Inteligente, criativo e surpreendente, Cabelos arrepiados é uma opereta infantojuvenil trazida pelo Palco Giratório, do Sesc - neste ano, deslocado para o segundo semestre - e que, até pelo fato de ser criação de um grupo de Manaus, desde logo me chamou a atenção. E a curiosidade não foi frustrada.
Com texto de Karen Acioly, direção de Tércio Silva, e composição e direção musical de Jeferson Mariano (que a realiza a trilha ao vivo), o espetáculo é dirigido às crianças mas, justamente por ser muito bom, também interessa aos adultos. E há inúmeros motivos para se saudar e agradecer à curadoria do Festival por esta oportunidade, lamentando apenas que, gastando tanto para deslocar o grupo, o evento tenha promovido apenas uma única apresentação da peça.
A maior parte das companhias que vêm do Norte ou do Nordeste baseiam suas pesquisas na tradição popular e folclórica, o que é importante, mas que, às vezes, importa em repetição. No caso do Buia Teatro Company, que inclusive tem sede própria e um pequeno teatro em Manaus, onde realiza pesquisas e apresenta seus espetáculos, isso é diferente. O grupo existe desde 2015 e centraliza suas atividades em pesquisa de linguagem teatral. Cabelos arrepiados é uma montagem de 2022, quando inclusive o grupo foi considerado o melhor do Brasil, no Prêmio Cenym de Teatro, entregue anualmente pela Academia de Artes no Teatro do Brasil, em reconhecimento à excelência dos profissionais e espetáculos mais proeminentes do ano, sendo atribuídas através da votação de membros da Academia, formado por atores, atrizes, diretores, cenógrafos, figurinistas, sonoplastas, maquiadores e outros profissionais em atividades no teatro nacional.
Cabelos arrepiados, especificamente, trata dos medos das crianças, através de cinco pequenas histórias em torno das cinco personagens em cena, vividas, com enorme vitalidade, por Maria Hagge, Magda Loiana, Jeferson Mariano, Roque Baroque, Dimas Mendonça e Dürr. É evidente que o grupo realmente se organiza enquanto um núcleo de trabalho, o que resulta na excelência de suas montagens.
O medo infantil é um tema central, aqui apresentado através de uma estética que lembra os contos de Wilhelm Busch (autor alemão de histórias em quadrinhos para crianças do século XIX) e de Edgar Allan Poe (considerado o criador da linguagem gótica na literatura) e do cineasta Tim Burton, mesclando, assim, o grotesco e a pop art, inclusive com um tablado que emula os efeitos óticos de alvos com linhas pretas e brancas em movimentos concêntricos. Os figurinos de Maria Hagge são incríveis, cheios de dobras que permitem guardar e tirar objetos usados em cena, além dos bonecos (que eles chamam de "formas animadas") criados por Dürr, incorporando fantasmas, demônios, assombrações e assim por diante.
Mas estes medos infantis não são apenas aqueles que tradicionalmente a psicologia infantil tem estudados nos textos clássicos. Há uma atualização e, assim, ainda que muito sutilmente, também se discute o assédio e violência sexual contra as crianças, em especial as meninas, de forma a permitir a compreensão do tema e o modo pelo qual ele pode ser combatido e/ou resolvido e enfrentado.
Com uma linguagem simples, lúdica, alegre; com muita movimentação de cena; com o colorido dos cenários e dos figurinos; com uma excelente iluminação e cenários de Tércio Silva, o espetáculo está sempre a prender a atenção do público, discutindo, poeticamente, questões fundamentais para a gurizada. O mais importante de tudo isso é que, sobretudo, existe enorme respeito e valorização da criança enquanto ser autônomo, de modo a permitir que o pequeno espectador se identifique e compreenda as personagens e, assim, possa ele mesmo identificar a si e os caminhos pelos quais enfrentará seus medos. Em tudo e por tudo, este é um espetáculo de exceção e assim deve ser saudado.
O que espero, duplamente, é que esse grupo volte a Porto Alegre e, em o fazendo, permaneça mais tempo para ser conhecido e valorizado. Toda a trupe merece.