Dementes é o espetáculo trazido pelo grupo La Buena Moza, de Mendoza-ARG. Trata-se de uma murga, isto é, uma espécie de bloco carnavalesco, comum no Uruguai e na Argentina. A diferença é que esta murga está idealizada enquanto espetáculo teatral, com um enredo que é desenvolvido, ao longo de pouco mais de hora e meia, através de canções autorais variadas, algumas das quais parodiam melodias mais conhecidas do universo latino-americano, como aquela que alude a Che Guevara e que, portanto, faz o elogio da coragem e do heroísmo, mas que, no espetáculo, é transformada numa profunda reflexão a respeito das educações exclusivistas e elitistas, tanto quanto preconceituosas, que marginalizam segmentos populacionais os mais variados.
Dementes foi uma surpresa extraordinária e, ao lado da ópera Turandot, até aqui, se tornou a grande atração deste festival trazido pelo Teatro Simões Lopes Neto em sua inauguração. São 16 cantores, cada um com seu momento de solista, mas que compõem majoritariamente um conjunto coral extremamente afinado e eficiente, sob a direção de Daniel Bernal, que assina a direção musical e cênica do trabalho. Depois, temos ainda três percussionistas, que marcam fortemente o ritmo, não só das interpretações musicais, quanto do próprio espetáculo, além do que animado por um figurino absolutamente inusitado, multicolorido e alegre, com adereços variados, que se acrescentam às roupas, conforme o andamento do espetáculo, como aqueles "óculos" que indicam a dilatação das pupilas, depois de ingerirem certas pizzas trazidas por um provocante personagem. Tudo isso se completa com um projeto de iluminação e uma maquiagem (esta última assinada por Laura Mendoza e Lula Millán) que valorizam os intérpretes em cena.
Não se sabe o que mais admirar: a criatividade do espetáculo, a dinâmica constante e profundamente dedicada de todos os intérpretes, o que se traduz num esfuziante ritmo que explode com a abertura da cortina e não se extingue nem ao final, porque o grupo sai para a sala de espera do teatro e vai confraternizar com o público, absolutamente entusiasmado e surpreendido com o que acabou de assistir.
Parece que o público de Porto Alegre infelizmente tem certo preconceito em relação ao que desconhece: prefere não arriscar e continuar ignorante. Quem deixou de assistir a Dementes perdeu a oportunidade de conhecer um trabalho cênico absolutamente único e diferenciado, por todos estes elementos acima destacados: criatividade, entusiasmo, ritmo, qualidade interpretativa e sobretudo musical.
Lembro-me, décadas atrás, quando o teatro de sombras de Praga chegou à cidade, creio que ainda no antigo teatro Leopoldina. Os primeiros dias foi de público escasso, mas logo o boca-a-boca se espalhou e o espetáculo se tornou um it daquela temporada. Infelizmente, este grupo não teve esta oportunidade, porque foram, apenas duas performances. Mas como tenho certeza de que quem assistiu saiu com vontade de ver mais, é de se torcer para que o conjunto, que produz um novo espetáculo a cada temporada, possa retornar com novos trabalhos.
Na mesma semana, ainda tivemos Chula, criação e interpretação da bailarina Emily Borghetti, com direção cênica de Sílvia Canarim e direção musical de Guilherme Ceron.
O espetáculo é provocativo desde a proposta inicial: uma mulher dançando a chula, considerada uma "música masculina" no universo gauchesco. Pois Emily Borghetti dança, dança muito bem e ainda ironiza os que duvidam. A cenografia criada por adereços variados, mais a iluminação de Carol Zimmer, pontuando espaços e criando ambientes variados para a interpretação entre dramática e poética de Emily Borghetti, permitiu que assistíssemos a um espetáculo muito bonito, inteligente e lúdico, em que qualidade se aliou a sensibilidade, resultando numa encenação que deveria percorrer não só o Rio Grande do Sul, quanto viajar pelo Brasil, pois a mescla entre o tradicional e regional e o moderno e urbano, aliando os ritmos gauchescos com o flamenco, permitiu uma renovação inimaginável, dinâmica e contaminante, que entusiasmou a todo o público presente.