Espaço inquieto e questionador por excelência, o cartum propõe uma relação direta entre o desenhar e o desdenhar. É como o camponês que não apenas vê que o rei está nu, mas se põe a ridicularizar e dar gargalhadas da situação; a risada é, em muitas situações, um espaço de desafio, e disso um cartunista sabe muito bem. Fiel a essa disposição, o cartunista Santiago lança seu Caderno de desdenho (Libretos, 140 pág, R$ 45,00) - uma obra que coloca o trocadilho em ação com muita coerência, para dizer o mínimo.
O livro reúne o melhor da produção de Santiago nos últimos 30 anos, incluindo desenhos inéditos. A obra inclui 16 cartuns vencedores em salões nacionais e internacionais. Na semana que vem, mais precisamente no dia 10 de março, o autor estará autografando exemplares do livro no Espaço Amelie (Vieira de Castro, 439), a partir das 17h30min.
"O humorista, o desenhista de humor é o cara que está sempre desdenhando de tudo: dos governos, das instituições, das hipocrisias sociais, dos preconceitos, da ignorância", enumera Santiago. "A postura do humorista beira ao anarquismo político, duvidamos e desrespeitamos tudo. Claro que também existe lugar para o humor do riso pelo riso, afinal, rir é uma necessidade e um dos grandes prazeres humanos. Mas o humorista que se pretende crítico e engajado precisa ter por norte cutucar as feridas, incomodar os poderosos". Um caminho que Santiago (ou Neltair Abreu, como o chamariam aqueles que não tenham intimidade alguma com ele) segue em virtualmente todas as ilustrações presentes no volume.
Para alguém tão acostumado a "desdenhar com muito empenho", como diz o próprio, escolher quais obras entrariam em Caderno de desdenho poderia ter sido trabalhoso. Mas o cartunista garante que a coisa foi mais fácil do que parece. "Claro que, em alguns momentos, pintam uns dilemas. Mas, em geral, aqueles trabalhos em que eu mais me empenhei se impõem no meio dos que considero desimportantes. Também venho gestando a seleção há vários anos - eu já tinha o título, só precisava rechear o volume. Ainda aconteceu que, depois do livro impresso, me dei conta de que não incluí pelo menos um cartum importante. Tudo bem, entra numa próxima coletânea!"
Cutucar onças com vara curta é um tão esporte divertido quanto arriscado. Ser cartunista continua criando problemas, 47 anos depois? "Sempre se mexe em abelheiras quando não se está a fim de fugir das broncas. Mas, felizmente, eu nunca tive grandes problemas, a não ser perder empregos!", brinca. "Casos como processos ou ameaças nunca tive, mesmo no período ditatorial, em que trabalhei na Folha da Tarde, de grande circulação. Censura, sim, tive muitas, e essas sim me incomodam pessoalmente. É sempre uma sensação de ser mutilado", diz.
Seja como for, motivos para usar a arte como denúncia e crítica seguem existindo. O que é bom por um lado, mas cansativo por outro, já que é também sinal de que as coisas levam bem mais tempo para mudar do que a gente gostaria. Se é que mudam. "Claro que o mesmo vigor (da juventude) não se tem mais, mas a indignação que move um crítico continua e os fatos também não dão muita trégua. Porém, sinto às vezes uma coisa que o (chargista argentino) Quino já tinha dito: uma certa decepção sabendo que os absurdos que criticamos continuam acontecendo da mesma maneira que quando começamos a carreira."
Se todo cartum tem a vocação para ser uma pedra no sapato, estamos em um momento no qual todo cartunista precisa ter vocação para a teimosia. Afinal, o formato meio que pertence ao impresso por excelência, quase como se exigisse uma virada de página para aparecer em sua plenitude - um problema na medida em que, como sabemos, há cada vez menos impresso pelo mundo. "Não se ganha nada com os desenhos postados na internet, e a sobrevivência dos desenhistas se tornou dificílima. Não existem mais editoras, empresas que paguem por um desenho. Hoje a charge - pra não perder a piada - não tem mais papel, porque os impressos sumiram!", lamenta, mas sem perder o deboche. "Mas, falando sério, a missão da crítica desenhada é muito importante nesse momento de fortalecimento do pensamento fascista intolerante e do simplismo de ideias que levaram à terrível situação nacional. É preciso, sim, botar a boca no trombone - ou a pena na cartolina, ou o mouse na mesa gráfica - e ocupar todos esses espaços que a internet nos oferece. Observo e admiro a proliferação dos memes, que chegam a ser, às vezes, melhores que as charges".