Não fui fã do grupo Paralamas do Sucesso, até porque, na época, integrava o grupo daqueles que, ao defender a Música Popular Brasileira, entendia que não deveria haver muito espaço para o rock, ainda que rock brasileiro.
O que isso quer dizer? Não curti o espetáculo Vital - o musical dos Paralamas neste sentido do fã, mas me surpreendi e me encantei, literalmente, com a performance apresentada. E não tenho dúvidas em dizer que se trata de um dos espetáculos mais bem concebidos e acabados da cena brasileira que, para nossa sorte, inicia sua turnê nacional justamente por Porto Alegre.
A pesquisa que orientou todo o trabalho vem assinada por Marcelo Pires, ao lado de Patrícia Andrade, que responde pelo texto final. Estas duas pessoas são as grandes e definitivas responsáveis por todos os acertos do espetáculo, produzido brilhantemente por Gustavo Nunes e Marcelo Pires, seus idealizadores. Selecionar, de uma carreira exitosa, o que virá para o palco é uma responsabilidade enorme, porque decide sobre a sorte do espetáculo. O título do trabalho, neste sentido, é significativo: "vital" é um adjetivo que tem a ver com a vida. E se alguma coisa define os Paralamas do Sucesso - e falo apenas enquanto espectador, não enquanto fã, reitero - é esta vitalidade, que tem a ver com o grupo, que tem a ver com a maneira pela qual se decidiu contar sua história, que tem a ver, enfim, com o espetáculo. Coincidência ou não - mas enormemente simbólica - um dos atores chama-se Herberth Vital: ele ecoa o nome do principal personagem da banda, Herbert Viana, e evidentemente ecoa o título do espetáculo. E por que isso é importante? Porque ele é um pcd - pessoa com deficiência. Ele é um personagem, cuja vida se cruza com a Herbert Viana no hospital, mas é também o ator. E ele é de uma vitalidade excepcional, enquanto personagem e enquanto intérprete: se nada mais o espetáculo tivesse produzido, só esta feliz articulação bastaria para evidenciar a forte carga poética deste trabalho!
Mas tem mais: é sob a perspectiva da vitalidade que se conta toda a história dos Paralamas do Sucesso, desde a amizade dos músicos entre si, como a relação dos três artistas com o produtor José Fortes (Hamilton Dias), que conviveu com o grupo ao longo de toda a sua carreira.
É sob a perspectiva da vitalidade que a figura de Herbert Viana ganha destaque, numa interpretação emocionante de Rodrigo Salva, que encarnou, literalmente o grande animador do grupo, ao lado dos companheiros Bi Ribeiro (Gabriel Manita) e João Barone (Franco Kuster): até a tonalidade da voz e os trejeitos de cada personagem, em especial de Herbert, foram incorporados às interpretações. Por consequência, a gente não assiste a um espetáculo: a gente se torna testemunha, uma espécie de voyeur do que aconteceu com eles, entrando numa espécie de máquina do tempo que nos faz estar presentes em cada momento vivido pelo grupo e selecionado para o espetáculo.
Aliás, sobretudo na segunda parte da performance, a memória é o tema central enfocado, e daí avulta a importância da equipe técnica. A direção de Pedro Brício é iluminada, literalmente. Porque a dramaturgia é muito feliz na condução do espetáculo: as músicas não conduzem a narrativa, a história se apresenta com um desdobramento natural, que é evocado e iluminado pelas composições. A cenografia de André Cortez é fundamental, ao criar as diferentes dimensões espaciais, num cenário construído em diferentes níveis e com uma espécie de 'janela televisiva' que permite flashes temporais e de situações diversas, levando a uma dinâmica narrativa normalmente inexistente em espetáculos musicais.
Os figurinos completam esta concepção, porque ajudam na caracterização das diferentes épocas, valorizados pela iluminação de Paulo César Medeiros e a coreografia de Márcia Rubin, que faz com que o movimento dos intérpretes/personagens ocorra com naturalidade. O trabalho se completa com a banda ao vivo, sob a liderança da tecladista e maestrina Eveline Garcia. Aqui, vale destacar a perfeição da dublagem instrumental, para além da precisão com que as interpretações vocais são apresentadas.
Em resumo: o gênero musical, que nasceu nos Estados Unidos, mas que vem dos cafés musicais da Alemanha, tem-se abrasileirado. Vital - o musical dos Paralamas é um dos espetáculos que mais contribui para isso. É simplesmente brilhante, resultado de uma conjunção de acertos muito rara.