A premiada montagem teatral Tocar Paraíso, da Cia. Espaço em Branco, terá sessões às 19h desta sexta-feira (6) e de sábado (7), no palco do Teatro Glênio Peres (av. Loureiro da Silva, 255), na Câmara Municipal de Porto Alegre. Dirigida por João de Ricardo, a encenação escancara as complexas conexões de poder moldadas pelo capitalismo e suas relações com as crises subjetivas, econômicas, culturais e climáticas, nas quais a população mundial está inserida. O ingresso do público é gratuito, mediante retirada de senhas 30 minutos antes das apresentações, de acordo com a disponibilidade.
Com texto do austríaco Thomas Köck (originalmente intitulado Paradies Spielen), Tocar Paraíso foi concebido dentro do extinto projeto Transit, criado pelo Goethe-Institut em 2017 e que financiava encenações próprias de dois criadores gaúchos para um mesmo texto, escrito por um dramaturgo ou dramaturga de língua alemã. Em cena, Anildo Böes, Eduardo d’Avila, Evelyn Ligocki, Fernanda Carvalho Leite, João de Ricardo e Iandra Cattani vivem as três histórias propostas na peça original, a partir de uma criação coletiva que adaptou-se à realidade brasileira, ampliando os sentidos do texto com canções irônicas executadas pelo próprio elenco. Além deles, também o pianista Rodrigo Fernandez ocupa o palco, executando a trilha sonora (assinada por ele e Daniel Roitman) ao vivo.
Em 2019, além de João de Ricardo, o diretor Mauricio Casiraghi (ATO Cia Cênica) estreou Expresso Paraíso na mesma edição do projeto. Naquele ano, a montagem da Cia. Espaço em Branco recebeu 11 indicações e levou três troféus do Prêmio Açorianos: Melhor Espetáculo, Melhor Direção (para João de Ricardo) e Melhor Atriz (para Evelyn Ligocki). Agora, em 2024, o grupo retorna com a peça, celebrando os 20 anos de trabalho continuado da companhia teatral, que conta com 13 espetáculos em seu portfólio.
"As comemorações do aniversário de duas décadas da Cia. Espaço em Branco estavam programadas para ocorrer entre os dias 3 e 22 de maio, com apresentações do espetáculo A Fome", destaca João de Ricardo. "No entanto, as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul naquele período impediram a realização das sessões", recorda, emendando que a peça, estrelada pela atriz Sissi Venturin, deverá entrar em cartaz nos dias 4, 5 e 6 de outubro na Sala Álvaro Moreyra. "Agora, as sessões de Tocar Paraíso serão a oportunidade de comemorar junto ao público essas duas décadas com força para enfrentar tempos, literalmente, estranhos", observa o diretor.
João de Ricardo comenta que o texto de Köck "nunca foi tão atual", por "admitir o absurdo do teatro frente à vida e a sua aparente incapacidade de realmente mudar alguma coisa". Ao destacar que se identifica muito com a escrita teatral do dramaturgo austríaco, repleta de dinâmicas contemporâneas, o diretor avalia que o autor vai do lírico ao dramático e ao épico para contar "histórias atravessadas por trens", lançando mão de distintas possibilidades de estruturação para a cena. "É um apelo à teatralidade, pois traz questões que são impossíveis de ser traduzidas de forma realista, a exemplo de um trem que colide contra um hotel e contra uma fábrica", pontua. "Com isso, o texto desafia que os artistas criem soluções que envolvam a criatividade e o corpo, para solucionar essas questões que surgem em cena".
Também a ironia da escrita de Köck vai de encontro ao estilo do trabalho da Cia. Espaço em Branco. "Na peça, ele faz uma crítica bem-humorada à classe média branca", afirma o diretor. "Uma das histórias principais apresenta essas pessoas viajando em um trem que, em determinado momento, acelera muito e passa a ficar desgovernado, enquanto elas estão presas a seus conflitos, que não levam a lugar nenhum", revela. Para explorar essas figuras (um conjunto musical erudito, formado por pessoas brancas e de classe média alta, que está viajando para fazer um concerto), o grupo criou cenas onde o público é convidado a refletir sobre a "branquitude" e a questão do artista no contexto de colonização cultural (uma vez que o texto tem origem europeia) a partir de metalinguagem do próprio trabalho da Companhia. "Elas estão nas garras de um maestro diabólico (que eu interpreto), que seria o condutor do trem no texto", adianta.
Pontuada não só pela música ao vivo, mas também com cantorias (em coral) do elenco, a peça ainda conta outras duas histórias: a de um homem que visita o pai agonizante na UTI de um hospital; e a de um casal de mulheres chinesas que trabalha numa linha de montagem de pilhas de lítio e sonham "encontrar o paraíso" imigrando ilegalmente para a Europa. "No texto de Köck, o casal de chineses é um homem e uma mulher, mas transformei em um casal de mulheres, até como uma uma marca do meu trabalho, que sempre dá luz aos relacionamentos homossexuais, para ampliar ainda mais o drama que essas personagens estão vivendo: não só infelizes com a questão de trabalho (uma fábrica chinesa na Itália), mas também pela própria natureza do relacionamento, que se torna mais opressiva (pelo sistema) contra os sonhos e afeto delas."
Segundo o diretor, os desafios para a encenação, a necessidade de usar a teatralidade para resolver o texto; a crítica profunda aos modelos coloniais e a reflexão irônica sobre a branquitude e o papel do artista no contexto colonial, principalmente no Brasil, somados ao uso da metalinguagem, fazem de Tocar Paraíso uma porta aberta para que o grupo pudesse avaliar seu trabalho como artistas. "É um espetáculo bem autoral, porque explicita minha condição de ator e diretor, e também a condição de cada ator ser autor de seu personagem e do contexto cênico", observa, emendando que a direção da montagem foi toda voltada à perspectiva da atuação, com atores criadores, além de optar por "quase nenhum" cenário, dando ênfase ao trabalho corporal do elenco.