A rotina no sobrado da rua Vasco da Gama, em Porto Alegre, anda agitada. Ali, aos 62 anos, o multipremiado cineasta de animação Otto Guerra prepara o lançamento da autobiografia Nem doeu, ao mesmo tempo em que dá os últimos retoques no longa-metragem A cidade dos piratas. Ambos os trabalhos deverão chegar ao público em agosto, quando a Otto Desenhos Animados, sediada no bairro Rio Branco, completará quatro décadas de atividades - no caso do filme, a estreia se dará durante o Festival de Gramado.
Otto é um dos cinco brasileiros citados no livro Animation now, da editora alemã Taschen, publicação apontada como a bíblia da animação mundial. Nela, aparece como o "papa underground" do desenho animado no Brasil. Além disso, é o cineasta com a maior quantidade de indicações entre os 100 melhores filmes do gênero no País, de acordo com o ranking da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), com quatro produções, duas delas entre as 10 primeiras posições - Até que a Sbórnia nos separe (2013), codirigido por Ennio Torresan Jr., na quarta colocação; e Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock'n'Roll (2006), em nono lugar. Completam a lista Novela (1992), em 32º, e Rocky & Hudson, os caubóis gays (1994), no 50º posto.
A princípio, A cidade dos piratas deveria se basear integralmente na série em quadrinhos Piratas do Tietê, de Laerte Coutinho, publicada pela primeira vez na revista Chiclete com Banana em 1983. Na trama original, piratas mancomunados com os índios alugam aos bandeirantes a região em que se situa atualmente a cidade de São Paulo pelo período de cinco séculos. Encerrado o prazo, a área deveria ser devolvida aos descendentes dos corsários. "A história é ótima, mas não rende um longa-metragem", relembra Otto. Fora isso, uma série de alterações determinadas, de um lado, por mudanças na vida pessoal de Laerte e, de outra parte, por inquietações de ordem estética do diretor, engendrou um novo perfil ao roteiro, cuja primeira versão data do ano de 2003.
Depois que Laerte se assumiu como transgênero e renegou os protagonistas de Piratas do Tietê, a quem atribuiu um comportamento machista, Otto resolveu trazer o drama da rejeição das criaturas pela criadora para dentro do filme, com o intuito de formatar uma história menos convencional. Desse modo, a própria cartunista surge em frente às câmeras para explicar por que abandonou os piratas, jogando-os literalmente no lixo. Ao mesmo tempo, personagens atuais de Laerte - como Hugo, que adotou o nome de Muriel ao aderir ao crossdressing, seguindo o exemplo da autora - foram incorporados ao enredo de A cidade dos piratas.
Otto Guerra em prosa e imagem
Cineasta no casarão que abriga sua produtora, no bairro Rio Branco
MARCO QUINTANA/JC
Em comparação com as adaptações de roteiro para o longa-metragem, escrever a autobiografia se constitui num desafio ainda maior para Otto Guerra. Habituado à linguagem dos quadrinhos, o autor admite que, para ele, "manejar as palavras é um atoleiro", mas as versões provisórias de Nem doeu, distribuídas aos amigos para colher opiniões, mostram que soube encontrar alternativas no tête à tête com as palavras. Otto escreve num ritmo de tirar o fôlego, recorrendo a uma linguagem com figuras em movimento, como se estivesse adaptando à literatura um de seus roteiros de animação - no caso, sua vida. Assim, o leitor é conduzido por um redemoinho de imagens às cenas que emergem de sua memória. "Decidi colocar minha cara à tapa, além de expor também outras personagens, que surgiram a partir do mergulho na profundeza de meus abismos."
A maioria das pessoas aludidas tem os nomes alterados, a começar pelo alter ego do autor, Lotário - corruptela de otário, além de citação ao melhor amigo do mágico Mandrake (Lothar). Já o escritor pernambucano Marcelino Freire, autor de Angu de sangue e Contos negreiros (a quem Otto deu carona até Cruz Alta, onde ambos participaram de um evento sobre literatura underground, em 2016) ganha o pseudônimo de Suspiro Mendes.
Aliás, o convite para proferir a palestra na terra de Erico Verissimo representou mais um fator para deflagrar a ideia de escrever o livro, embora num primeiro momento tenha se sentido pouco à vontade numa roda literária: "Pessoal, lamento, sou uma fraude, não sou escritor e os roteiros dos filmes que dirigi não são meus", disse Otto para a plateia, em diálogo reproduzido na autobiografia pela boca do personagem Lotário.
Ninguém aflora com mais intensidade dos precipícios da memória do artista do que a mãe, Alba, uma dos poucas personagens com nome verdadeiro em Nem doeu. Com ela, Otto nutriu pela vida afora um "egoísta, vigoroso e violento amor", do qual herdou - quando Alba faleceu, há cinco anos - um cachorro eunuco, símbolo quase perfeito para o relacionamento entre mãe e filho. "Metaforicamente, ela arrancou as bolas dos filhos também bem cedo", reclama. Para justificar a sentença, ele menciona frases que escutava da mãe a seu respeito na infância: "Quem olha o meu filho não dá nada, mas é um gênio" ou "O que esse meu filho tem de feio tem de inteligente".
Nascido na Capital, Otto foi levado com poucos dias de vida para a estância da família no Alegrete. Numa tarde gelada, a mãe enrolou o bebê num amontoado de mantas e pelegos para conduzi-lo, numa carreta de boi, de uma edificação à outra da extensa propriedade. Ao chegar ao destino, quando desenrolou o emaranhado de cobertas, Alba percebeu que nada havia ali - sem que percebesse, a criança tinha escorregado e caído na estrada. "Correram para resgatar o presuntinho pelado", conta Otto.
As lembranças destacam, sobretudo, momentos em que Otto, adolescente, sentia vergonha da mãe, como quando ela lhe passava nacos de carne por baixo da mesa da churrascaria para pagar apenas uma refeição no espeto corrido. Ou quando, com 13 ou 14 anos de idade, ele se via obrigado a buscá-la, embriagada, em botecos. "Hoje, percebo que eu era preconceituoso. Deveria ter sido menos rude com ela." O pai, Félix, morreu por volta dos 40 anos de idade ao sofrer um ataque cardíaco durante o ato sexual. "Os indianos dizem que, ao chegar ao orgasmo, a pessoa tem uma pequena morte. No caso do pai, foi uma grande morte", comenta Otto, sem perder a piada.
Contador de histórias
Otto se alfabetizou ao ler revistas em quadrinhos, já que não havia livros em casa
MARCELO G. RIBEIRO/JC
Otto Guerra se alfabetizou ao ler revistas em quadrinhos, já que não havia livros em casa. Muito tempo depois, Nídia Guimarães, viúva do escritor Josué Guimarães, se transformaria em tutora intelectual do rapaz. "Até conhecer Nídia, eu tinha feito uma série de filmes sem ter lido praticamente nenhum livro, só quadrinhos. Ela me indicou obras de literatura", relata.
A "tara" por contar histórias o acompanha desde criança, quando encenava textos improvisados, em cima da eletrola da sala de estar. "Eu era o autor, o ator, o diretor e também o público. O mundo caindo ao redor e eu encantado nesse universo imaginário, mergulhado nas minhas toscas e ingênuas HQs", relembra. O garoto taciturno e introvertido passava o veraneio em Tramandaí trancado no apartamento, desenhando "bonecrinhos", como dizia Alba. Levado pela mãe para almoçar no restaurante Miramar, empacou diante da vitrine de uma tabacaria para exigir a compra de um exemplar da revista de Tintin, personagem do belga Hergé. No Miramar, com a publicação em mãos, decidiu que seria um contador de histórias desenhadas: "Se ele (Hergé) vivia de fazer HQs, eu poderia viver também", pensou, enquanto sorvia o resquício morno do Nescafé que sobrara na xícara de Alba.
Alguns anos depois, ao colocar em prática o plano, o desenhista principiante zanzava pelo Centro da cidade com avisos pendurados no corpo - junto ao peito, "Compro ouro velho"; nas costas, "Faço caricaturas". Aos 19 anos, enquanto cursava Comunicação Social na Pucrs, filmou a primeira animação em Super 8, o curta Ernesto, sobre um funcionário público que, ao destravar uma gaveta emperrada, voa pela janela. Só depois da revelação percebeu que as imagens estavam de cabeça para baixo - havia gravado com a câmera virada.
Por sinal, mesmo depois de consagrado, Otto jamais desacreditou da máxima de que, "muitas vezes, os defeitos representam a melhor parte do filme". Talvez seja exagero, mas o que está por trás da crença é a ideia de que a falta de condições ideais de produção propicia a criação de novas linguagens. Em Rocky & Hudson, por exemplo, devido aos parcos recursos, foi obrigado a usar material reciclado. Por causa disso, vincos dos acetatos refletiam brilhos indesejados, especialmente nas cenas gravadas no castelo do vilão Doutor Brain. A solução foi acrescentar um áudio de trovões para que os reflexos se transformassem em faíscas elétricas, ampliando o clima de terror.
Em outra cena, devido a um equívoco de filmagem, o carro parecia se mover em marcha à ré. Como não havia negativo suficiente para refazer a ação, Otto improvisou uma fala de Silverado, o cavalo dos caubóis: "Merda de filme, o carro tá andando pra trás!".
Rocky & Hudson é um marco do cinema brasileiro, justamente em função da escassez de longas-metragens de animação - antes, só haviam sido lançados no País, neste formato, Sinfonia amazônica, de Anélio Latini Filho (1951); Presente de Natal, de Álvaro Henrique Gonçalves (1971); e Piconzé, de Ypê Nakashima (1972), além das adaptações da Turma da Mônica de Maurício de Sousa. "Rocky & Hudson legitimou a gente como produtores de animação", avisa Otto.
Antes de abrir sua própria produtora, Otto trabalhou no estúdio do argentino Félix Follonier, criando animação para comerciais. A primeira mostrava uma casquinha de sorvete de morango tentando refugiar-se inutilmente do sol abrasador embaixo de uma palmeira. O astro-rei afastava as folhas e lambia a "fugitiva", antes de exclamar: "Luigi, irresistível!". Na produtora de Follonier conheceu José Maia, com quem trabalha até hoje - Maia é sócio da Otto Desenhos Animados. Ao explicar a sintonia, Otto enuncia: "Ele é caprichoso e dedicado. Eu, preguiçoso e pragmático".
Estrela de cinema
O cineasta ao lado de um antigo projetor, então caríssimo, na vizinha rua Felipe Camarão
ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC
Em 1978, o realizador fundou a Otto Desenhos Animados do jeito que podia, com a mãe de fiadora e um orelhão na esquina como principal contato. Cinco anos depois, a produtora aprontou o primeiro curta-metragem de ficção, O Natal do burrinho. No roteiro, o animalzinho com uma mancha nas costas, efeito do xixi do menino Jesus derramado no lombo (segundo Otto, uma lenda que circula no Nordeste brasileiro) enfrenta inúmeros perigos ao atravessar o deserto dominado pelas forças do Império Romano. Ao final, escuta-se o grito do diretor, fora da cena: "Corta!". Então, o animal ergue-se sobre duas patas e estala as costas, enquanto a câmera se afasta para mostrar o ambiente cenográfico.
A ideia era vender para a TV Manchete, mas a película ficou pronta às vésperas do Natal, quando já não havia tempo para o canal arranjar patrocinadores. Menos mal que conquistou o primeiro lugar na Mostra Gaúcha de Curtas no Festival de Gramado de 1984. Embora não tenha aproveitado a trama, Moysés Veltman, diretor de programação da Manchete, gostou do que viu e propôs que Otto produzisse uma versão animada de As cobras, de Luis Fernando Verissimo. De novo, a esperança de ganhar espaço na telinha se frustrou, mas o segundo projeto da Otto Desenhos Animados, que veio à tona em 1985, graças às economias construídas com a produção de comerciais, repetiu o sucesso do primeiro filme e correu o mundo. "De uma hora para outra, virei uma estrela do cinema e fiquei conhecido internacionalmente."
De lá para cá, perdeu a conta de quantas vezes quase faliu e deu a volta por cima. Numa época de vacas magras, na década de 1980, Otto bateu à porta do estúdio de Maurício de Sousa com uma fita VHS de O Natal do burrinho a tiracolo. Na portaria, ouviu a informação de que o consagrado cartunista não tinha o hábito de receber visitas sem agendamento prévio. "Mas eu vim de Porto Alegre especialmente para falar com ele", argumentou. Frente à insistência do jovem, lhe disseram que Maurício de Sousa estava numa reunião sem hora para acabar. Antes de dar meia-volta, Otto pediu para usar o banheiro. Qual não foi a sua surpresa ao deparar com ninguém menos que o proprietário do estúdio no mictório ao lado.
"Maurício...", balbuciou Otto, criando coragem e virando-se para o lado. "Mas será possível que não consigo nem ir ao banheiro sossegado?", esbravejou o "pai" dos famosos Mônica, Cebolinha e Cascão.
Nervoso, Otto estendeu a mão para cumprimentá-lo. "Nem pensar, não vou pegar na tua mão agora", disparou o interlocutor. Antes que Maurício atravessasse o portal do banheiro, Otto conseguiu dizer que fazia desenho animado e que viera da capital gaúcha para lhe mostrar um curta-metragem. "Por que não falou antes? Vamos conversar."
Assim, Otto conseguiu trabalho no estúdio Black & White & Color, na época, o maior da América Latina no gênero de animação, que chegou a arrebanhar um público de 4 milhões de espectadores com As aventuras da Turma da Mônica. Em contraposição aos tempos de penúria, experimentou o sabor do sucesso de mídia, quando produziu a série Os monstrinhos, do Grupo RBS, que denunciava a violência praticada contra as crianças. "Vinham turmas de escolas aqui na produtora para conhecer o bicho-papão", recorda.
Tiro de fuzil em câmera lenta
Doença o colocou diante da iminência de morrer e desencadeou impulso de escrever autobiografia
MARCO QUINTANA/JC
No momento, Otto Guerra está num período de alta. Em paralelo à autobiografia e ao filme A cidade dos piratas, o cineasta trabalha na adaptação de Rocky & Hudson para uma série de 13 episódios a ser exibida pelo Canal Brasil em 2019, além de planejar uma versão da autobiografia para o cinema de animação com a ajuda do roteirista Vinícius Peres. Como se não bastasse, já estão assegurados recursos mediante parceria com a Anaya Produções, de Minas Gerais, para a realização do longa-metragem Um tal de filho da puta, roteiro da baiana Carla Guimarães que acompanha a peregrinação do filho de uma prostituta para encontrar o pai. Desta vez, o filme será dirigido por Erica Maradona, que também é sócia do realizador na Otto Desenhos Animados.
O realizador atribui a profusão de projetos em andamento ao talento da sócia para garimpar editais e aprovar financiamentos para as obras. Erica, de 28 anos, além de cineasta, é skatista e artista visual - grafitou uma das fachadas da produtora no mês passado. "É obsessiva pelo trabalho, como eu era na idade dela", repara Otto. Com ironia, ele também coloca a atividade febril dos últimos tempos na conta de um câncer de cólon diagnosticado em 2013. "Acharam que eu ia morrer, aí decidiram me homenagear e aprovar tudo que é projeto", comenta. "Só que eu sobrevivi. Olha a vergonha que estou passando!", complementa, soltando uma risada. A homenagem a que se refere é o troféu Eduardo Abelin (destinado aos principais nomes do cinema brasileiro), que recebeu em Gramado em 2017.
Em parte, a doença que o colocou diante da iminência de morrer também desencadeou o impulso de escrever a autobiografia. Tanto que, a certa altura do livro em gestação, Otto convida a morte para uma conversa franca e amigável num banco sob as árvores do Parque da Redenção. "Câncer é como levar um tiro de fuzil em câmera lenta", compara. Com a saúde recuperada, ele enfatiza: "A morte é a maneira genial que a natureza inventou para se renovar, mas lutei para seguir vivo".
As oscilações da vida não o tiram do sério. "Não acredito em fracasso. Às vezes, fracassar é até bom, dependendo do ponto de vista." Tem sido assim desde que, aos cinco anos de idade, em Tramandaí, a correnteza puxou o menino para longe e, de repente, ele já não conseguia mais avistar o guarda-sol da família alçado na faixa de areia. Foi preciso que o alto-falante da cabine de salva-vidas anunciasse a criança perdida para que os pais o resgatassem.
Mais de meio século depois, a sensação de estar vagando, perdido, não se desfez, como se viver sem um propósito definido fosse, afinal de contas, uma premissa para preservar a capacidade imaginativa do artista. "Por sorte, nunca me livrei da imaginação infantil. No mais, hoje em dia, amar e estar com as pessoas que eu amo é tudo que almejo", conclui.