Maçambique: gênero musical afro-gaúcho ganha espaço em festivais

Com origem quilombola, maçambique vem ganhando festivais há 30 anos

Por JC

Músicos como Loma, Kako Xavier e a banda Tribo Maçambiqueira são inspirados pela cultura tradicional do maçambique
João Vicente Ribas, especial para o JC
Casa por casa, da zona rural em direção à urbana, os maçambiqueiros descem o morro, convidando todos a participar. Levam no carro de boi a comilança, as roupas brancas e a imagem da santa. Sua devoção à Nossa Senhora do Rosário expressa-se no trupicar dos tambores, no chocalhar das maçacaias e no cântico que ecoa até chegar à igreja em Osório, no Litoral Norte gaúcho.
A comunidade do quilombo do Morro Alto está na origem dessa congada que remonta ao período colonial e se mantém viva através de gerações. Tanto, que acabou inspirando uma série de artistas que compõem canções e levam seu ritmo para cima do palco. O maçambique passou a se fazer presente nos festivais nativistas há 30 anos, a partir da  

Cultura de raiz

João Vicente Ribas, especial JC *
A cantora Loma Pereira despertou o desejo de conhecer suas raízes quando estava trabalhando no Rio de Janeiro. "Eu me dei conta que a minha raiz estava perdida, como é bem comum para os homens e mulheres negras", conta. Então, voltou para o Rio Grande do Sul decidida a resgatar suas origens a partir do Litoral, pois sua mãe é de Santo Antônio da Patrulha. "Eu percebi que ali a manifestação negra existe, mas era invisibilizada, e encontrei em Osório, muito perto, o maçambique, uma relíquia que a gente tem enraizada", diz.

Materiais produzidos para o audiovisual

 Gema - Episódio 3
Série idealizada pelo produtor Lucas Luz, que lançou a primeira temporada para contemplar a diversidade musical do Rio Grande do Sul. O capítulo 3 foi dedicado ao Maçambique de Osório, com depoimento do chefe-de-tambor Faustino. Selecionado no edital Natura Musical: https://www.youtube.com/watch?v=wtj7KT8nWeo
 Moçambique - Osório 1977-1978
Documentário recém digitalizado pelo IFRS, realizado originalmente em super 8 pelo folclorista Carlos Galvão Krebs, durante os últimos anos do reinado de Maria Teresa Joaquina de Oliveira. Mostra a cidade de Osório e a cerimônia de coroação. Precioso documento histórico de 12min: https://memoria.ifrs.edu.br/audiovisual/documentario-mocambique-osorio-rs-1977-1978/
 Tribo Maçambiqueira - 20 anos
WebDoc com histórias dos integrantes da Tribo Maçambiqueira e performances musicais exclusivas. Inclui entrevistas com músicos como Paulinho Dicasa, Mário Duleodato, Loma e Ivo Ladislau. Financiado pela Lei Aldir Blanc e lançado em 2022, com direção de Andrei Sperandir: https://www.youtube.com/watch?v=fIaxqhuO5ls
 

Tradição passada de mãe pra filha

"O tambor tá batendo, ele tá repinicando. São seus dançantes, sinhô, que o tambor tá chamando". Esse canto dá início aos quatro dias de festas do mês de outubro, para agradecer à santa padroeira, Nossa Senhora do Rosário, pelas graças alcançadas.

Origens no Morro Alto

O quilombo era formado por seis famílias, com mais de dez filhos cada, que plantavam, criavam gado e porcos. Mas da vida em meio à natureza, seguiu-se um período de necessidade. Nos anos 1970, começou a funcionar no pé do Morro Alto uma pedreira que explodia dinamite. "A gente teve que sair, estava correndo risco de vida. Tinha muita poeira e a gente não conseguia mais água em cima do morro", lamenta Francisca.

Valorização e preservação

A prefeitura de Osório publicou duas leis, entre 2018 e 2019, que visam salvaguardar o maçambique. Com elas, declarou-se patrimônio imaterial e de interesse público - mas, atualmente, os organizadores enfrentam dificuldades para promovê-lo a cada outubro

Glossário maçambiqueiro

Alumiar: é quando um griô, que detém os saberes e fazeres ancestrais, indica seu sucessor antes de falecer.
Banto: grupos linguísticos e culturais africanos que foram escravizados e atuaram no cultivo da cana-de-açúcar no Litoral Norte gaúcho.
Maçambique: congada, auto popular, ritual afro católico de devoção à Nossa Senhora do Rosário, que envolve dança e musicalidade singular.
Maçacaia: chocalho preso acima da panturrilha para dançar o maçambique. Feito de fios de cipó ou taquara trançados, como balainhos com sementes de caeté dentro, também chamadas de "lágrimas de Nossa Senhora".
Rainha Ginga: ressignificação, no folclore gaúcho, da soberana Nzinga Mbândi Ngola Kiluanj, rainha de Angola e Matamba no século XVII. Sua representação em Osório se dá por meio de rituais maçambiqueiros. O reinado da Rainha Ginga é a autoridade máxima das congadas.
 

Tambor rufado, tambor trupicado

O músico Mário Duleodato remonta à infância para contar sua vivência com o maçambique: "Tambor e criança sempre deu certo, né? Então, sempre tive essa vontade, quando via ali os tamboreiros e notava que tinha um tambor que trupicava diferente". Então, começou a se familiarizar com o ritmo, observando o tio Pedro Serafina, que tocava o rufado. Em pouco tempo, já estava com um tambor nas mãos acompanhando.
Ao lado de Paulinho Dicasa, o percussionista formou há 20 anos a Tribo Maçambiqueira.
Toda vez que sobe ao palco, toca o tambor que herdou de seu pai, confeccionado em 1974. Para prepará-lo para as apresentações, segue a tradição e espicha uma corda com uma perninha de galinha, que vibra atrás. "O respeito que eu tenho pelo tambor maçambiqueiro é muito grande", assegura.
Duleodato faz questão de contar as histórias que ouvia dos mais velhos, como a dos negros que naufragaram no nosso litoral, pouco antes da abolição. Alguns conseguiram chegar na praia e se salvaram, passando a se abrigar nos capões de mato. O local começou a ficar conhecido como Capão da Negrada, onde também confeccionavam canoas. Daí teria surgido o nome Capão da Canoa, de onde o quilombo teria se originado.
 

Tribo Maçambiqueira

O parceiro de Duleodato, Paulinho Dicasa, é cantor e compositor, músico conhecido nas praias e rodas de pagode do Litoral. Sua formação vem do samba de raiz. Hoje, aos 66 anos, lembra que se interessou pelo maçambique quando conheceu Carlos Catuípe. "Ele trouxe um movimento em cima do ritmo do tambor e me incentivou a compor minha primeira canção", recorda. Então, criou Nega Maçambiqueira para inscrever na Tafona da Canção, em 1998, e acabou ganhando dois prêmios. Na ocasião, tocou cavaquinho, misturando maçambique com samba.
A partir dali, passou a frequentar os festivais e a estudar as diferentes batidas que seu parceiro Duleodato sabia tocar. Já nas letras, procura sempre falar da região, do morro, da cidade e de suas memórias. Cresceu na região de Palmares e passava os verões em Osório. "Eu conhecia tudo aquilo com 12 anos, andava de cavalo e de carroça por tudo, avistava o Morro Alto de longe e imaginava que pro outro lado havia um peral e acabava tudo".
 

CD raro

Uma relíquia fonográfica que permanece inédita nas redes digitais guarda um dos mais importantes registros do gênero. O disco Trupicado, da Tribo Maçambiqueira, lançado em 2016, com produção de Kako Xavier, está disponível somente no formato CD. Um artigo raro, de poucas cópias, difícil de ser encontrado para venda. Muitas das canções foram premiadas em festival e receberam arranjos baseados no violão, valorizando os tambores e as vozes, gravados pelos integrantes Paulinho Dicasa, Mário Duleodato, Cau Silva e Géf Lima.
 

Música negra no meio nativista

Kako Xavier é o único artista que pode dizer que foi três vezes ao festival Musicanto e ganhou as três, interpretando as canções: Senhora Rainha Negra (Beto Bolo/Ivo Ladislau/Kako Xavier, 1994), Maçacaia (Beto Bollo/ Ivo Ladislau/ Luis Carlos Martins, 1995) e Prece e canção (Hércules Greco/ João Pernambuco, 2007). Todas com letras que fazem referência à congada e com ritmo derivado do maçambique.
Loma recorda que o arranjo de Maçacaia, que cantou junto a Kako, era uma fusão de levadas do Litoral e empolgou o grande público presente em um ginásio em Santa Rosa. Com a vitória, foram a Cosquín, participar do maior festival de folclore da Argentina. "Levamos, porque era parte da premiação. Eles amaram! Foi uma grande novidade!", avalia.
Reverenciando o Maçambique de Osório, Kako Xavier lamenta que muitas das tradições afro no Brasil se perderam ou estão ameaçadas. "Eu entendo o maçambique com uma resistência mais sólida, a festa de Nossa Senhora do Rosário se faz presente todos os anos", afirma. Kako também saúda o fato de que o Maçambique é liderado por uma mulher, e que a coroa passa de mãe pra filha. "A atual Rainha Ginga, a Francisca, vem fazendo um trabalho muito bacana e importante, trazendo os jovens", elogia.

assinatura

*Jornalista, professor na Universidade de Passo Fundo e apresentador do programa Canciones para Despertar en Latinoamérica, na Rádio UPF.