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A maestra que subverte o mundo machista da regência
Por Folhapress
Corriam os primeiros anos da década de 1980. Na Cidade Universitária da Universidade de São Paulo, a então estudante da Politécnica Ligia Amadio deu uma carona para uma amiga, também aluna de engenharia, que faria uma avaliação para entrar no coral universitário. Quando chegaram ao local do teste, a regente da formação musical insistiu para que Amadio também tentasse uma vaga, como conta Naief Haddad para a Folhapress.
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Corriam os primeiros anos da década de 1980. Na Cidade Universitária da Universidade de São Paulo, a então estudante da Politécnica Ligia Amadio deu uma carona para uma amiga, também aluna de engenharia, que faria uma avaliação para entrar no coral universitário. Quando chegaram ao local do teste, a regente da formação musical insistiu para que Amadio também tentasse uma vaga, como conta Naief Haddad para a Folhapress.
Ela titubeou, mas acabou se arriscando e foi aprovada. A partir daí, a música foi reconquistando o espaço que havia tido na sua infância - com cinco anos, fascinada pelo órgão de tubos da igreja Santo Antonio do Pari, na região central de São Paulo, ela pediu aos pais para estudar piano.
Amadio concluiu o curso da Poli, mas jamais atuou como engenheira. Estudou regência na Universidade Estadual de Campinas e, em seguida, aprimorou-se em dezenas de outros cursos no Brasil e no exterior.
Quatro décadas depois do alerta de que sua vocação estava distante dos números, ela enfrenta um dos maiores desafios da carreira. Desde fevereiro deste ano, está à frente da Sinfônica de Minas Gerais (OSMG), fundada em 1976, com o objetivo de torná-la uma das principais orquestras do País.
Em sua história de quase meio século, a OSMG já recebeu algumas regentes convidadas, mas Amadio é a primeira a assumir o posto de titular, um pioneirismo com o qual está bem habituada.
Antes dela, nenhuma mulher havia ocupado essa função na Sinfônica Nacional, do Rio de Janeiro, nos anos 1990. Foi também o que aconteceu nas suas passagens pelas filarmônicas de Mendoza, na Argentina; de Bogotá, na Colômbia; e de Montevidéu, no Uruguai, entre outras.
Uma trajetória assim, em que o nome dessa paulistana aparece sempre associado ao adjetivo "primeira", indica competência, claro. Mas não só. Demonstra como a regência ainda é um ofício excessivamente masculino, o que está longe de ser uma particularidade brasileira. "Minhas colegas europeias dizem que aqui (na América do Sul) há mais abertura do que lá, ou seja, essa é uma condição mundial", diz ela, que prefere ser chamada de maestra em vez de maestrina.
"O mundo da música clássica sempre teve dificuldades em aceitar regentes mulheres e, no caso raro de tolerar alguma com a batuta, sempre era como convidada, nunca como titular. Tivemos, por exemplo, a gaúcha Joanidia Sodré regendo a Filarmônica de Berlim como convidada em 1930, mas posto de titular, por aqui, sempre foi virtualmente impossível", afirma Irineu Franco Perpetuo, crítico de música clássica.
"Antes da Ligia, eu só me lembro... Da própria Ligia, na Sinfônica de Campinas, na Osusp (Orquestra Sinfônica da USP) e na Orquestra Sinfônica Nacional", complementa Perpetuo.
Mas ele pondera: "Houve exemplos de mulheres ocupando postos importantes na regência coral no Brasil: Cleofe Person de Mattos, Mara Campos, Naomi Munakata e, atualmente, Maíra Ferreira. Mas a regência orquestral ainda é extremamente excludente."
Ainda de acordo com o crítico, o mais importante no fato de Amadio ter alcançado esse patamar "é mostrar que mulheres brasileiras podem ser maestras titulares (ele enfatiza a palavra 'titulares') no Brasil. Sem um exemplo concreto para mirar, as jovens musicistas podem se sentir desestimuladas e desistirem do caminho da regência."
Um hipotético cenário com mais maestras em orquestras de ponta leva a uma questão para a qual não existe resposta definitiva: existe um jeito feminino de reger?
Chefe de naipe de segundos violinos da OSMG, Karine Oliveira conviveu intensamente com Amadio ao longo deste ano. Para a violinista, são os pormenores que diferenciam uma maestra de seu correspondente masculino. "Quanto mais minucioso for o olhar de um regente, maior é a possibilidade de a orquestra se agigantar. E nós, mulheres, enxergamos detalhes que, às vezes, passam despercebidos pelos homens."
Em meio aos ensaios para a 9ª Sinfonia de Beethoven, que será interpretada pela orquestra mineira nos dias 20 e 21 de dezembro, Oliveira comenta o modo como Amadio conduz a orquestra. "Ela é muito educada, mas jamais deixa de cobrar a gente, sempre uma cobrança pela música, que está acima de todas as questões".
Nas suas andanças mundo afora, Amadio suscita admiração, como é o caso da violinista da OSMG. Mas sua presença também incomoda. "Os músicos são sensíveis ao artista que está ali à frente, eles se emocionam, aplaudem. Não costuma haver discriminação. Sofri mais reações assim do pessoal da administração dos lugares por onde passei, fossem homens ou mulheres. A figura feminina, às vezes, chocava", ela conta.
Em 2016, depois de um episódio de machismo - "já não lembro o que foi, certamente algum mau-trato"-, ela escreveu um email para três colegas: Vânia Pajares, maestra em musicais brasileiros bem-sucedidos; Claudia Feres, regente titular da Orquestra Sinfônica de Jundiaí, e Érika Hindrikson, da Sinfônica Jovem Municipal, de São Paulo.
"Perguntei se enfrentavam situações semelhantes à que eu tinha vivido, e todas disseram que sim. Então, resolvemos nos reunir em um café em São Paulo e nasceu ali a ideia de fazer um simpósio de mulheres regentes", lembra.
A iniciativa logo ganhou fôlego. O primeiro encontro das maestras foi organizado naquele mesmo ano na capital paulista, e a quarta edição do simpósio, batizado de Women Conductors, aconteceu há dois meses, em Buenos Aires, com 218 participantes de 24 países.
Na capital argentina, os debates abordaram temas como a construção de carreira de uma regente e os desafios para a vida familiar. Além de participar de algumas discussões, Amadio deu um curso de regência e conduziu a Sinfônica Nacional do país na interpretação de uma obra da argentina Irma Urteaga -"não fosse por esse concerto, eu jamais teria conhecido essa grande compositora".
Aliás, a presença de mais compositoras no repertório da OSMG é um dos objetivos de Amadio, que está concluindo os detalhes da programação do ano que vem. Essa busca, porém, ainda depende muito de "esforço pessoal", afirma. "Há poucas iniciativas sistematizadas de divulgar o trabalho de compositoras. Isso não é ensinado para a gente nas faculdades. As compositoras sempre existiram, mas nunca estiveram presentes de maneira flagrante."
Amadio cita, então, mais de dez compositoras brasileiras de música clássica e ressalta duas delas: Marisa Rezende, cuja obra será lembrada num dos concertos de 2024, e Jocy de Oliveira.
No final da entrevista, ela admite um certo cansaço na busca por uma presença maior das mulheres à frente das orquestras. Quem sabe um dia, ela imagina, teatros e casas de ópera tenham mais maestras em ação e, assim, simpósios como Women Conductors percam a razão de ser.