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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 06 de Março de 2025 às 20:47

A dramaturgia de Luís Vaz de Camões

Luís Vaz de Camões é um dos nomes máximos da literatura em língua portuguesa - e também produziu textos de dramaturgia

Luís Vaz de Camões é um dos nomes máximos da literatura em língua portuguesa - e também produziu textos de dramaturgia

/DETALHE DE OBRA DE FRANÇOIS GÉRARD/REPRODUÇÃO/JC
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Antonio Hohlfeldt
2025 marca os 410 anos da primeira edição de duas das três obras dramáticas conhecidas do poeta Luís Vaz de Camões. Celebrizado pela epopeia Os Lusíadas, e levando em conta que as peças de teatro de sua autoria, que se conhecem, não devem ter sido representadas em teatros públicos, no máximo conhecendo encenações particulares em palácios, sua dramaturgia é pouco estudada e valorizada. Mas se enganam os que pensem que ela não importa.
2025 marca os 410 anos da primeira edição de duas das três obras dramáticas conhecidas do poeta Luís Vaz de Camões. Celebrizado pela epopeia Os Lusíadas, e levando em conta que as peças de teatro de sua autoria, que se conhecem, não devem ter sido representadas em teatros públicos, no máximo conhecendo encenações particulares em palácios, sua dramaturgia é pouco estudada e valorizada. Mas se enganam os que pensem que ela não importa.
A dramaturgia de Camões se resume, pelo menos até o momento, em três títulos apenas, todos editados depois da morte do autor (1524-1580). Filodemo e Auto chamado dos Enfatriões foram publicadas em Lisboa, por Vicente Alvarez, enquanto a Comédia d´El Rey Seleuco foi impressa em 1645, também em Lisboa, por Paulo Craesbecck. Deve-se levar em conta que a dramaturgia do século XVI não era escrita necessariamente para ser assistida, enquanto espetáculo de teatro, mas muito mais para ser ouvida, ou seja, estava destinada sobretudo à leitura, anda que leitura pública. Isso ocorre também com a dramaturgia de Shakespeare, por exemplo. Não se dizia "vou ver uma peça de teatro", mas sim "vou ouvir uma peça de teatro". Somando-se a enorme taxa de analfabetismo existente tanto em Portugal quanto na Espanha (e isso não era muito diferente na França ou na Inglaterra), pode-se compreender que ouvir uma peça era muito mais provável de acontecer do que ler uma peça ou assisti-la encenada nos teatros de então, até porque a censura religiosa, especialmente, atrapalhava bastante este tipo de prática.
Apesar de escassa, a dramaturgia de Camões apresenta algumas características que a tornam significativa, tanto no contexto de sua obra quanto na literatura dramática de então. Os três textos em geral são descritos como comédias pelos estudiosos, o que não quer dizer que fossem escritos para rir. Pelo contrário: embora haja passagens engraçadas nestas obras, elas são, sobretudo, dramas privados do lar, como um estudioso já observou. Um lar em seu sentido ampliado, claro, para adaptar-se ao contexto lusitano da época, já que uma das contribuições significativas de Camões é o fato de, embora partindo de temas tradicionais vinculados à mitologia clássica greco-romana, ter sido capaz de trazer suas tramas para a realidade imediata portuguesa, mesclando a poesia e a prosa, colocando em pleno diálogo nobres e plebeus. Contexto que, inclusive, ele problematiza, como em Filodemo, pois propõe, no enredo, a duplicação de uma mesma situação, com papeis invertidos: um nobre ama uma plebeia, uma jovem da nobreza se apaixona por um plebeu. A questão do amor socialmente permitido ou interdito é discutido sob as duas perspectivas, para chegar ao final da obra descobrindo-se que ambos os aparentemente plebeus são, na realidade, irmãos, filhos de um nobre cujo navio soçobrara nas costas da Espanha, tendo sua esposa, pouco antes de morrer, parido um casal de gêmeos criado por um pastor que os encontra e salva.
O tema pode ser muito bem e criticamente trazido para os tempos de hoje, levando em conta a sólida estrutura dramática proposta pelo poeta. Aliás, este tema é permanente na obra de Camões, bastando lembrar o Soneto 29, dos mais conhecidos: "Sete anos de pastor Jacó servia/Labão, pai de Raquel, serrana bela". Este também é o tema de Os Enfatriões, baseado na mitologia grega, em que o rei dos deuses, Júpiter, apaixonado por Alcmena, uma belíssima mulher, mas casada, toma a forma do marido, Enfatrião, nela gerando Hércules.
De novo, o tema do amor (e da paixão) se mescla com a questão da identidade: Enfatrião, ao descobrir a traição da mulher, ainda que enganada pelo deus, fica a se perguntar quem ele é, de fato, afinal... (não esquecer que uma variante mais palatável explica o nascimento de Cristo, gerado por Maria, casada com José, sem que esta tenha mantido qualquer relação com o marido).
O terceiro texto, de que se possuem duas versões com variantes, é ainda apoiado num clássico grego, a tragédia Hipólito, de Eurípides, em que o enteado se apaixona pela madrasta. Com variantes e enfoques diferenciados, o tema foi trabalhado por Racine (Fedra) e modernamente até por Eugene O' Neill (Desejo sob os olmos, de 1925), dentre outros.
Em síntese, embora quantitativamente pequena, a dramaturgia de Luís Vaz de Camões é interessante, mostra perspectivas muito inovadoras para a época e pode, sim, ser revisitada na contemporaneidade, desde que o diretor saiba propor uma leitura inteligente e crítica.
 

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