Apesar de ter a idade de um senhor, aos 45 anos a tribo de atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz se mantém com o mesmo espírito de um jovem ciente de que ainda existem muitas coisas a descobrir. Isso se revela na presença da performance que se mantém até hoje no trabalho do grupo, bem como a capacidade de correr riscos (leia-se arriscar na cena) e buscar, constantemente, realizar algo que nunca fez.
Fundado em plena ditadura militar, o coletivo sempre refletiu sobre a contemporaneidade. Começou a ser gestado no final de 1977, com o encontro de jovens artistas descontentes com o teatro que se fazia em Porto Alegre e no País. O ano tinha sido marcado por uma grande ebulição social com a volta das manifestações de rua exigindo liberdades democráticas e anistia aos presos e exilados políticos. Viviam-se, ainda, tempos de intolerância e repressão policial instalada no Brasil em abril de 1964.
Dedicado à ideia de um teatro de ruptura e invenção, que ocorresse fora das salas convencionais de espetáculos (com palco italiano e plateia fixa), o grupo idealizado pelo atuador e diretor Paulo Flores e o dramaturgo Julio Zanotta, com a contribuição inicial do ator e diretor Rafael Baião (que na época, assim como Flores, ainda era estudante do curso de Teatro da Ufrgs) fez suas primeiras encenações - A divina proporção e A Felicidade não esperneia Patati Patatá, duas peças curtas de Zanotta - no dia 31 de março de 1978, em um espaço alternativo localizado na rua Ramiro Barcelos. Ambas criticavam o capitalismo, abordando o processo de desumanização que o homem sofre pela violência da sociedade consumista. De lá para cá, o Ói Nóis se consolidou por movimentar a cena teatral, quebrando paradigmas e rompendo conceitos - não somente estéticos, mas também estruturais.
"Foi um dos primeiros grupos de teatro cooperativista na Capital, com atuadores-criadores: mudou aquela ideia de um produtor e um diretor que chamam um elenco para fazer uma peça, e acredito que inspirou a criação de outros coletivos do gênero", avalia Flores. Segundo ele, a ideia inicial era combater a ditadura através da arte. "Depois, veio a vontade de criar na cidade um local de arte libertária - princípios da origem do Ói Nóis, que buscamos ampliar através de uma sede própria, que denominamos Terreira da Tribo, e que passou a existir na José do Patrocínio, em 1984", recorda.
Na época em que foi estabelecido, o Ói Nóis se debruçava sobre uma questão básica, que, no entender de seus idealizadores, ainda não tinha sido suficientemente explorada por nenhum grupo atuante: a relação ator-espectador. A questão se somava a uma série de regras que aqueles artistas estavam dispostos a rever, e se necessário, romper, para estruturar sua própria estética. Desta forma, escolhas como atuar sem a "quarta parede", fora do palco, ocupando uma casa toda, e inclusive indo para a rua (hoje bastante usuais) surgiram dentro da Tribo de Atuadores, que também se propunha a "criar um corpo específico para a cena" e apresentar um teatro de "vivência".
Em oposição aos ensinamentos da escola tradicional, o grupo optou, naquele momento, por reduzir significativamente o uso do texto e supervalorizar o gesto. Realizando um teatro de pesquisa dramatúrgica, musical e plástica, centrou seu estudo na relação ator-espectador e no processo de criação coletiva, com espetáculos de sala e de rua. Também passou a definir o ator como "atuador" - fusão de artista com ativista político, cuja atuação não deve ficar restrita ao palco e, sim, comprometida com a realidade.
Transgressores e libertários
Paulo Flores e Tânia Farias, principais responsáveis pela Terreira da Tribo
ANA TERRA FIRMINO/ARQUIVO/JCSe tratando de repertório, desde seu início (anda sob influência do Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa) a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz voltou-se, principalmente, para temas políticos e essencialmente ligados à realidade brasileira. Uma das maiores críticas do grupo à produção local na época em que foi criado era com relação aos espetáculos voltados apenas ao entretenimento do público, em um momento em que a sociedade rediscutia o País. Surgiram, então, montagens como O Amargo Santo da Purificação, criação coletiva baseada em Sartre, Allen Ginsberg e Renato Tapajós, que trata da guerrilha no País e que foi censurada em 1980.
Uma nova versão da peça foi remontada para a rua anos mais tarde, apresentando uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella. Premiada como o Melhor Espetáculo do Teatro Gaúcho em 2009, também recebeu os prêmios Açorianos de melhor produção, figurino, trilha sonora (Johann Alex de Souza) e melhor atriz (Tânia Farias). Outras duas peças políticas do grupo se destacam, entre as tantas de sua vasta produção: A Saga de Canudos (2000) e Caliban - A Tempestade de Augusto Boal (2017).
"O Ói Nóis é um coletivo teatral militante", define a atuadora e produtora Tânia Farias. "Mesmo sendo um grupo anarquista, no decorrer de sua história nunca se mixou para defender a democracia, e o fez sempre que necessário, a exemplo (citando fatos mais recentes) de quando foi para as ruas em prol da presidenta Dilma (Rousseff) contra o golpe machista e misógino; quando esteve nas ruas contra (Jair) Bolsonaro - mesmo durante a pandemia de Covid-19 -, e se manteve atuante, participando de marchas e fazendo campanha para eleger o presidente Lula", emenda. "Também é um grupo com trajetória feminista, que faz teatro anti-machista e anti-missógino, e tem o compromisso de lutar, com o teatro, contra a série de barbáries e preconceitos (que ocorrem na sociedade)."
"Por várias vezes, o Ói Nóis também foi para as ruas se manifestar em prol do meio ambiente e, inclusive, certa vez o Iberê Camargo criou uma série ecológica inspirado nessas intervenções", completa Paulo Flores. Ele destaca que o grupo passou a realizar performances e intervenções cênicas nas ruas em 1981, para levantar assuntos "que não estavam no dia a dia da mídia brasileira", chamando a atenção para os riscos do uso de usinas nucleares e de agrotóxicos, por exemplo. Com seus espetáculos políticos, já fez turnês pelo Brasil e se tornou um dos principais grupos de pesquisa em teatro do País. No teatro de rua, o grupo ainda hoje é uma referência internacional, sendo frequentemente convidado para relatar suas experiências em conferências.
Encenação ritual e mitológica
Ói Nóis Aqui Traveiz em cena de Antígona - Ritos de paixão e morte (1990)
CLAUDIO ETGES/DIVULGAÇÃO/JCDentre as 45 montagens teatrais realizadas pelo Ói Nóis Aqui Traveiz ao longo de sua trajetória, algumas foram especialmente voltadas aos mitos, a exemplo dos espetáculos Antígona, Ritos de Paixão e Morte (1990), Missa para Atores e Público sobre a Paixão e o Nascimento do Dr. Fausto de Acordo com o Espírito de Nosso Tempo (1994), Aos Que Virão Depois de Nós — Kassandra in Process (2001) e Medeia Vozes (2013).
A série de peças integra um dos diversos nichos do grupo, denominado Projeto Raízes do Teatro. Iniciada em 1990, essa linha de pesquisa investiga o teatro ritual de origem artaudiana e performance contemporânea. "Antonin Artaud é a principal referência e a grande inspiração do grupo", destaca Paulo Flores. Ele explica que os preceitos do Teatro da Crueldade (que busca abalar as certezas adotadas pela sociedade), o retorno aos vellhos mitos; o espaço utilizado em todos os planos possíveis e em todos os graus de perspectiva, em profundidade e em altura; a criação de uma linguagem física à base de signos e não mais de palavras, o envolvimento material do espectador, mantendo este em um banho constante de luz, imagens, movimentos e ruídos, sempre se fizeram visíveis em maior ou menor dimensão em todos os estágios da trajetória do Ói Nóis.
"Ao mesmo tempo, nunca deixamos de lado toda a questão política que Bertolt Brecht nos traz", pondera o atuador e um dos fundadores do coletivo artístico. "Nosso trabalho é uma fusão destes dois pensadores do teatro do século XX. São nossas maiores influências, mas têm outros vários que nos acompanham", emenda. "O Ói Nóis também é fruto do teatro revolucionário norte-americano, das experiências latino-americanas (inclusive de mulheres) de criações coletivas, digerindo muitos pensamentos para criar o seu próprio teatro, com muitas referências e influências", completa Tânia Farias.
Mostra de vasto repertório
Encenações de rua são parte fundamental do espírito do grupo teatral
acervo TERREIRA DA TRIBO/REPRODUÇÃO/JCNo decorrer de 2023, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz vem celebrando seus 45 anos ininterruptos de teatro, promovendo uma extensa programação gratuita, que - entre outras atividades - contou com mostra de repertório no primeiro semestre. De março a abril, foram apresentados seis espetáculos (incluindo os três mais recentes, Quase Corpos: Episódio 1 – A Última Gravação, M.E.D.E.I.A. e Manifesto de uma mulher de teatro!), além do curta-metragem Ubu Tropical. Primeira realização cinematográfica do grupo, o filme aborda o pensamento fascista, o ódio e a intolerância que atravessam o Brasil na contemporaneidade e é ponto de partida para a nova encenação de teatro de rua do coletivo.
Sob o mesmo título do filme, a montagem está em processo de ensaios e terá como como protagonista o personagem do Pai Ubu, criado no final do século XIX pelo francês Alfred Jarry, precursor do surrealismo e do teatro do absurdo.
Entre outras ações em curso, o grupo - que realiza Oficinas Populares de Teatro, Oficinas de Teatro de Rua e Jogos Lúdicos Para Crianças - segue com suas atividades de formação e ainda promoveu, no primeiro semestre, Residências Artísticas em sete Territórios Culturais parceiros, entre os quais a Comunidade Indígena Teko Jeapo (Maquiné), o Meme Estação Cultural, o Afrosul Odomodê e oTablado Andaluz (estes, em Porto Alegre). Também no primeiro semestre, realizou um seminário virtual com a participação dos grupos mais importantes de teatro do Brasil.
Recentemente, a encenadora Tânia Farias esteve em Portugal, dirigindo o espetáculo Sobre Rosas e Margaridas, projeto de criação do Teatro da Folha de Medronho, dentro do Festival Política 2023 em Loulé.
"Toda essa programação integra o projeto Arte Pública, que em 2022 já havia promovido uma primeira mostra de repertório", detalha a atuadora. Ela adianta que os próximos meses reservam, ainda, mais novidades. "A memória é muito importante para nós. Além de publicarmos a revista Cavalo Louco, um espaço de reflexão e de pensamento (distribuída em escolas de teatro e coletivos do Brasil), ainda mapeamos os principais coletivos longevos de teatro no País, fomos até lá, entrevistamos eles (que nos contaram suas histórias e também sobre suas ações para preservar tudo isso)", conta. "Isso vai se transformar em um livro, uma exposição fotográfica e um documentário."
Ainda dentro do projeto Arte Pública, será criado o Museu da Cena Ói Nóis Aqui Traveiz. "Já temos o Repositório Digital, que conta com a primeira coleção - que é dos cartazes de espetáculos. É um precedente importante para a memória do teatro", avalia Tânia. Segundo a atuadora, o museu deverá ser lançado em um espaço que o grupo tem cedido na Zona Sul. "Será um espaço multi-atividade, para oficinas, rodas de conversa para pensar a memória, com vestígios de cenários, figurinos, máscaras, material jornalístico, fototográfico, coleções bidimensionais e tridimensionais", resume. "É um passo para a memória do teatro brasileiro, que vai ser dado aqui em Porto Alegre, e que transcende o Ói Nóis."
A tribo de atuadores
Tânia Farias em Medeia Vozes, papel que rendeu o Açorianos à atuadora
PEDRO ISAIAS LUCAS/DIVULGAÇÃO/JCConstituída, atualmente, por 24 pessoas trabalhando diariamente, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz conta com profissionais que, além de intérpretes, têm consciência sobre o modo de produção, "sabem como é feito o processo e ajudam em diferentes funções", destacam Paulo Flores e Tânia Farias.
A dupla integra um núcleo de dez pessoas (incluindo, ainda, Aline Ferraz, Clélio Cardoso, Eugênio Barboza, Keter Velho, Lucas Gheller, Márcio Leandro, Marta Haas, Roberto Corbo) responsáveis por garantir a administração sistemática do trabalho do coletivo, dedicando-se à formatação de projetos, organização da contabilidade do grupo, manutenção do espaço, planejamento da programação, entre outras tarefas.
Flores observa que, no decorrer de sua trajetória, o grupo foi colocando para si mesmo compromissos com a cidade, como chegar no público que não vai nas salas de espetáculos (mesmo com entrada franca ou ingressos populares). "Então, além de levar apresentações de peças nas ruas e praças, também começamos com oficinas sistemáticas de teatro", comenta.
Assim, foram criadas diversas ações do gênero, sendo que entre as principais estão os projetos Caminho Para um Teatro Popular e Teatro Como Instrumento de Discussão Social.
Assim, foram criadas diversas ações do gênero, sendo que entre as principais estão os projetos Caminho Para um Teatro Popular e Teatro Como Instrumento de Discussão Social.
O primeiro surgiu em 1988 e trata -se de um circuito regular de apresentações em praças, bairros e vilas populares de Porto Alegre. "Esta ação tem como principal objetivo democratizar o espaço da arte, oportunizando vivências e reflexões para um público sem acesso aos meios culturais hegemônicos", observa Tânia. Já o segundo projeto consiste em oficina teatral, que trabalha com improvisação, expressão corporal, interpretação e jogos dramáticos, além da elaboração de exercícios cênicos.
"O teatro amplia a cabeça e a mente para tantas coisas: se um espetáculo proporciona isso, imagina fazer teatro, ter a oportunidade do corpo experimentar estas possibilidades", comenta Flores. "Isso nos levou para o campo pedagógico, essa é uma das nossas vertentes mais fortes: difundir o teatro através do teatro pedagógico, de atuar nas comunidades que moramos."
Com essa ideia, formar atuadores (fusão das ideias de ativista e artista) dentro do Ói Nóis é mais que pasar por oficinas, mas também participar de diferentes fóruns e movimentos sociais, complementa Tânia. "Esse artista, consciente do seu papel dentro da sociedade – e dentro do teatro – tambem tem consciência de tudo que envolve a encenação. Nunca ele vai ser apenas um intérprete de um personagem, mas vai, sim, participar e ter consciência de como se concebe e como se cria um espetáculo."
"Toda esta cena foi só ampliando, e estamos cada vez mais comprometidos com isso tudo. Se queremos transformação, temos que estar o mais presente possível em todas estas esferas", emenda Flores. Com as três oficinas de bairro, uma oficina de formação que ocorre todos os sábados, a oficina de teatro para crianças (Jogos Lúdicos) e outras oficinas que acontecem pontualmente, o grupo já formou centenas de pessoas, contabiliza o atuador.
Dentro deste olhar pedagógico e de compartilhar, recentemente o Ói Nóis ainda passou a abrir seu espaço de trabalho para que ocorram intercâmbios e trocas, com apresentações de diversos artistas, a exemplo do que aconteceu durante a programação de aniversário de 45 anos.
Despedida do ícone "Zé da Terreira"
Falecido em novembro, Zé da Terreira esteve presente nos primórdios do Ói Nóis
FRANCISCO FONTANIVE/DIVULGAÇÃO/JCCentro de produção e apresentações do Ói Nóis, a Terreira da Tribo ocupa lugar de destaque entre os espaços culturais do Estado, sendo apontada como uma referência de âmbito nacional. O local (situado na rua Santos Dumont, na Capital) onde acontece a articulação junto à sociedade para cativar outros atores sociais e políticos em prol dos ideais que o grupo apregoa também serve de lugar de convivência dos atuadores.
Por lá, passaram muitos artistas conhecidos do público, a exemplo de ex-integrantes do coletivo como Arlete Cunha, José Carlos Carvalho, Fernando Kike Barbosa, Paulina Nólibos, Sandra Possani, Sérgio Etchichury, Túlio Quevedo, entre muitos outros. Um dos mais notórios foi José Carlos Gonçalves Peixoto da Silva, conhecido como Zé da Terreira, figura presente na cena cultural da cidade.
Falecido no último dia 7, aos 78 anos, vítima de uma doença autoimune, "Zezão" (como era chamado carinhosamente pelos colegas e amigos) foi velado na última sexta-feira (10) na Terreira da Tribo. Em seu ritual de passagem houve canto, dança e celebração, em uma homenagem de amigos e admiradores, que fez jus ao estilo de ser e viver do cantor e ator, que participou do início do teatro de rua da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, integrando o elenco de Exceção e a Regra, de Bertolt Brecht.
* Adriana Lampert é jornalista, atriz e radialista. Integra a equipe de reportagem do Jornal do Comércio desde 2010.