Colaborador da redação do jornal Estadão, em 1917 o escritor Monteiro Lobato passou a instigar os leitores com uma série de perguntas sobre o que chamava de Mitologia Brasílica: eram três perguntas questionando sobre a concepção que cada um tinha do Saci, uma vez que essa figura folclórica aparecia de diferentes formas nas regiões do Brasil. O retorno surpreendeu, com muitas cartas chegando de diversos pontos do País.
Diante de farto material, Lobato trabalhou os depoimentos recebidos e publicou, em 1918, seu primeiro livro, O Sacy-Pererê, Resultado de um Inquérito, com 300 páginas. Ele não assinou com o próprio nome (preferiu Demonólogo Amador), pois utilizou "material de outros", escrevendo apenas prefácios, comentários, epílogos. Em 1921, Lobato volta ao tema, agora mirando o público infantil, e publica O Sacy, com ilustrações de Voltolino. "Trata-se de uma raridade, que constantemente desperta o interesse de pesquisadores e de todos os 'filhos de Lobato'", observa o designer Magno Silveira, cuja admiração pelo escritor o levou a um grande feito: lançar uma edição facsimilar da primeira edição de O Sacy.
Para isso, ele fundou uma editora, a Graphien, e o resultado são 1.500 exemplares de um trabalho rigorosamente fiel ao original. O livro inicialmente está à venda via site da editora (graphien.com.br) e haverá lançamento na Livraria Martins Fontes (em São Paulo), no dia 21. A importância da obra é reconhecida por pesquisadores. "Em 40 páginas, Lobato leva as crianças para um incrível passeio pelo capoeirão dos tucanos, guiadas pelo duende de capuz vermelho, onde conhecerão de perto lendas e mitos brasileiros", aponta Vladimir Sacchetta, em um dos textos publicados como posfácio na edição facsimilar.
Segundo ele, Lobato se interessou pelo personagem ao investir em uma discussão que dominava o mundo intelectual da época, o do nacionalismo x estética europeia importada, assunto que lhe era muito caro. O escritor se indignava com estátuas de pequenas figuras germânicas que, segundo ele, ocupavam o lugar dos mitos brasileiros nos parques públicos de São Paulo. E, como o Saci ganhava diferentes formas de acordo com a região brasileira, ele decidiu fazer a consulta nas páginas do Estadão.
"Minha ideia de menino é que o Saci tem olhos vermelhos, como o dos beberrões, e que faz mais molecagens que maldades, monta e dispara os cavalos à noite - chupa-lhes o sangue e embaraça-lhes a crina", descreve Lobato em carta trocada com Godofredo Rangel, seu colega na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. A partir da pesquisa com leitores, ele forjou o seu duende brasileiro: menino preto, de uma perna só, carapuça dourada e pequeno cachimbo na boca.
No livro O Sacy, Lobato utiliza seus personagens que logo se tornaram clássicos (Pedrinho, Narizinho, Dona Benta, Tio Barnabé) para tratar do personagem que assusta as crianças. "Para fazer do Saci uma figura heroica - além de divertida, como as personagens dos álbuns franceses - sem apagar seus traços essenciais, divulgados nas lendas conhecidas no Sudeste, Lobato cria uma narrativa densa, por meio da qual explora diferentes pontos de vista sobre o 'diabinho' brasileiro", observa a pesquisadora Cilza Carla Bignotto, em outro texto do posfácio.
Segundo a escritora e crítica Marisa Lajolo, Lobato pegou carona nas diferentes linguagens artísticas que expressavam desejo de ruptura com padrões culturais europeus, no início do século 20, "desenvolvendo sua longa saga de histórias infantis profundamente brasileiras" e substituindo as figuras estrangeiras por outras, "do folclore brasileiro, como o Saci, a Cuca e a Iara, que esperam o leitor na história de Pedrinho e do Saci".