coreógrafo, roteirista, diretor, professor e coordenador do Centro Municipal de Dança (CMD) da Secretaria Municipal de Cultura da Capital, Airton Tomazzoni. "Sem dúvidas, o Afro-Sul e as sabedorias de Iara tornaram-se referência para outros grupos de dança no Estado e no País", ressalta.