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Publicada em 09 de Setembro de 2024 às 14:28

O Stricher sabia das coisas

Repórter fotográfico Ricardo Stricher morreu no último sábado (7), aos 67 anos

Repórter fotográfico Ricardo Stricher morreu no último sábado (7), aos 67 anos

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Igor Natusch
Igor Natusch Editor de Cultura
Quem se interessa pelas coisas da cidade ficou sabendo em algum momento do final de semana: Ricardo Stricher, um dos mais notórios fotógrafos das ruas de Porto Alegre, faleceu. Triste notícia, em especial por ser um buraco que, pelo andar da carruagem - na cidade, no jornalismo, na vida - não se preenche mais. O Stricher vai estar sempre lá, sempre lembrado com carinho, sempre fazendo falta.Embora tenha encontrado o Stricher muitas vezes nessa vida, acho que em nenhuma delas combinei de vê-lo. No máximo aquele comparecimento a alguma sessão de autógrafos, a gentileza que se faz ao amigo que lança um livro - mas combinar mesmo, de vamos nos ver na quarta-feira ali no Tuim, tomar um chopinho e tal, isso nunca aconteceu. Não precisava: a nossa amizade era de estar lá fora, andando na rua, no Centro Histórico especialmente. Também não lembro da primeira vez que nos falamos: acho que ele deve ter visto meu crachá de jornalista, veio puxar papo, e por aí veio todo o resto. Stricher gostava de tomar seu chopp com uma branquinha do lado. Ia bebericando a braba enquanto tomava a gelada, sempre atento aos movimentos ao redor. Era daquele fotógrafo fissurado no ofício, o tempo todo procurando uma imagem digna de registro. Não tinha pressa, porém. Travar amizade com o Stricher envolvia ser capaz de sintonizar o seu ritmo, saborear os momentos sem correria, sem pensar muito na hora de ir embora.Uma ocasião, no velho Odeon, estava eu e uma amiga minha, pessoa com a qual eu vivia naquele momento uma situação, digamos, indefinida. Em meio ao jazz e aos copos de chopp, surgiu o Stricher não sei de onde, já consideravelmente bêbado, e deu na telha dele de sentar na nossa mesa. O que poderia ter sido um momento inconveniente e constrangedor acabou se mostrando uma demonstração encantadora de como juntar pessoas: puxou o assunto perfeito, fez com que juntássemos as mãos, digressou longamente sobre as infinitas possibilidades do amar. Deve ter durado uns 15 minutos, se isso, mas foi o suficiente: ficamos eu e minha companheira totalmente enamorados, prontos para a troca de beijos antes de ir embora, e Stricher saiu-se porta afora, sorrindo e cantando, para encantar algum outro boteco com sua lábia e alegria. Eu e minha amiga ficamos na amizade, no fim das contas, mas isso é o que menos importa na coisa toda.Viram só? Além de tudo, o Stricher era um tremendo de um cupido.
Quem se interessa pelas coisas da cidade ficou sabendo em algum momento do final de semana: Ricardo Stricher, um dos mais notórios fotógrafos das ruas de Porto Alegre, faleceu. Triste notícia, em especial por ser um buraco que, pelo andar da carruagem - na cidade, no jornalismo, na vida - não se preenche mais. O Stricher vai estar sempre lá, sempre lembrado com carinho, sempre fazendo falta.

Embora tenha encontrado o Stricher muitas vezes nessa vida, acho que em nenhuma delas combinei de vê-lo. No máximo aquele comparecimento a alguma sessão de autógrafos, a gentileza que se faz ao amigo que lança um livro - mas combinar mesmo, de vamos nos ver na quarta-feira ali no Tuim, tomar um chopinho e tal, isso nunca aconteceu. Não precisava: a nossa amizade era de estar lá fora, andando na rua, no Centro Histórico especialmente. Também não lembro da primeira vez que nos falamos: acho que ele deve ter visto meu crachá de jornalista, veio puxar papo, e por aí veio todo o resto.

Stricher gostava de tomar seu chopp com uma branquinha do lado. Ia bebericando a braba enquanto tomava a gelada, sempre atento aos movimentos ao redor. Era daquele fotógrafo fissurado no ofício, o tempo todo procurando uma imagem digna de registro. Não tinha pressa, porém. Travar amizade com o Stricher envolvia ser capaz de sintonizar o seu ritmo, saborear os momentos sem correria, sem pensar muito na hora de ir embora.

Uma ocasião, no velho Odeon, estava eu e uma amiga minha, pessoa com a qual eu vivia naquele momento uma situação, digamos, indefinida. Em meio ao jazz e aos copos de chopp, surgiu o Stricher não sei de onde, já consideravelmente bêbado, e deu na telha dele de sentar na nossa mesa. O que poderia ter sido um momento inconveniente e constrangedor acabou se mostrando uma demonstração encantadora de como juntar pessoas: puxou o assunto perfeito, fez com que juntássemos as mãos, digressou longamente sobre as infinitas possibilidades do amar. Deve ter durado uns 15 minutos, se isso, mas foi o suficiente: ficamos eu e minha companheira totalmente enamorados, prontos para a troca de beijos antes de ir embora, e Stricher saiu-se porta afora, sorrindo e cantando, para encantar algum outro boteco com sua lábia e alegria. Eu e minha amiga ficamos na amizade, no fim das contas, mas isso é o que menos importa na coisa toda.

Viram só? Além de tudo, o Stricher era um tremendo de um cupido.
Falava direto na Lavínia, a filha que amava de paixão. Mostrava fotos dela, e também fotos feitas por ela, ambas com igual orgulho. "Ela tem olho bom para fotografia", me disse mais de uma vez, todo sorridente, sem disfarçar a alegria.

Aprendi várias coisas com o Stricher. Não apenas de profissão, que o homem era jornalista dos bons, mas de postura diante da vida, digamos. Essa coisa de amar estar onde se está, com quem se está, curtindo o momento, saboreando o presente. Acima de tudo, ele me ensinou a sabedoria de estar na rua, curtindo a cidade, preparado para a surpresa mágica que sempre surge quando você está lá para ela.

Nos últimos tempos, andava bem sumido o Stricher. A saúde dele nunca foi boa, sempre me pareceu que ele bebia um pouco demais, e imagino que os dissabores da pandemia tenham causado um efeito desagradável sobre ele. Sabia que ele não vinha bem, embora estivesse tentando cuidar um pouco mais de si mesmo, mas não quis e nem quero saber os detalhes. Triste mania que temos de cristalizar as pessoas no seu ocaso, quando tiveram a chance de brilhar tão bonito em vida, por muitos e muitos anos. Deixa o Stricher brilhar na minha memória, que é bem melhor.

Lembro de uma das últimas conversas que tivemos. Acho que foi, de novo, no Odeon: chovia horrores, uma chuva daquelas que dura horas a fio, e eu (fiel a mim mesmo nesse quesito) não trazia comigo nenhum guarda-chuva. Comentei isso com o Stricher e ele, de imediato, confessou: também não carregava guarda-chuva consigo, nunca. Deixava apenas uma sacola de plástico em um dos bolsos da calça, para colocar celular, carteira e outros itens que não podiam molhar no aguaceiro. Na hora de ir embora, metia tudo na sacola, amarrava bem e saía caminhando na chuva, sem pressa, rumo ao lar. "A chuva é um presente de Deus, lava a alma da gente", vaticinou. "Eu chego em casa leve, de alma limpa. Fica tudo para trás."

Hoje em dia, eu só faço como o Stricher. E rapaz, não é que ele tem toda a razão?

Não é à toa que Porto Alegre teve um final de semana triste, de céu cinza, de chuva que não caía e de sol que se recusava a aparecer. Haverá quem pense que tem a ver com a fumaça das queimadas nas florestas, mas, apenas desta vez, vou pedir licença para discordar. A cidade está triste porque o Stricher foi embora, digo eu. Porque a cidade conhece e ama seus cronistas - e, em tempos como esses, nos quais parece que ninguém mais se interessa por namorar a cidade em que vive, cada desfalque pesa bem mais do que de costume.

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