Em 1990, a luta pela reforma agrária, que começou no Rio Grande do Sul, com a chamada reforma do Banhado do Colégio, pelo governador Leonel Brizola, e depois teve episódios violentos, como o atropelamento de pelo menos duas dezenas de manifestantes (três morreram), na Encruzilhada Natalino, ganharia outro contorno, ainda de tragédia, quando, ao longo de uma manifestação dos colonos, na Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini, a Brigada Militar dispersou com violência a concentração, com bombas de gás lacrimogêneo, fazendo com que muitos dos manifestantes, ao se dispersar, corressem para a Avenida Borges de Medeiros. Ali, o cabo Valdeci de Abreu Lopes, 27 anos, viu-se rodeado pelos camponeses que fugiam. As versões são contraditórias: o mito fala na degola do militar, pelo colono Otávio Amaral. Uma dissertação de mestrado de Débora Franco Lerrer, anos depois, e uma edição especial do Coojornal, desfazem o mito: Valdeci foi morto por uma faca que o atingiu no pescoço, depois que ele teria disparado três tiros, alcançando a camponesa Elenir Nunes dos Santos que, não obstante, sobreviveu. A jornalista reconstituiu minuciosamente o episódio, a partir de depoimentos e de consulta a laudos médicos, de maneira que, um ano e 7 meses depois, Otávio Amaral foi julgado, inocentado e solto.
Seja como for, o episódio, sempre relembrado enquanto a "degola" do soldado, inspirou o romancista Charles Kiefer a escrever Quem faz gemer a terra, publicado em 1991, portanto, no calor dos acontecimentos. Charles não toma partido, no sentido estrito: apenas passa a palavra, num texto que emula uma narrativa oral, ao camponês que, no livro, se chama Mateus (nome hebraico, significa 'dádiva de deus', o que é altamente irônico para a situação). Mateus, na cadeia há três anos, reflete e rememora sua vida, desde a infância na pequena, mas produtiva e independente propriedade rural do avô (imigrante alemão), herdada pelo pai - que vem a perdê-la para as dívidas bancárias contraídas quando resolveu plantar soja e foi assolado por uma seca - o que leva a família a integrar-se a um acampamento de sem-terra.
Kiefer alcançara revelação com o romance juvenil Caminhando na chuva, a que se seguiram outros textos. Mas como escrevi, há pouco tempo, no fascículo dedicado ao autor, editado pelo Instituto Estadual do Livro, a respeito deste livro, Quem faz gemer a terra, sem dúvida, é seu trabalho mais maduro, exatamente pela dificuldade de encontrar um tom que fosse dramático sem poluir-se com o dramalhão ou a militância, o que ele alcançou plenamente.
O ator e diretor Jerson Fontana, do grupo Teatro Turma do Dionisio, de Santo Ângelo, aproveitando o fato de que o texto literário é originalmente um solilóquio, transpôs o texto literário para a cena dramática, selecionando passagens, invertendo algumas outras, construindo um espetáculo de 50 minutos altamente dramático, tenso e denso, em que o dramaturgista evidencia sua eficiente leitura, o diretor mostra sua competência cênica e o ator transforma tudo isso num espetáculo que chega ao depoimento, emocionando e envolvendo, prendendo a respiração, justamente porque guardou as mesmas qualidades da obra original, sobretudo sua humanidade. É um espetáculo de chorar, de emocionar - porque altamente lírico, em muitas passagens - e de rir, porque Fontana empresta ao personagem o sotaque da região das Missões, os trejeitos e as expressões regionais, concretizando, assim, aquela ideia da oralidade potencializada no texto de Kiefer.
A iluminação de Nara Lucia Maia é simples, mas destaca os pontos em que o personagem se coloca na cena, indo de um ponto para o outro, e o figurino de Maristela Marasca é um traje idealizado de um camponês deslocado para um espaço citadino. Na cena existe, anda, uma espécie de cercado de madeira que, ao longo da encenação, transmuta-se nas grades da cela a que o personagem está confinado, com bom efeito dramático.
Quem faz gemer a terra, assim, é daqueles espetáculos que cumpre perfeitamente a antiga lição do alemão Friedrich Schiller, para quem o teatro deveria ter uma função de divertimento sem perder um aspecto educativo. O texto dramático está excelentemente bem construído, o espetáculo é muito bem realizado, com destaque para o intérprete - que fez com que autor, diretor e ator, concentrados num único artista, tenham encontrado plena realização. Este espetáculo, sem dúvida, honra o Porto Alegre Em Cena.