É preciso aprender a ouvir Edgar Vasques, cartunista, chargista, desenhista, artista gráfico, seja a alcunha que couber melhor - e todas elas são possíveis. É preciso aprender a ouvir, porque, sobretudo, ele possui o domínio da narrativa, a qual exerce há ininterruptas cinco décadas, seja em tirinha, na ilustração, na charge e na conversa.
Aconteceu comigo: poucas perguntas são necessárias para que ele rememore a longa carreira, e a gente vai navegando por entre essas lembranças tão bem expostas, depoimentos que registram e se confundem também com parte da história das artes gráficas e do jornalismo do Brasil.
E digo aprender a ouvir porque, muitas vezes, há um esboço de silêncio entre uma frase e outra que parece que não será preenchido. Só para, em breve, ele retornar com mais uma história ou mais uma tirada daquele humor que expõe reflexões necessárias sobre o País.
Talvez essa seja a maior característica do seu principal personagem, o Rango, o qual trabalha com um "Brasil visto de baixo", como ele mesmo define no título do seu último lançamento, Crocodilagem - O Brasil visto de baixo. Trata-se do 17º volume de Rango e reúne 143 tiras, que acompanham as desventuras do Brasil desde 2007 até 2018, publicadas no mensário Extra Classe, do Sindicato dos Professores de Escolas Particulares do RS (Sinpro).
Em agosto, também aconteceu a abertura da exposição Edgar Vasques (1968/2018) - 50 anos pendurado no pincel, dentro da programação do 45° Salão Internacional de Humor de Piracicaba (SP), principal evento de humor gráfico do Brasil, com lançamento também por lá do Crocodilagem. Na Capital, por sua vez, ocorreu uma mostra com originais do Rango na Galeria Hipotética, com sessão de autógrafos do livro.
Em 2013, foi lançado o livro Edgar Vasques - Desenhista crônico, organizado por Susana Gastal e que veio preencher o espaço ainda vago sobre uma publicação específica sobre o artista. Na época, Susana procurou depoimentos de amigos e companheiros de atividades, como Santiago e Joaquim da Fonseca, que acompanham a trajetória de Vasques há, pelo menos, quatro décadas. O segundo desafio coube ao próprio Vasques: resgatar e selecionar os trabalhos que ocupam a maior parte dessas páginas, uma vez que a sua produção é gigantesca. "Não tenho nem ideia de quantos desenhos já fiz. Só do Rango são 45 anos fazendo, claro, nem sempre de modo diário", relembra.
Entre goles de café e uma visita ao estúdio abarrotado de livros em que Vasques cria, no bairro Petrópolis, perto da casa de Luis Fernando Veríssimo, seu amigo e parceiro de trabalho, vamos conhecendo a vasta trajetória a partir das próprias palavras do artista.
Fica evidente, sobretudo, que a função do cartunista e do humorista gráfico é a de refletir sobre o que está acontecendo e oferecer a sua opinião para o meio social discutir. Nesse sentido, entra a discussão sobre o humor e o politicamente correto. "O humor também tem essa função desopilante, que é, de certa forma, alienar de uma realidade brava. Tem seu papel, mas pode ser mantenedor de preconceito, de estereótipos racistas ou homofóbicos. Eu prefiro um humor que esclarece, mesmo que seja dolorido", afirma. Essa escolha de Vasques fica bem evidente na maioria das suas tirinhas de Rango, que utiliza o humor como arma de reflexão.
São 50 anos de carreira e que podem render diferentes narrativas sobre si e sobre o mundo político que viveu. Um artista que sabe refletir sobre o tempo que habita. Para ele, neste momento de retrocesso político, as pessoas querem qualquer coisa que tenha nexo. "Mesmo que seja eu", brinca.
Gênese de um artista
Um dos grandes nomes do desenho do Rio Grande do Sul, Vasques criou o icônico personagem Rango
MARCO QUINTANA/JC
Filho de uma professora do jardim de infância e de um funcionário público da Assembleia Legislativa de Porto Alegre, Edgar Vasques tem cinco irmãos - todos homens. "Imagina, então, depois de acabar o expediente, ela ainda tinha que encarar seis crianças em casa, além das que lidava na creche", relembra. Já o pai trabalhava revisando os discursos dos deputados para os anais dos registros da Assembleia. Ambos possuíam visões de mundo que, obviamente, influenciaram a vida do filho. "Meu pai era um cara de esquerda, socialista, e a minha mãe, católica e cristã, da linha que achava que o cristianismo era incompatível com a desigualdade e a miséria. Então fui criado nesse ambiente. Depois, quando fui procurar um curso superior e começar a trabalhar, eu já tinha aquela visão mais à esquerda, no sentido de que achava que todo mundo tem direitos a oportunidades iguais", explica.
Os pais também ajudaram na hora de incentivar o filho no desenho. "Minha mãe gostava de artes em geral, fazia pinturas em porcelana como hobby", diz. Nunca houve pressão alguma da família, ao contrário: ela valorizava o interesse pelas artes gráficas que começava a brotar no jovem. "Meu pai, principalmente, tinha muito orgulho, falava para todo mundo, e era até meio pesado no começo, porque eu ficava na responsabilidade de ter que provar o que ele dizia", afirma Vasques. Em uma das ocasiões, quando tinha apenas 14 anos, um desses amigos do seu pai o convidou a ilustrar a capa de um carnê com as datas dos jogos do campeonato gaúcho e pagou um pequeno cachê.
Contudo, o trabalho que Vasques considera o ponto inicial de sua carreira é de 1968, quando o cartunista tinha 18 anos e teve a participação crucial de outro familiar: o avô. O doutor Carlos Alfredo Simch era médico por formação e também ocupou o cargo de senador na vaga de Ernesto Dornelles, que largou o mandato para ser governador do Rio Grande do Sul na época. "Era também meu padrinho, e eu achava que ele sabia tudo. Ele me educou na cultura do livro", conta. Quando Simch faleceu, em 1967, deixou para o neto Edgar, em testamento, um dinheiro para que o jovem conhecesse o continente europeu. Então, com apenas 18 anos, o artista prodígio embarcou na viagem - que durou cerca de um mês - munido de um caderno de desenho que a sua mãe havia lhe dado. Um dos locais que visitou foi a Paris pré-maio de 1968.
No retorno, deu uma entrevista sobre a sua experiência de viagem para o Caderno de Sábado, do Correio Povo - na época, o principal suplemento cultural do Rio Grande do Sul. O material terminou ilustrado com os desenhos que Vasques fez durante o trajeto. O convite foi fruto daquela propaganda que o seu pai fazia sobre o trabalho do filho. "Ele era amigo de todo mundo do meio cultural, inclusive do Oswaldo Goidanichi, editor do Caderno de Sábado", revela. Após a publicação, Vasques recebeu convite para colaborar também com o caderno, sendo que a sua primeira ilustração foi para o único conto que o poeta Armindo Trevisan escrevera, como ele revelaria a Vasques mais tarde. "E aí começou a minha carreira mesmo, paralelamente aos cursos que estava fazendo, no começo de 1969", completa ele.
A fome, retrato do Brasil dos anos 1970
Quando chegou o momento de escolher a graduação, Vasques acabou prestando vestibular tanto para Artes Visuais quanto para Arquitetura, na Ufrgs. Naquela época, o processo de seleção não era unificado, fazia-se para cada curso específico. Resultado: passou nas duas. "É a inadequação do caldo cultural brasileiro: quando o cara quer ser artista não tem para onde ir. Se quer ser advogado, engenheiro, médico, ele sabe o que tem que fazer. Onde ele vai estudar, se quer ser cartunista, não tem", reflete.
Naquele tempo, a Escola de Artes era uma espécie de remanso cultural, já a Faculdade de Arquitetura representava a efervescência artística e política, abrigando estudantes que tentavam entender o seu papel em um contexto de ditadura civil-militar. "Cursei por um ano e meio as duas faculdades. Então, tomei a decisão existencial, porém não profissional, de ficar na Arquitetura, que fazia as vezes de um espaço em que o cara que queria ser um artista tinha interlocução maior", explica. Resultado: Vasques permaneceu 10 anos e meio na Arquitetura, com um total de 21 semestres na bagagem e uma profissão nunca exercida, na prática. Mas não há arrependimento.
Foi nesse período, em 1970, que surgiu também o seu mais famoso personagem: Rango. Criado para a revista Grillo's, uma publicação impressa de apenas uma edição também fruto da Faculdade de Arquitetura. A revista vinha preencher esse anseio de divulgar o trabalho de fotógrafos, escritores, cronistas em formação que pairavam o ambiente. Vasques resgata um pouco da gênese da criação do personagem ao lembrar que percebia uma contradição muito forte e não sabia como reagir a ela. "Nós vivíamos sob a ditadura, inclusive com censura à imprensa, ao teatro, à literatura, e sob uma intensa propaganda do regime militar, que dizia que o Brasil estava crescendo - o slogan era Corrente pra frente, 90 milhões em ação. Isso era propaganda. A realidade era completamente diferente", destaca.
Sua família morava em frente ao Hotel Majestic (atual Casa de Cultura Mario Quintana) - deste modo, Vasques "se criou" naquela região do Centro Histórico de Porto Alegre. Para ir até o campus da Ufrgs, percorria toda a Rua da Praia e observava a deterioração do local. "Eu me criei brincando no pátio da Igreja das Dores e via a miséria. Via o cara que era bebum, que andava com os cachorros, a escória da sociedade. Depois, quando tu vai crescendo e adquirindo a consciência da estrutura social e como as coisas funcionam, comecei a perceber que aquele cara não era um fracassado, ele era apenas uma engrenagem no funcionamento da sociedade, era o resíduo do funcionamento cruel da sociedade. E na propaganda oficial estava tudo bem", afirma.
Com essa inspiração em mente e com a oportunidade de se manifestar de forma criativa graças à publicação Grillo's, Vasques pensou em se apoderar dessa pessoa que está no último estágio da classe social, que não tinha do que se alimentar. A fome ainda era um dos grandes problemas do País - não que tenha mudado muito. "O cara que não tem o que comer, o que vestir, que não tem como se distrair, nada. Como esse cara veria o País? Foi um pouco essa ideia que eu tive. Aí, me apareceu isso. O cara com uma barriga d'água, sujo, descabelado e o menor abandonado, que é o filho", completa.
Jornalismo e política
Cartunista começou a atuar em jornais em 1972
EDGAR VASQUES/DIVULGAÇÃO/JC
Paralelamente à faculdade, Edgar Vasques já atuava em jornais. "Em 1972, comecei a trabalhar regularmente na Folha da Manhã como ilustrador e chargista", conta. Na época, o jornal tinha uma pauta mais progressista para uma empresa conservadora como a Caldas Junior, e continha um jovem Luis Fernando Verissimo em ascensão, além de outros jornalistas que ajudaram a modernizar a imprensa no Estado.
Vasques teve a chance de ilustrar a coluna do jornalista Lauro Quadros, que escrevia anedotas sobre futebol, e criou um personagem para o Grêmio e outro para o Inter. Mas o grande desafio veio quando Verissimo tirou férias e Vasques foi convidado pelo então editor-chefe Elmar Bones a substituí-lo no período.
"Cometi umas três ou quatro crônicas, mas me lembrei do Rango, porque ele tinha feito um certo sucesso no campus, e resolvi apostar no jornal também", relata. A tira fez sucesso, tanto que os leitores mandavam carta para a redação pedindo o retorno do personagem. Desse modo, Rango voltou nos braços do povo. "Eu me dei conta de que coloquei o dedo na ferida. Ninguém falava nada. Aí durou mais três anos, e o jornal desmoronou. A Folha da Manhã era um jornal da grande imprensa, mas ela agia como mídia alternativa, porque ela fazia jornalismo", completa.
Vasques ainda integrou, na mesma época, a Cooperativa de Jornalistas de Porto Alegre, uma das maiores experiências de organização alternativa de jornalistas do Brasil. Tudo isso sob uma ditadura militar em curso. "Como sócio, estava desde o começo e trabalhando lá um pouco depois. Mas eu já participei do primeiro ensaio do jornal, que foi o formato boletim. Tem um desenho meu na capa, que mostra várias pessoas remando junto", aponta.
Os anos na Coojornal foram também um período de formação para Vasques trabalhando no departamento de arte juntamente com outros colegas, como Fraga, Santiago, Eugênio Neves - só para citar alguns. "Todos artistas de alta qualidade na ilustração. A gente inventava técnicas, tinha grande liberdade. Então, era um grande laboratório, um laboratório livre. Ninguém dizia o que não se podia fazer. Os jornalistas traziam as demandas e a gente decidia como resolver", conta.
Um dos pontos que a Coojornal fortaleceu foi o uso da ilustração humorística em uma matéria que não é necessariamente de humor, tecendo comentários sobre o tema. "Lembro também de ilustrar matérias do ciclo de denúncias dos militares, grande parte delas eu fiz, como o caso emblemático do assassinato do Capitão Lamarca, morto na Bahia, pelo Curió. Desenhei essa cena, porque obviamente não tinha foto", conta. A Coojornal resistiu até 1983, quando chegou ao seu melancólico fim devido a problemas políticos internos e à pressão dos militares ao longo de sua existência.
A experiência de Vasques com a mídia alternativa não parou por aí. Ele também colaborou com aquele que talvez seja o veículo mais importante, ou, pelo menos, o mais conhecido: O Pasquim. Em 1976, Ziraldo encomendou para o gaúcho uma série de tiras. Quando chegou a semana da Pátria, Vasques decidiu brincar com uma imagem que representava o símbolo dos militares na ditadura: três pombas brancas nas cores de azul, amarela e verde, voando. "Aí, eu fiz um guri imaginando elas assando. E a outra tirinha era um personagem perguntando para o guri como é que estava o fulano, daí ele respondia que estava azulado de fome, amarelado de icterícia e esverdeado de raiva", explica.
Dias depois, ele leu nos jornais que haviam apreendido o Pasquim nas bancas de todo o País. Na hora, Vasques fez a associação relacionada à sua tirinha, confirmada mais tarde pela intimação que recebeu para depor na Polícia Federal. Jaguar, editor na época do Pasquim, foi interrogado no Rio de Janeiro, e Vasques, o autor dos quadrinhos, em Porto Alegre. "Queriam nos enquadrar na Lei de Segurança Nacional, mas não tinham base para isso. No fim, foi arquivado o processo", conta.
A incerteza do futuro
Cores e traços não são estranhos a Antonio Vasques, filho do cartunista, que, aos quatro anos, já dava sinais de enveredar pelas artes. "Quando ele era criança, demonstrava interesse. Sentava no meu colo e ficava perguntando o nome das cores, e já sabia a diferença, por exemplo, do amarelo ocre para o amarelo ouro. Ele sabia tudo, entende?", diz um entusiasmado Vasques.
Ele afirma nunca ter pressionado o menino a seguir na área, mas desconfiava que isso iria acontecer devido ao interesse desde pequeno. Perguntado sobre se eles trocam uma ideia sobre arte e o processo de cada um, Vasques afirma que sim. "Ele está se preparando para ser um artista plástico e então é mais difícil ainda, pois não tem nenhuma garantia do que está fazendo. O artista gráfico tem: se eu for fazer uma caricatura, ela tem que ficar mais ou menos parecido com a vítima. Então têm alguns passos que eu sei que tenho que dar. Agora, se sou o Picasso inventando o cubismo não tenho garantia nenhuma, então é bom ter uma segunda opinião sobre seu trabalho", avisa.
Nessa longa trajetória, Vasques relembra que houve muitos altos e baixos. "Sou um cara que ainda vivo do meu desenho. Desde que comecei, o momento atual é talvez o mais difícil. No início do ano perdi dois terços dos meu trabalhos autônomos e, agora, estou tendo que correr atrás", lamenta.
Preocupações corriqueiras, como machucar a mão e ser impedido de trabalhar, percorrem seus pensamentos com frequência. "Completei 69 anos há pouco tempo, não estou ficando mais jovem. Sinto que estou quase começando tudo de novo. Eu e o Brasil, começando tudo de novo", complementa. Sobre a possibilidade de transmitir seu conhecimento, ele diz se ressentir muito da didática, da organização por aulas, mas está pensando em investir, porque sente que tem muito para dizer ainda. "Meu trabalho abre caminhos, e minha experiência acumulada pode ajudar essas pessoas", finaliza.
Na Feira do Livro
Neste sábado (10), às 18h30min, no Salão de Bridge do Clube do Comércio, acontece o evento 50 anos pendurado no pincel, dedicado a Edgar Vasques. A mesa contará também com Hiron Cardoso Goidanich, o Goida, crítico de cinema e autor da Enciclopedia dos Quadrinhos, e deve abordar a carreira de Vasques e o seu principal personagem, o Rango, um dos mais longevos no humor gráfico brasileiro.
Livros publicados
- Brasil, o País da Suruba - (Libretos), 2017
- Mercado Público - Palácio do Povo - (Libretos), 2012
- Tragédia da Rua da Praia em quadrinhos - (Libretos), 2012
- Rua da Praia: um passeio no tempo - (Libretos), 2010
- Tangos & tragédias em quadrinhos - (L&PM), 2007
- Rango (antologia) - (L&PM), 2005
- O gênio Gabiru - (L&PM), 1998
- História/Histórias de Porto Alegre (com Tabajara Ruas e Liana Timm) - (SMC/Porto Alegre), 1995
- Caras Pintadas - (L&PM), 1993
- Tangos & Tragédias em quadrinhos (com Cláudio Levitan) - (L&PM), 1990
- Coisa feia - (L&PM), 1989
- O vento assassino - (L&PM), 1987
- A lei do cão (e mais alguma coisa) - (L&PM), 1988
- Alô! Nova República? - (L&PM), 1986
- Abaixo do Cruzeiro - O Brasil nas melhores histórias do Rango - (L&PM), 1984
- O analista de Bagé em quadrinhos (com Luis Fernando Verissimo) - (L&PM), 1983
- Rango 7 - (L&PM), 1981
- Rango 6 - Histórias de um marginal - (L&PM), 1978
- Pega pra Kapput (com Josué Guimarães, Moacyr Scliar e Luis Fernando Verissimo) - (L&PM), 1978
- Rango 5 - Cândido, o Perguntador - (L&PM), 1977
- Rango 4 - (L&PM), 1976
- Rango 3 - (L&PM), 1975,
- Rango 2 - (L&PM), 1975
- Rango 1 - (L&PM), 1974