Muitas vezes me queixei, fazendo eco à gente que gosta de teatro, que alguns festivais de teatro na cidade apresentam um excesso de espetáculos em reprise. Mantenho esta queixa, mas quero fazer um adendo em relação aos festivais desta temporada: tanto o Palco Giratório, do Sesc, quanto o Porto Alegre em Cena, da Secretaria Municipal de Cultura, sofreram - ambos - os problemas gerados pelas enchentes de maio e junho do corrente ano. Assim, houve uma decisão política, absolutamente acertada, de que os dois festivais concentrariam suas forças em espetáculos produzidos pelos grupos sul-rio-grandenses, em especial de Porto Alegre - mas não só -, buscando ajudar aos grupos e artistas (de teatro, dança, circo, música), de modo a compensá-los pelas perdas sofridas pelos acontecimentos do primeiro semestre. Há coletivos que perderam sede e todos os figurinos e cenários de suas produções, por exemplo, enquanto outros ficaram absolutamente impossibilitados de viajar.
Justifica-se, assim, neste ano, tais reprises, o que certamente vai se repetir ainda no Porto Verão Alegre, a acontecer entre janeiro e fevereiro vindouros. Trata-se de recapitalizar tais grupos, ou nem isso, mas ao menos proporcionar-lhes rendas mínimas que os façam sobreviver. Já falei, neste espaço, do Palco Giratório, de que comentei dois espetáculos. Há uma dificuldade grande, neste ano, de a gente conseguir acompanhar a todos os trabalhos, porque, na medida em que os dois festivais - o Palco Giratório e o Porto Alegre em Cena - tiveram suas datas deslocadas, acabaram coincidindo (praticamente), e, assim, seus períodos de desenvolvimento foram reduzidos, o que fez com que cada espetáculo tivesse apenas uma apresentação e os horários das performances, na maior parte das vezes, coincidissem. Do Porto Alegre em Cena, selecionei três espetáculos que eu não havia assistido, sendo o critério de escolha a curiosidade sobre as montagens e seu grau de desvio em relação à linha tradicionalmente seguida pelas produções.
O primeiro que fui conhecer foi Mritak, a comédia da vida, apresentado pelo Grupo Stravaganza, sob a direção de Adriane Mottola. Ela é viúva de Luiz Henrique Palese, o dramaturgo que, pouco antes de falecer, em 2003, escreveu este texto, então encenado pelo grupo, em 2001, sob outro título, Como vivem os mortos'. Este título original está diretamente vinculado ao enredo, já que, em tom de fábula, que se passa na Índia, conta-se a história de Mritak, um homem que, embora vivo, teve sua morte registrada por um tio, com o intuito de apossar-se de suas terras. A partir desta situação paradoxal, a narrativa se desdobra com lirismo e ironia, num ritmo que, na nova versão, ganhou uma expansão, porque a montagem de Mottola optou por três personagens, o próprio Mritak e mais dois narradores, digamos assim, que se alternam relembrando os episódios enfrentados pelo homem, até alcançar seu reconhecimento de vida. Mais que isso, o espetáculo ganhou uma perspectiva absolutamente inusitada, porque decorre diante uma grande mesa servida para cerca de 40 comensais - os espectadores que - enquanto assistem à narrativa, são convidados a jantar: há uma entrada, o prato principal e uma sobremesa, apresentados conforme o desenvolvimento da trama.
Em complementação, há um serviço de bar com bebidas variadas, da cerveja e sucos, a refrigerantes e vinhos. Se a refeição e o chá estão incluídos no preço do ingresso, os demais serviços são cobrados à parte e acertados ao final do espetáculo. Duda Cardoso personifica Mritak, mas também assina os figurinos, assim como responde pela elaboração do cardápio, aliás, excelente; Lauro Ramalho e Janaína Pellizzon incorporam os narradores e, ao mesmo tempo, os personagens que cruzam o caminho de Mritak. A ambientação cênica recupera o desenho original de Palese, reinterpretado por Adriane Mottolla e Duda Cardoso, com iluminação de Ricardo Vivian, que demarca os diferentes espaços e climas narrativos do espetáculo. O clima efabulatório nos devolve aos contos de Sherazade, das 1001 noites, divertindo e provocando curiosidade, sobretudo quando a narrativa é suspensa para os serviços de refeição. Em resumo, é um excelente trabalho, que quebra a rotina de nossas encenações, merecendo voltar a ser apresentado, sobretudo porque cada sessão recebe poucos espectadores, por suas características. Mas por tudo, Mritak é uma excelente degustação.