Não é fácil a gente desprender-se de preconceitos ou distanciar-se de lugares comuns para nos relacionarmos com uma obra de arte que nos propõe exatamente isso, a novidade. Este foi o desafio proposto pelo Grupo Grial a todos os que compareceram no final de semana anterior ao novo Teatro Simões Lopes Neto.
Criado em 1997, por Ariano Suassuna e por sua atual diretora, coreógrafa e, por vezes, bailarina, Maria Paula Costa Rêgo, não se trata de um conjunto dedicado ao folclore nordestino ou pernambucano, mas um conjunto que busca uma simbiose entre aquela tradição popular e a experimentação da dança contemporânea, bem na linha do que defende a aventura armorial, na acepção de Ariano Suassuna. Há a música armorial (por exemplo, a Missa armorial), a poesia armorial, que reúne a tradição do poema de cordel com os metros contemporâneos (por exemplo, a própria poesia de Suassuna, só recentemente publicada em volume - O pasto incendiado, Nova Fronteira, 2025) e o teatro armorial. Suassuna experimentou o romance armorial com O romance da pedra do reino e o príncipe do Sangue do vai-e-volta (1971) e assim por diante: neste longo romance, mais tarde transposto em minissérie para a TV Globo por Luiz Fernando Carvalho (2007), também se mesclam folhetos de cordel com uma estrutura narrativa experimental, que foi inclusive exacerbada e extraordinariamente valorizada pelo diretor da obra televisiva, para mim, das realizações mais fantásticas que a televisão brasileira já realizou em sua história.
Uma mulher vestida de sol é, originalmente, a primeira peça de teatro escrita por Suassuna, em 1947, que obteve o prêmio Nicolau Carlos Magno, do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP). Foi reescrita em 1957, enfocando a disputa de terras entre os dois proprietários Joaquim Maranhão e Antonio Rodrigues, do que resulta a tragédia que relembra a história de Romeu e Julieta: Suassuna ecoa Shakespeare? Poderia ecoar, sem mal algum. Mas é bom lembrar que a história dos dois jovens separados pelas famílias inimigas, era de longa tradição na Renascença. O que Shakespeare fez foi escrevê-la melhor. Não foi o primeiro nem o último a registrar aquele enredo. Suassuna acrescentou a ambientação nordestina que, como ele mesmo registra no prefácio de 1957, tem mais a ver com a tradição do teatro do século de ouro da Espanha, dramaturgia que ele muito leu e incorporou em seus primeiros anos de produção.
Maria Paula Costa Rêgo, de seu lado, toma a peça de Ariano Suassuna como referência, valoriza instrumentos musicais, cantigas e incelenças, além daqueles personagens oriundos de folhetos como os de João Martins de Athayde, inspiração explícita de Suassuna para esta obra. Mas não valoriza a vertente folclórica, pelo contrário: ela busca a experimentação de uma linguagem da dança contemporânea, em espetáculo de cerca de uma hora de duração. Com isso, se estabelece uma espécie de estranhamento para boa parte do público: a gente vai esperando encontrar uma coisa, mas se depara com outra realidade. Precisa se reciclar animicamente com rapidez. Para complicar mais as coisas, o espetáculo não tem nenhuma ancoragem direta e explícita na peça teatral original: quando muito, é uma inspiração distante, que está presente nas cantorias. Até mesmo a figura de Bruna Alves, a única intérprete feminina, e que é deficiente de visão, faz com que o estranhamento se amplie em relação à obra original. Ou seja, a coreografia se reivindica a si mesma enquanto obra experimental formal, sem referências, trama ou narratividade mais tradicional, o que certamente frustrou a muita gente.
De qualquer modo, é de compreender os objetivos do grupo Grial, na extensão da estética armorial. É criar uma linguagem artística brasileira, nos vários campos de expressão artística, de modo a desenvolver um vocabulário próprio e diferenciado. É evidente que isso significa certo distanciamento do público mais acostumado ao imaginário do folclore nordestino, muito especialmente quando o espetáculo é apresentado no sul do País, que nem sempre tem maior relação com aquela tradição. Valeu, no entanto, enquanto proposta a ser conhecida e valorizada, diminuindo as distâncias e os fossos culturais das diferentes regiões brasileiras.