Do ataque à diferença, podem surgir iniciativas ainda mais diversas, poderosas e inclusivas. Talvez seja essa a grande mensagem trazida pela campanha Eu sou respeito, promovida pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão/RS, do Ministério Público Federal (MPF), em parceria com o Centro Universitário Metodista IPA. Realizada com verbas provenientes de multas relacionadas ao encerramento prematuro da mostra Queermuseu, em 2017, a iniciativa traz, entre seus desdobramentos, a abertura de um edital para entidades que desenvolvam ações ligadas à comunidade LGBT e aos direitos das mulheres.
O edital prevê valores de até R$ 40 mil para cada ação, e a abertura das inscrições ocorreu na quinta-feira (14), coincidindo com o lançamento da campanha. O prazo para inclusão de projetos vai até 5 de março. Podem participar da concorrência entidades como ONGs, escolas e universidades, museus e entidades ligadas a movimentos sociais, entre outras. O edital está disponível no site eusourespeito.com.
A campanha Eu sou respeito conta, em seus materiais de divulgação, com a presença de figuras como o comentarista esportivo Márcio Chagas, a cantora Valéria Barcellos e a coordenadora do Centro de Referência Afro-Indígena do Rio Grande do Sul, Alice Martins. Além do edital, o valor obtido deve bancar três edições da Parada Livre em Porto Alegre - a primeira, prevista para o ano passado, acabou não ocorrendo em decorrência da pandemia do novo coronavírus.
"Fiquei muito feliz com os termos do edital. Ele é muito preciso, e contempla a vocação artística, política e conceitual da exposição", anima-se Gaudêncio Fidelis, curador da Queermuseu. "É muito importante estabelecer essa reparação para a comunidade artística e para a sociedade que foi privada da exposição, e também passar um recado à sociedade de que a censura não pode passar despercebida em uma sociedade democrática."
A reação de setores ultra-conservadores à Queermuseu, exposição ligada a temáticas LGBT então instalada no Farol Santander (então Santander Cultural) de Porto Alegre, tornou-se tema de intensas discussões em todo o Brasil. Após fazer uma inspeção à mostra, o MPF concluiu que as acusações de incentivo a crimes como pedofilia e zoofilia não se justificavam, e determinou que o centro cultural reabrisse a exposição, o que não ocorreu. O acordo posterior, no qual o Santander Cultural promoveria duas mostras no lugar da Queermuseu, foi cumprido pela metade: a primeira, Estratégias do feminino, aconteceu em 2019, mas a seguinte, que trataria do universo LGBT, não saiu do papel. É a multa decorrente da não realização dessa exposição que, agora, deve financiar ações em diferentes frentes.
"Uma luta que deu certo", comemora curador da 'Queermuseu'
Indígena Alice Martins é um dos rostos da campanha do MPF-RS
/MPF-RS/DIVULGAÇÃO/JC
De acordo com Enrico Rodrigues de Freitas, procurador regional de Direitos do Cidadão do MPF-RS, a expectativa é que os primeiros projetos contemplados pelo edital estejam na rua ainda no primeiro semestre de 2021. A campanha, por sua vez, está ganhando caráter nacional, na medida em que o MPF determinou que as seccionais em todo o Brasil realizem, durante este ano, ações ligadas ao tema do respeito à diversidade.
"No Art. 3º da Constituição, está estabelecido como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Erradicar toda forma de racismo e preconceito é papel indiscutível e incontornável do poder público", ressalta o promotor. "Todas as instituições devem atuar nessa direção, ou estarão agindo de forma inconstitucional. Não é uma escolha. Temos ações repressivas (no MPF), mas é igualmente importante incidir preventivamente, com ações que digam à sociedade que é preciso buscar uma convivência com empatia."
Mulher indígena guarani em contexto urbano, Alice Martins comemora o "tecer de redes" entre diferentes grupos que não só tornou a campanha possível, mas deve se multiplicar a partir dos efeitos positivos do edital. "A Queermuseu foi fechada por intolerância, e é muito importante ver esse processo se reverter a favor de pautas tão violentadas e invisibilizadas. A palavra 'respeito' está na escrita, mas pouco existe na prática das pessoas, e estamos aqui para visibilidade para nossa luta, nossa pauta e nos fortalecer enquanto coletivo e parcela do contexto urbano", acentua.
Hoje vivendo nos Estados Unidos e atuando como pesquisador na New School University de Nova York, Gaudêncio Fidelis considera que a iniciativa Eu sou respeito é mais um dos aspectos de uma mostra coletiva que foi, apesar da reação violenta de setores contrários, bastante bem-sucedida: "É possível que uma exposição consiga galvanizar setores progressistas da sociedade em torno de questões e lutas fundamentais e, nesse sentido, não há nada que eu conheça mais bem-sucedido que a Queermuseu. O trabalho que o MPF continua fazendo é muito importante também no sentido de manter vivo esse momento exemplar de uma luta que deu certo, para que as pessoas possam recorrer a ela, inclusive, como uma forma de esperança".