Brasília não foi construída no meio do nada. Os sinuosos edifícios brancos de Oscar Niemeyer subiram em território de quilombolas e indígenas, dois povos que acabaram expulsos para a periferia com a imposição da cidade modernista.
A tese de que a capital do Brasil é fruto de um processo de colonização territorial serve como ponto de partida para o projeto a ocupar o pavilhão brasileiro na próxima Bienal de Arquitetura de Veneza, uma mostra de arquitetura com projeção mundial que abre para o público em 20 de maio, como explica João Perassolo para a Folhapress.
Ao questionarem o projeto da cidade do futuro no cerrado, os arquitetos e curadores do pavilhão, Gabriela de Matos e Paulo Tavares, propõem um olhar para o que chamam de arquiteturas ancestrais, ou seja, as realizadas por comunidades afrobrasileiras e indígenas.
Embora ambas tenham presença marcante no panorama do país, eram até pouco tempo invisibilizadas dentro do que se entende como arquitetura brasileira, afirma Matos.
O pavilhão será dividido em duas salas. A primeira, Descolonizando o Cânone, problematiza a história oficial de Brasília com uma seleção de fotos de arquivo organizada pela historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, um vídeo da cineasta Juliana Vicente e a exposição de dois mapas, um comissionado para a mostra, Brasília Quilombola, e outro dos anos 1940 atualmente usado pelos indígenas para reivindicação de direitos territoriais.
A segunda galeria, Lugares de Origem, Arqueologias do Futuro, reflete sobre o papel da terra como crucial na arquitetura brasileira. Os curadores defendem que o solo é o elemento comum nos terreiros das religiões de matriz africana e também nas estruturas indígenas.
Tanto em uma quanto em outra, "a natureza é parte, não apartada", diz Matos. "Isso passa pela organização do espaço, por causar o menor dano possível no entorno e também pelo sistema construtivo que é utilizado."
Nesta galeria serão mostrados terreiros de Salvador e um vídeo do artista Ayrson Heráclito sobre edifícios na capital baiana ligados a história da escravidão, construções que dialogam com o tema desta 18ª bienal, que versa sobre descolonização e descarbonização na arquitetura do amanhã.
Os curadores resolveram estender sua discussão para a própria edificação do pavilhão brasileiro, localizado no Giardini. O piso será todo coberto por terra e a fachada vai receber gradis com o símbolo africano do sankofa - um pássaro que olha para trás antes de projetar o futuro -, ornamento comum em portões de casas brasileiras. A proposta, com caráter de reparação histórica, está conectada com o pós-Black Lives Matter, segundo Tavares, o curador.
Intitulada O Laboratório do Futuro, a bienal deste ano dá papel central à África. Dos 89 participantes da mostra principal, mais da metade tem origem no continente ou vem da diáspora africana. Segundo a curadora, a acadêmica e arquiteta ganense-escocesa Lesley Lokko, a ideia é usar exemplos do continente africano para debater o que acontece no mundo todo.
A exposição organizada por Lokko gira em torno da diversidade e da inclusão de vozes marginalizadas na arquitetura e debate o que seria um futuro com cada vez menos carbono.
"(A África é) o continente com a população mais jovem do mundo, a urbanização mais rápida, crescendo a uma taxa de quatro por cento ao ano, muitas vezes às custas dos ecossistemas locais - portanto, também estamos na vanguarda das mudanças climáticas", disse Lokko.
Folhapress