Numa simples nota de 15 linhas, o Jornal do Comércio registrou a morte de Orlando Miranda, no último 11 de dezembro. Para boa parte das pessoas que trabalham nas artes cênicas, no entanto, ele deve ser um ilustre desconhecido.
Nos anos 1970, Orlando Miranda presidia a entidade dos produtores teatrais carioca. Foi então convidado a assumir a direção do Serviço Nacional de Teatro, criado ainda ao tempo do Estado Novo de Getúlio Vargas. Ernesto Geisel fora indicado presidente e Ney Braga era o ministro da Educação (que incluía a Cultura).
O horizonte para as atividades culturais era bastante complicado. Mas Orlando aceitou. E foi fundamental para as artes cênicas do País. Pode-se dizer que ele evitou que o teatro desaparecesse no Brasil. Para isso, revitalizou o Serviço Nacional de Teatro, instituindo prêmios de dramaturgia e montagem, projetos de apoio à circulação de espetáculos por todo o País e financiamento para produções.
Vivi uma experiência concreta com ele, e por isso minha admiração e respeito. Em 1976, fui convidado, na época enquanto jornalista do Correio do Povo, a integrar o júri do Prêmio SNT de dramaturgia daquele ano. Repartia a tarefa, dentre outros, com Fernando Peixoto e Maria Helena Kühner, amigos pessoais e profissionais admiráveis. Maria Helena tinha uma bela produção de textos dramáticos para crianças e Fernando já exercera a crítica teatral na Folha da Tarde, de Porto Alegre; era ator e diretor.
Da leitura das 157 obras enviadas, houve unanimidade quanto ao texto a ser premiado: Patética, de um desconhecido João Ribeiro Chaves Netto. Através de uma trama bastante metafórica, denunciava o assassinato, recém ocorrido, do jornalista Vladimir Herzog, nos calabouços da Operação Bandeirante, em São Paulo. Ficamos sabendo, nas entrelinhas, que as autoridades policiais não admitiam que aquele fosse o texto galardoado.
Passou-se quase um ano e nada acontecia. Subitamente, fomos avisados que deveríamos ir para o Rio de Janeiro, a tal de reunião ocorreria para formalizar a decisão do júri. De novo, nas entrelinhas, fomos alertados de que, dependendo das circunstâncias, poderíamos ser até mesmo presos pela Polícia Federal. Lembro que, antes de viajar, combinei com meu chefe e editor Paulo Fontoura Gastal que, se até as 22 horas eu não enviasse nenhuma matéria para o jornal (na época, o Correio do Povo mantinha uma sucursal no Rio de Janeiro e outra em São Paulo), deveria ser dado um alerta público de minha eventual prisão.
A reunião foi aberta por Miranda, que fez uma exposição das dificuldades enfrentadas, mas ressaltou que, apesar de tudo, o SNT respeitaria as decisões do júri. Nossa reunião foi rápida, ninguém imaginava sequer em mudar seu voto, e assim a ata do júri foi logo entregue a Miranda. Esperávamos que talvez, ali, aparecesse algum agente armado para nos prender, mas nada ocorreu. Saí direto para a sucursal do jornal e enviei extenso material que, na edição do dia seguinte, ocuparia praticamente toda uma página da editoria de Artes (e isso que, na época, o Correio do Povo era standard, imagine o leitor!).
A Editora Civilização Brasileira editou o texto, mas o mesmo foi proibido para a encenação. Na abertura, enfim Patética foi produzida e esteve em Porto Alegre, no então Cine Teatro Presidente, graças a Dilmar Messias que, mais tarde, dirigiria uma versão do texto.
Chaves Neto era genro de Vlado. Publicitário. Nunca escrevera para teatro. Acho que nunca mais escreveu. Mas nos deu Patética, que, graças a Orlando Miranda, documentou, para a posteridade, artisticamente, o assassinato do jornalista da TV Cultura de São Paulo.
Orlando Miranda foi uma verdadeiro homem de teatro. Todos lhe devemos respeito, admiração e reconhecimento. Graças a ele, em algum momento, o teatro brasileiro sobreviveu.