Florbela Espanca, este é o nome literário de uma poeta portuguesa que, nascida ao final do século XIX, no interior do país, acabou por suicidar-se em 1930, no próprio dia de seu aniversário: completaria 36 anos. Figura trágica, de um lado, precursora da poesia moderna em seu país, pioneira da literatura feminina e feminista, por isso mesmo foi, mais que incompreendida, perseguida e marginalizada.
Neste 2024, completam-se os 130 anos de seu nascimento. Apenas dois livros de sonetos ela publicou em vida, sem maior sucesso. Depois de sua morte, começou gradualmente o seu reconhecimento, menos em Portugal, muito mais no Brasil. Hoje em dia, o conjunto de estudos em torno de sua produção é enorme, tendo sido inclusive descobertos inúmeros manuscritos ao longo das décadas mais recentes.
Pois é com esta personagem que Luciana Éboli está retornando aos palcos, em espetáculo intimista e sensível, que cumpriu temporada no Teatro Oficina Olga Reverbel neste fim de semana passado e deverá ocupar outros espaços a partir de agora.
Fazer um espetáculo de teatro a partir da história de uma personagem ou, mais desafiador, montar um espetáculo teatral a partir dos poemas desta personagem é uma dificuldade enorme. Primeiro, porque a biografia de uma pessoa é sempre muito maior do que pode caber em um espetáculo. E o que dizer de sua obra, então? No caso de uma poeta, que poemas escolher? Os riscos são: um espetáculo narrativo, que se torne monótono, ou um recital de poesias, o que não seria o caso.
Luciana Éboli, que com Giuliano Zanchi, assina a dramaturgia, venceu o primeiro problema criando uma relação entre a narratividade da vida da artista e a produção de seus poemas, inclusive de algumas passagens de seus diários. Assim, há certas coisas que se dispensam de dizer. Mais do que isso, com o auxílio de Liana Timm, artista plástica que assina a cenografia, desenvolveu uma ambientação mediante a utilização de uma mesa e cadeira, de um lado e, de outro, de um canapé e um porta-chapéus, que servem para garantir a naturalidade da movimentação cênica da atriz a encarnar sua personagem. Os figurinos de Daniel Lion, em tonalidades que vão do rosa esmaecido ao roxo, completam o retrato e antecipam coisas que serão descobertas ao longo do espetáculo.
Um dos últimos poemas escolhidos por Luciana é, talvez, o soneto mais conhecido da poeta, presente em todas as antologias que andei consultando: "Eu quero amar, amar perdidamente!/ Amar só por amar: aqui...além.../Mais estre e aquele, outro e toda a gente.../ Amar! Amar! E não amar ninguém!"
Uma das tantas vítimas dos preconceitos do tempo salazarista; vítima dos críticos e historiadores literários que a condenaram ao passadismo do século XIX simplesmente porque usou a forma do soneto em boa parte de sua produção poética; vítima, enfim, dos preconceitos morais que não podiam admitir uma mulher fruto de uma relação fora do casamento, fazendo com que o pai só a registrasse depois de sua própria morte; Florbela Espanca quase desapareceu nas trevas que o rodeavam. Mas conseguiu emergir.
Certamente, o trabalho de Luciana Éboli vai ajudar neste processo. O espetáculo é tão simples quanto eficiente, quer dizer, teatralmente eficiente. O texto com que nos deparamos é para ser ouvido, sim, mas também inspirou um espetáculo que é para ser visto: o simples fato de a atriz entrar com os pés descalços, vestindo mais tarde um sapato de época; a escolha das cores e dos modelos dos figurinos; a ocupação do espaço cênico, repartido entre os dois pontos opostos: a mesa onde escreve e o canapé onde divaga; enfim, as projeções e a trilha sonora que acompanham e como que embalam tudo aquilo a que estamos assistindo fazem com que não só os que conhecem a obra da poeta lusitana, quanto aqueles que nunca a leram, sintam-se envolvidos por ela. E a força poética de Florbela Espanca chega até nós através da força poética de Luciana Éboli.
Auspicioso o retorno da atriz. Excelente o espetáculo que, além do mais, pode ser realizado nos espaços mais simples possíveis. E mostra uma intérprete madura, atriz professora que não tem medo de se colocar com naturalidade no palco, tornando-se uma espécie de mídia da poesia daquela grande escritora de Vila Viçosa.