O universo drag queen ganhou visibilidade internacional quando o diretor Stephan Elliott dirigiu The adventures of Priscilla, queen of the desert, que estrearia no Brasil em 1994, sob o título Priscila, a rainha do deserto. Aliás, no Brasil, seguindo a iniciativa da Broadway, também houve a produção de um musical, com Reynaldo Gianecchini, em 2024. De lá para cá, e na esteira das políticas públicas de dar visibilidade às (falsas) minorias étnicas, sexuais e culturais, artistas neste segmento se projetaram, alcançando enorme sucesso, ora apenas explorando a curiosidade e o divertimento do público, ora discutindo, mais aprofundadamente, as condições de invisibilidade e de marginalização social que tais transformistas enfrentam.
Esta foi a linha adotada por Onde está Cassandra?, que tem roteiro de Cassandra Calabouço (em colaboração com Gui Malgarizi), que também é sua principal personagem e intérprete. Na dramaturgia e, depois, na direção do espetáculo, na coreografia e na escolha e montagem da trilha sonora, participou, ainda, o coreógrafo Diego Mac que, há alguns anos, criou e dirigiu uma excelente companhia de dança contemporânea que atuou na cidade. O resultado não é surpreendente se a gente presta atenção nos demais nomes que emprestaram seu talento à produção, mas é altamente compensador para o espectador que vai sem maior expectativa assistir ao espetáculo.
Primeiro, a escolha do roteiro musical: ele é de extremo bom gosto, começando com as tradicionais faixas de músicas norte-americanas, mas enveredando depois para a música popular brasileira, inclusive o samba e suas muitas variações. A narrativa, por seu lado, é conduzida pela personagem, que é a intérprete, Cassandra Calabouço, não apenas sob uma perspectiva autobiográfica, mas de reflexão a respeito da condição do travestimento e dos artistas deste gênero em sua sobrevivência no País. Mais que isso, já no início do espetáculo, com pouco mais de uma hora de duração, há uma importante reflexão a respeito da memória e do que resta da história e da vida de um artista, se ele mesmo não se preocupar em documentar e registrar seus trabalhos e criações.
Os figurinos de Antonio Rabadan, marcados pelas lantejoulas, são de muito bom gosto, sem excessos, enquanto a iluminação de Gui Malgarizi é muito eficiente, fazendo passagens de tempo e de espaço e ritmando o trabalho, em boa parte das interpretações musicais e coreográficas.
Um grande achado do espetáculo é que toda a dialogação, para além das composições musicais, está dublada. E todas as figuras em cena ecoam a mesma figura, Cassandra Calabouço que, assim, se desdobra nestas diferentes figuras, não importa que intérprete venha a integrar o elenco. Diga-se de passagem que as vozes gravadas não são as mesmas dos intérpretes, o que valoriza ainda mais a opção por este tipo de composição do espetáculo. Aline Karpinski, Nilton Gaffré Jr (Cassandra Calabouço), Lady Vina, Lauro Gesswein e Maria Laura Granada são os cinco intérpretes absolutamente sincrônicos na coreografia (criação de Cassandra Calabouço e Diego Mac) e também nas canções e falas (aliás, gravadas) de modo que o espetáculo ganha uma efetividade que normalmente não se encontra neste tipo de trabalho.
A narrativa centralizada na figura de Cassandra, deste modo, conta sua história, desde criança, o bullying sofrido, os preconceitos, os desafios para o início de carreira e as dificuldades que ainda hoje enfrenta; mas se encerra com uma perspectiva positiva, com uma sequência de músicas que vão do desfile carnavalesco às trilhas dos grandes musicais da Broadway, mostrando sempre qualidade que encanta e prende a atenção.
Nota curiosa, à parte, tem a ver com o público: há parte da plateia que assiste ao trabalho como a outro espetáculo qualquer, deleitando-se com os bons momentos, divertindo-se, aplaudindo, ou rindo. Mas há um outro segmento (arrisco dizer que metade do público, ao menos na noite em que assisti ao espetáculo) que parece ser adicto deste tipo de trabalho e, a cada menção feita a algum artista do universo drag queen local ou internacional, manifesta-se aplaudindo ou gritando, o que dá um colorido ainda mais dinâmico ao trabalho.
É de se esperar que Cassandra Calabouço (personagem de Nilton Gaffré Jr.) e Diego Mac, além de Gui Malgarizi, não parem nesta única experiência. Acho que há espaço para tais espetáculos, tendo mostrado o grupo capacidade e competência. Aguardamos as próximas montagens.