De Gramado
Em certo sentido, O Clube das Mulheres de Negócios, longa-metragem que abriu a mostra competitiva do Festival de Cinema de Gramado em 2024, é vários filmes em um só. Tantas são as camadas na obra dirigida por Anna Muylaert que é possível assistir (e sentir) o filme de formas totalmente distintas, como se o espectador entrasse em uma casa de espelhos e não soubesse o que pensar a respeito quando retorna ao mundo lá fora. A premissa potente e interessante - a inversão de posição de homens e mulheres na estrutura patriarcal de poder, de forma que as mulheres assumam papeis de opressão hoje naturalmente associados aos homens - atinge seu alvo, e gera um filme digno da ótima filmografia de Anna Muylaert, e que será lembrado por qualquer um que o assista, por muito tempo. Pena mesmo que algumas decisões e inconsistências prejudiquem o longa enquanto obra cinematográfica, impedindo-o de ser o filme extraordinário que, talvez, tenha estado muito perto de se concretizar.
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Anna Muylaert é uma cineasta autoral, dotada de uma fidelidade plena e intransigente (no bom sentido) a suas ideias, e O Clube das Mulheres de Negócios - uma comédia com elementos slasher, ou um drama social com momentos de sátira e filme de horror, ou simplesmente uma "chanchada macabra", como ela própria o descreve - é marcado, de ponta a ponta, por essa disposição. Não resta dúvida de que esse é seu longa mais ousado, e o que causará as mais intensas discussões.
Para começo de conversa, não é muito fácil resumir o enredo do filme, que toma como cenário um gigantesco clube particular, na qual algumas das mulheres mais poderosas do Brasil (interpretadas por rainhas do cinema nacional como Louise Cardoso, Irene Ravachi, Cristina Pereira, Grace Gianoukas e Ítala Nandi) se reúnem para uma celebração cheia de excessos. É uma realidade na qual o Brasil segue em seu papel de dinheiro para roubar e lenha para queimar, mudando apenas o gênero das detentoras do poder - e das vítimas do opressão e apagamento, representadas em homens submetidos à posição de brinquedos sexuais ou de seres sem alma, obrigados a manter uma postura recatada e do lar. Nesse clube gigantesco, que é o Brasil inteiro, uma dupla de repórteres, representados por Rafael Vitti e Luís Miranda, começa a desvendar as vilanias no subsolo do poder. E então, além da reação crescente dos oprimidos, acontece também uma reação da natureza explorada: a partir da fuga de algumas onças criadas na propriedade, a ordem de poder começa a ruir, e o longa avança da comédia (muitas vezes mais incômoda do que engraçada) para o horror sanguinolento.
Para começo de conversa, não é muito fácil resumir o enredo do filme, que toma como cenário um gigantesco clube particular, na qual algumas das mulheres mais poderosas do Brasil (interpretadas por rainhas do cinema nacional como Louise Cardoso, Irene Ravachi, Cristina Pereira, Grace Gianoukas e Ítala Nandi) se reúnem para uma celebração cheia de excessos. É uma realidade na qual o Brasil segue em seu papel de dinheiro para roubar e lenha para queimar, mudando apenas o gênero das detentoras do poder - e das vítimas do opressão e apagamento, representadas em homens submetidos à posição de brinquedos sexuais ou de seres sem alma, obrigados a manter uma postura recatada e do lar. Nesse clube gigantesco, que é o Brasil inteiro, uma dupla de repórteres, representados por Rafael Vitti e Luís Miranda, começa a desvendar as vilanias no subsolo do poder. E então, além da reação crescente dos oprimidos, acontece também uma reação da natureza explorada: a partir da fuga de algumas onças criadas na propriedade, a ordem de poder começa a ruir, e o longa avança da comédia (muitas vezes mais incômoda do que engraçada) para o horror sanguinolento.
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Sim, explicado assim talvez não faça grande sentido - e é bem possível que na tela grande, assistido ao invés de descrito em texto, o universo proposto em O Clube das Mulheres de Negócios atinja as pessoas com muito mais eficiência. Em especial porque fala ao público, seja de qual gênero for, em uma esfera muito mais intuitiva e subjetiva do que a simples concretização de um roteiro. No que se refere a essa capacidade de atingir o espectador, o longa é sem dúvida um sucesso. Porém (e não é um porém que eu sinta qualquer prazer especial em mencionar), uma forte conexão emocional não basta para termos, de fato, um bom filme. E O Clube das Mulheres de Negócios fica devendo - não muito, mas de forma incômoda e perceptível - nesse particular.
São muitos personagens, e nem todos funcionam ou têm a chance de funcionar. Se Cristina Pereira (como a matriarca da dinastia de madames) ou Grace Gianoukas (que assedia sexualmente o repórter Candinho, de Rafael Vitti, em uma das cenas definitivas da película) são excelentes em seus papeis, Shirley Cruz tem pouco espaço para desenvolver sua exploradora da fé alheia, e Ítala Nandi é subaproveitada como magnata ninfomaníaca - ao ponto de que esses dois personagens poderiam, no fundo, ser completamente excluídos do filme, sem que suas ausências provocassem qualquer abalo mais acentuado na trama. Personagens importantes, como a artista rica e mimada de Polly Miranda, somem de cena de forma repentina, e a própria dissolução das relações de poder dentro do clube parece instantânea e acentuada demais: antes onipresente e absoluta, a autoridade das mulheres superpoderosas se desfaz como fumaça quando as onças surgem no pedaço, com serviçais e homens socialmente submissos indo embora facilmente, e por todos os lados, de um lugar que, minutos antes, parecia inexpugnável. No fim das contas, parece que apenas as mulheres de elite estão presas no mundo criado por Anna Muylaert - o que pode ter sido uma intenção narrativa da diretora desde o início, mas que não parece se transmitir a quem assiste de forma especialmente convincente.
São tantas as metáforas, arquétipos, comentários políticos e sociais (alguns forçados, como chamar de Brasília a mestre de cerimônias que não consegue manter as engrenagens da festa funcionando), referências, alegorias e informações que, no fim das contas, O Clube das Mulheres de Negócios se mostra um filme para depois da sessão, se é que isso faz sentido. É como se a tela se preocupasse menos em contar uma história, e mais em causar desconforto e sugerir tópicos para a discussão no caminho de casa. Não deixa de ser uma forma de um filme sobreviver muito além dos créditos finais - e Anna Muylaert, uma das melhores cineastas brasileiras da atualidade, certamente merece que seu filme seja lembrado, mesmo com as turbulências pelo caminho.
Sim, explicado assim talvez não faça grande sentido - e é bem possível que na tela grande, assistido ao invés de descrito em texto, o universo proposto em O Clube das Mulheres de Negócios atinja as pessoas com muito mais eficiência. Em especial porque fala ao público, seja de qual gênero for, em uma esfera muito mais intuitiva e subjetiva do que a simples concretização de um roteiro. No que se refere a essa capacidade de atingir o espectador, o longa é sem dúvida um sucesso. Porém (e não é um porém que eu sinta qualquer prazer especial em mencionar), uma forte conexão emocional não basta para termos, de fato, um bom filme. E O Clube das Mulheres de Negócios fica devendo - não muito, mas de forma incômoda e perceptível - nesse particular.
São muitos personagens, e nem todos funcionam ou têm a chance de funcionar. Se Cristina Pereira (como a matriarca da dinastia de madames) ou Grace Gianoukas (que assedia sexualmente o repórter Candinho, de Rafael Vitti, em uma das cenas definitivas da película) são excelentes em seus papeis, Shirley Cruz tem pouco espaço para desenvolver sua exploradora da fé alheia, e Ítala Nandi é subaproveitada como magnata ninfomaníaca - ao ponto de que esses dois personagens poderiam, no fundo, ser completamente excluídos do filme, sem que suas ausências provocassem qualquer abalo mais acentuado na trama. Personagens importantes, como a artista rica e mimada de Polly Miranda, somem de cena de forma repentina, e a própria dissolução das relações de poder dentro do clube parece instantânea e acentuada demais: antes onipresente e absoluta, a autoridade das mulheres superpoderosas se desfaz como fumaça quando as onças surgem no pedaço, com serviçais e homens socialmente submissos indo embora facilmente, e por todos os lados, de um lugar que, minutos antes, parecia inexpugnável. No fim das contas, parece que apenas as mulheres de elite estão presas no mundo criado por Anna Muylaert - o que pode ter sido uma intenção narrativa da diretora desde o início, mas que não parece se transmitir a quem assiste de forma especialmente convincente.
São tantas as metáforas, arquétipos, comentários políticos e sociais (alguns forçados, como chamar de Brasília a mestre de cerimônias que não consegue manter as engrenagens da festa funcionando), referências, alegorias e informações que, no fim das contas, O Clube das Mulheres de Negócios se mostra um filme para depois da sessão, se é que isso faz sentido. É como se a tela se preocupasse menos em contar uma história, e mais em causar desconforto e sugerir tópicos para a discussão no caminho de casa. Não deixa de ser uma forma de um filme sobreviver muito além dos créditos finais - e Anna Muylaert, uma das melhores cineastas brasileiras da atualidade, certamente merece que seu filme seja lembrado, mesmo com as turbulências pelo caminho.