O escritor Fabrício Carpinejar tinha um projeto de lançar algo para comemorar os 30 anos de literatura de sua mãe, completados em 2020, o ano do isolamento social, que Maria Carpi cumpriu à risca - pelos dois avisos-prévios que ela diz ter. O primeiro é coletivo, pela pandemia; o segundo, pessoal, pela sua idade avançada, a "adolescente de 81 anos de pernas bonitas".
A ideia inicial era uma obra dos dois, a quatro mãos: "Mas daí me dei conta de que ela está em mim". Escolheu, então, abordar a coragem de viver, e para ter um exemplo concreto, provar que essa ideia existe, resolveu falar da pessoa mais corajosa que conheceu. Coragem de viver (Planeta, 160 págs., R$ 46,90 e R$ 30,90 em e-book) é um livro de memórias das lições que o autor aprendeu com uma das mais respeitadas poetas contemporâneas brasileiras, e também de recordações de sua mãe disseminadas durante as décadas.
Maria Carpi é a “metáfora viva da valentia”, e Fabrício Carpinejar - seu filho - pode, sim, afirmar com propriedade. Mas eu posso concordar do conforto da distância dessa relação familiar, reafirmar de uma posição de admiradora como leitora e ratificar pela relação profissional que já tive de divulgar alguns títulos desta visceral poeta.
O lançamento da editora Planeta é uma homenagem ao modo de Maria ver o mundo, e não uma biografia, o autor adverte na apresentação da publicação: "mas a biografia do amor de seu filho pela sua mãe". Sim, Fabrício deve muito a ela, que lutou por ele, o alfabetizou em casa, fez ele criar gosto pelas palavras. "Se eu não fosse seu filho, seria, de qualquer forma, seu leitor, filho de seus versos."
Carpinejar tinha um pesado fardo estético para se tornar escritor. Os outros irmãos seguiram a herança do Direito, também área de formação dos pais. Carlos Nejar e Maria Carpi são grandes nomes da literatura brasileira. E o único dos seus filhos que enveredou pela escrita não fugiu dessa enorme responsabilidade, ainda juntou os dois sobrenomes para seu nome artístico.
Ele ficou famoso não somente pela sua irreverência, mas pelo talento em conjugar palavras e criar metáforas do cotidiano com mensagens certeiras aos leitores. (Parece ter tido uma excelente professora!) Se firmou e afirmou no mercado editorial.
Fabrício tem sido um dos grandes impulsionadores da carreira literária da mãe, lhe traz visibilidade, envolve-se editorialmente em seus lançamentos - ela, que tem dezenas de títulos inéditos prontos na gaveta. Ele conta, em Coragem de viver, que Maria foi fundamental para que a sua trajetória profissional decolasse.
Na obra, Carpinejar é muito fiel ao espírito de Maria lidar com o cotidiano, o encantamento com as flores, os pássaros, as borboletas; a faceta religiosa, o domínio da cozinha, “uma sobrevivente do mundo analógico”. É possível sentir o clima do bairro Petrópolis, na Capital, onde eles cresceram e ela ainda vive, ao folhear as páginas e visualizar as crônicas.
Ele sabe – e quem mais poderia fazer isso tão bem? – descrever perfeitamente a forma como ela dita ensinamentos, quase sussurrando, e o modo como ri de si mesma, graciosamente tímida. Algumas dessas histórias já são conhecidas dos leitores, pois foram contadas em entrevistas e conversas informais dos dois.
Com esta leitura, também enxergamos a origem do bom humor de “Bito” – como a mãe o chama –, não com gargalhadas esfuziantes, mas com uma origem particular de como enxergar os fatos. Em Tomada de consciência, há o seguinte diálogo: “– Mãe, estava preocupado, não viu as minhas ligações? – Não tinha visto, deixei a minha alma carregando”.
Inversão da lógica da herança
Fabrício Carpinejar apresenta obra de memórias para celebrar os 30 anos de poesia da mãe
RODRIGO ROCHA/DIVULGAÇÃO/JC
Coragem de viver (Planeta), além da graciosidade que traz nos textos, ainda é bem recheada de ilustrações lindíssimas de Ana Carolina (anacardia), inspiradas diretamente nos trechos. Esse elemento visual complementa de forma bastante lúdica o perfil da publicação, uma homenagem a uma mãe, mulher e profissional digna de muita admiração.
O livro poderia ser classificado como aqueles manuais para ler uma vez por dia, ao iniciar a jornada, com “pílulas de sabedoria”. É esta a qualidade que Fabrício Carpinejar destaca de Maria Carpi. A força, não, esse elogio é uma armadilha, como ele foi percebendo durante o passar do tempo.
“Minha mãe diferencia ver de perceber”, o autor afirma em Perceber é melhor do que ver. Sim, ela escreveu três cantos inteiros para o título O cego e a natureza morta (Ardotempo, 2016, 143 págs.), somando 101 poemas, sob esta perspectiva: “Adivinhar é ignorar que se conhece”.
Focando em sua mãe, Carpinejar aborda temas como superação, dor, tristeza, fé, ciúme, longevidade e sensibilidade. “As lágrimas são do corpo, os suspiros são da alma”, Maria ensina. “Minha mãe pedia: Seja firme com a tristeza para mandá-la embora, mas cordial com a dor para aceitá-la.”
Com 46 livros publicados, e mais de duas dezenas de prêmios literários (sendo Jabuti por duas vezes, mais os locais Açorianos de Literatura), o colorado Fabrício Carpinejar é um dos escritores contemporâneos brasileiros que fazem mais sucesso no País, tendo best-sellers e se apropriando com tranquilidade da televisão e das redes sociais. Seus lançamentos transitam entre gêneros diferentes, como poesia, crônica e infantojuvenil.
Segundo a editora, Coragem de viver inverte a lógica da herança - é um testamento em vida que o filho deixa para a sua mãe, Maria Carpi. Ele reconhece no livro que como escritora ela é mais desconhecida do que publicada (18 títulos editados), uma vez que mais da metade de sua obra segue inédita: são 23 livros sem previsão de lançamento. “Lembra um Fernando Pessoa de saia. (...) Ela organiza as obras como quem borda, como quem prepara um enxoval para a sua morte.”
Para Carpinejar, o público só conhece fragmentos da poeta, “a península de seu lápis”. E ele conclui: “A realidade é que eu me tornei as sobras da personalidade de minha mãe”.
Com tamanho talento desta família e deste sobrenome para as palavras a partir das coisas simples da vida, poderíamos brincar com um clichê: Carpe diem, CARPI vita!