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Teatro
Antônio Hohlfeldt

Antônio Hohlfeldt

Publicada em 28 de Novembro de 2024 às 19:13

Perdemos Julio Zanotta, mas sobrevive sua dramaturgia

Julio Zanotta, um dos nomes mais importantes do teatro brasileiro contemporâneo, faleceu no último dia 19

Julio Zanotta, um dos nomes mais importantes do teatro brasileiro contemporâneo, faleceu no último dia 19

JOÃO MATTOS/ARQUIVO/JC
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Antonio Hohlfeldt
No último dia 20 de novembro (ironia, Dia da Bandeira), o maestro Vagner Cunha me telefonou cedinho dando conta da morte do dramaturgo Julio Zanotta Vieira. Eu conhecia Zanotta desde o início da década de 1970 quando, em plena ditadura militar, ele alugou um corredor estreio, na quadra da Ramiro Barcelos, entre a Cristóvão Colombo e a Farrapos (número 485, na época) para transformá-lo em um teatro! O espaço era tão exíguo que a cena dramática era longitudinal e assim assisti a O café, projeto de ópera de Mario de Andrade, jamais concretizada enquanto tal, mas que Julio transformou numa peça de teatro. Ao mesmo tempo, ele criou uma editora e passou a imprimir os Cadernos Margem, o primeiro dos quais com o texto da peça de sua autoria A divina proporção e o segundo com a quadrinização de outra peça sua, As cinzas do general. É evidente que a Censura não iria deixar o escritor e seu grupo, o então novato Ói Nóis aqui traveiz, em paz. Houve ameaças, agressões físicas, censura e proibições. Não chegou a haver prisão porque Zanotta saiu para o exterior. Era sua segunda experiência de autoexílio.
No último dia 20 de novembro (ironia, Dia da Bandeira), o maestro Vagner Cunha me telefonou cedinho dando conta da morte do dramaturgo Julio Zanotta Vieira. Eu conhecia Zanotta desde o início da década de 1970 quando, em plena ditadura militar, ele alugou um corredor estreio, na quadra da Ramiro Barcelos, entre a Cristóvão Colombo e a Farrapos (número 485, na época) para transformá-lo em um teatro! O espaço era tão exíguo que a cena dramática era longitudinal e assim assisti a O café, projeto de ópera de Mario de Andrade, jamais concretizada enquanto tal, mas que Julio transformou numa peça de teatro. Ao mesmo tempo, ele criou uma editora e passou a imprimir os Cadernos Margem, o primeiro dos quais com o texto da peça de sua autoria A divina proporção e o segundo com a quadrinização de outra peça sua, As cinzas do general. É evidente que a Censura não iria deixar o escritor e seu grupo, o então novato Ói Nóis aqui traveiz, em paz. Houve ameaças, agressões físicas, censura e proibições. Não chegou a haver prisão porque Zanotta saiu para o exterior. Era sua segunda experiência de autoexílio.
Nascido em Pelotas, em 1950 (dois anos mais moço que eu), Julio Cesar - nome de imperador romano - Zanotta Vieira assinava-se Júlio Zanotta e assim ficou conhecido. Perambulou pela América Latina, o que serviu de inspiração para futuras peças; já nos anos 2000, experimentou a miséria em Florianópolis, mas, com o dinheiro recebido como indenização pela perseguição durante a ditadura, retornou a Porto Alegre e aqui instalou-se definitivamente, dedicando-se apenas a escrever e montar seus próprios textos. Acompanhei literalmente toda a carreira de Júlio Zanotta, desde aqueles primeiros espetáculos feitos de textos como A divina proporção, A felicidade não esperneia, patatipatatá e As cinzas do general, culminando com A libertação do diretor presidente, textos divulgados de maneira precária mas que seriam reunidos num só volume, sob a genérica denominação de Teatro lixo (Mercado Aberto, 1996).
A foto mais conhecida de Julio figura-o como Rasputin. Certamente preferia ser Rasputin a Julio Cesar, assim como assumiu o título daquele volume, dado pelo crítico Aldo Obino, num comentário do Correio do Povo, justificando um "manifesto" de 1978, em que assumia ter "teatro com pedras nas veias".
Zanotta, nos anos 1990, criou a livraria Ao pé da Letras, em Porto Alegre, coordenou a Feira do Livro de 1993 e dirigiu a Câmara Riograndense do Livro, que revitalizou radicalmente, em 1993 e 1994. Com ele, não havia meio termo. Era radical. O curioso é que, enquanto pessoa, era calmo, simpático, humilde, falando em voz baixa e mais indagativo do que afirmativo. Seu meio de expressão, na verdade, era a escrita, e muito especialmente, a escrita dramática. Em 2010, ele publicou quase duas dezenas de cadernos com seus textos dramáticos mais recentes e, em 2021, reconhecendo a importância de sua obra, a editora paulistana Giostri, especializada em dramaturgia, editou uma caixa com dez volumes, raridade no mercado editorial brasileiro e verdadeira consagração do autor.
Com a morte de Julio Zanotta, a dramaturgia do Rio Grande do Sul ficou com um enorme buraco, uma cratera pior que aquela da Freeway nesta última semana. Aliás, em 2022, em comentário aqui mesmo no JC, eu terminava meu texto indagando: Julio Zanotta será outro Qorpo Santo?, aludindo ao dramaturgo da cidade de Triunfo que, no século XIX, foi internado enquanto louco para ser descoberto enquanto "gênio" um século depois, graças ao professor Aníbal Damasceno Ferreira, injustamente esquecido, quando o professor Guilhermino César acabou por organizar a primeira edição crítica das peças de Qorpo Santo.
Felizmente, Júlio Zanotta, em que pese não tenha tido o suficiente reconhecimento em vida, experimentou alguma valorização e oportunidade para a divulgação de sua obra que, deste modo, não se perdeu. Sua morte, de qualquer modo, corta a inventividade, a perspectiva paródica, a provocação e a dessacralização da realidade e de seus nomes de referência, todas marcas permanentes de sua criação. Perdemos o Julio, felizmente, não perdemos sua dramaturgia.
 

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